Organização, pontualidade, preparação, incisão: assim se decidia no Conselho de Ministros de 1985. Quatro décadas depois, Miguel Cadilhe, então ministro das Finanças, revisita o “estilo Cavaco” — exigente, distante, algo tecnocrático, orientado para resultados — e explica porque é que nunca viu aquele Governo como transitório, mas como o início de uma transformação profunda do país. Em 2005, Miguel Cadilhe comparou Cavaco Silva a um eucalipto que "seca" o terreno à sua volta. Um tema que evita em dia de comemoração de quatro décadas do primeiro governo cavaquista, escusando-se a outra pergunta: se o facto de ter tutelado a área de eleição de Cavaco Silva foi uma desvantagem. Como descreve o estilo de liderança de Cavaco Silva no governo? Era um estilo fecundo, construtivo, algo tecnocrático, digo-o no melhor sentido da palavra, e muito diferente do visto até então, nos quase doze anos do pós-25 de Abril. Era um misto de realismo, clarividência, determinação, frieza. Havia, claro, alguma inspiração vinda do estilo de liderança de Sá Carneiro, de 1980. Como era uma reunião de Conselho de Ministros com Cavaco Silva? Algum ritual, método ou regra que se destacasse? Havia organização, pontualidade, preparação, incisão, decisão. Não havia divagação, nem rendas e bordados, por vezes havia uma fugaz ponta de humor. E em geral, tínhamos de esgotar as matérias agendadas, era raro adiar assuntos. Que tipo de relação mantinha com os ministros? Era distante e seco, conhecedor, motivado e motivador, como é próprio de um líder forte que, acima de tudo, visa a produtividade e o desempenho das equipas, em prol dos objetivos do programa de governo. Um líder forte com este perfil vai sempre ao leme, conduz, mede e afere, constata e compara, reavalia circunstâncias, recompõe, muda, não desiste, mas dificilmente agradece ou se abre em sentimentos, salvo em raras e justas horas de solidariedade. Qual era a principal expectativa que Cavaco colocava nos membros do seu governo? Penso que era o grau de realização. O ministro devia saber traçar objetivos, praticáveis e congruentes à luz do programa de governo, e ser capaz de os cumprir. O que tornava o ambiente político de 1985 especialmente desafiante para governar? Havia imensa necessidade de novas e boas políticas. Sobretudo, estávamos precisados de políticas estruturais. E quanto a estas, as importantes políticas estruturais, acontecia que no Ministério das Finanças estava quase tudo por fazer, como então se podia observar de fora. Desde o 25 de Abril, tinham predominado as políticas de curto prazo, os remendos sob pressão dos tempos e as políticas macroeconómicas de estabilização tuteladas duas vezes pelo FMI. Quando cheguei às Finanças, as políticas estruturais eram, pois, um bom manancial em grande parte por explorar, e uma excelente razão de ser e fazer. Mesmo se começássemos por estar em minoria parlamentar. Havia consciência de que aquele governo poderia vir a transformar estruturalmente o país ou era visto como um governo de transição, uma vez que não tinha maioria absoluta? De transição, ou inibição, não, nunca, de modo nenhum. A consciência era a de que estávamos ali para transformar estruturalmente o país. O primeiro-ministro ouvia os ministros ou levava as decisões tomadas? Ouvia, sabia ouvir, acho que era um dom dele, cultivado. Havia diálogo no CM, por vezes duro e intenso. Em princípio, as decisões eram preparadas e propostas pelos ministros respetivos e seus colegas de ministério, os secretários de Estado, não pelo primeiro-ministro. Havia espaço para discordância dentro do Conselho de Ministros? Sim, claro que sim. Havia plena liberdade de respeitar, concordar e discordar, pelo menos assim foi durante o meu tempo. Que observação de Cavaco Silva guarda até hoje? Cedo me disse que iria governar por dez anos. Foi no gabinete do primeiro-ministro. Achei graça, isso permitia exercícios de visão política longa, mas era inatingível, pensei cá para mim. Cavaco tinha essa premonição, mais do que premonição, tinha essa convicção que também era estratégica, anímica, eminentemente política, e na verdade, contra aparentes e históricas probabilidades, ele acertou em cheio nos dez anos. Olhando hoje para trás, qual foi a decisão ou reforma cujo impacto considera mais duradouro? Durante os quatro anos em que estive nas Finanças, os ventos foram de grandes reformas e, como disse, de políticas estruturais, portanto duradouras, como as privatizações, o mercado de capitais, o setor empresarial do Estado, a dívida pública, a poupança familiar, a reforma fiscal, o sistema financeiro, o Tribunal de Contas, entre outras. E também houve a gestão articulada das políticas macroeconómicas mais viradas para o crescimento. Nos inícios de 1990 dediquei vários capítulos de um livro a descrever essas reformas estruturais do inteiro quadriénio 1986-89. Qual é o maior legado de Cavaco Silva? Talvez a retidão na prática política. Talvez o sentido de Estado. Talvez o reformismo. E a modernização. Talvez a economia do crescimento. Talvez a Europa. Talvez a negação, mal a meu ver, da ideia de "democracia regional" de Sá Carneiro. Talvez um certo modo, exigente, difícil, quase utopia, de compaginar social-democracia e tecnocracia. Talvez tudo junto. .Formal, exigente e pouco dado a afetos: assim se liderava o primeiro Governo de Cavaco Silva.Cavaco Silva: "Os erros cometidos por um Governo não podem ser escondidos”.Cavaco Silva já não tem “nenhuma” influência, mas ainda é intocável como “principal referência do PSD”