Entrou para o primeiro Governo de Cavaco Silva (1985-87) com 39 anos e sem experiência governativa. Encontrou um primeiro-ministro exigente, formal, rigoroso, que cultivava coesão e disciplina no executivo. Quase quatro décadas depois, descreve um líder preparado, pouco dado a improvisos e para quem a informalidade não tinha lugar no ConselhoMinistros. “Ninguém tratava ninguém por tu ou você — era sempre ‘senhor ministro’”, recorda, garantindo que o estilo marcou uma nova cultura política. Como era trabalhar com Cavaco Silva em 1985? Como descreveria o estilo de liderança no primeiro governo? Cavaco Silva foi um primeiro-ministro motivador. Que nos levou a ter a consciência muito clara de que todos estávamos no mesmo barco e que, portanto, a união era fundamental. Este espírito de equipa foi muito importante ainda mais num governo formada por alguns ministros jovens e sem experiência governativa. Era o meu caso. Tinha 39 anos e para mim aquele ambiente uma completa novidade. O que mais o surpreendeu quando entrou para aquele governo? Sinceramente, esse espírito de coesão. De solidariedade. Como era Cavaco Silva nas reuniões de Conselho de Ministros - silencioso, firme, ouvinte? Rapidamente se percebeu que o primeiro-ministro levava os dossiês, todos eles, muito bem preparados. Ainda assim, ouvia todos. Era fácil discordar dele? Não era, não. Havia ministros que só diziam qualquer coisa depois de avaliarem o estado de espírito de Cavaco Silva naquele dia. Por exemplo? Não vou citar nomes, apenas dizer que não me incluía nesse grupo. Nos dossiês em que me sentia à-vontade, não esperava por estados de humor favoráveis. Em outros - Justiça ou Administração, por exemplo -, calava-me. Cavaco Silva ouvia primeiro e decidia depois ou chegava já decidido? Normalmente não dava ar de já ter decidido. Mas recordo uma vez, no segundo governo, em que não foi difícil perceber, pelo menos para mim, que o primeiro-ministro entrou para conselho com a decisão tomada sobre o local onde iria ser construída a ponte Vasco da Gama. Era evidente que a decisão estava tomada e já comunicada a Ferreira do Amaral [ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações]. Recorda algum episódio marcante em que Cavaco Silva tenha mudado de posição após ouvir argumentos internos? Não. Qual era a principal expectativa que Cavaco Silva colocava nos membros do seu governo? Era um primeiro-ministro muito exigente. Cavaco Silva era formal e exigia muita formalidade. Tratava a todos por senhor ministro. Ninguém se tratava por tu ou você, ainda que tivessem à-vontade para tal. Todos eram tratados e tratavam consoante os postos que tinham. Uma regra que nos disse ter aprendido no governo de Sá Carneiro. Nunca aceitaria um tratamento informal, como havia sido hábito em governos anteriores. Quem eram os ministros mais próximos de Cavaco? Fernando Nogueira e Eurico de Melo. Mas o tratamento era igual. Para todos nós, era sempre o senhor Primeiro-Ministro. Como descreveria o ambiente entre ministros? Um ambiente muito bom. Todos os ministros se davam bem. Enquanto governo minoritário a oposição era o nosso cimento. No segundo governo já não foi assim. Porquê? Começaram a surgir algumas vedetas. Recorda um momento inesperado de Cavaco Silva? Inesperado? Nunca. Cavaco Silva era sempre o mesmo: contido, sério, rigoroso. Tinha algum sentido de humor? Para Cavaco Silva recorrer ao sentido de humor tem de estar muito descontraído. O que nunca acontecia nos Conselhos de Ministros. Nunca estava descontraído. Sempre muito formal, impôs uma disciplina da qual não abdicava. Não dava veleidades dessas. Nunca o viu verdadeiramente irritado? Irritado não diria. Bastante determinado para ultrapassar as dificuldades que a oposição nos colocava, sim. Um defeito de Cavaco Silva. A formalidade por vezes excessiva. O lado pouco afetivo, afetuoso. Estive dez anos no governo. Entrei ministro e saí ministro, circunstância que, julgo, só terá sido igual com Valente de Oliveira. Posso dizer que ao longo desses dez anos o relacionamento comigo foi sempre igual: formal, diria frio, sem uma palavra mais afetiva. Curiosamente, no recente almoço de comemoração, dirigiu-se a mim como nunca antes o fizera. Como assim? Que me tem lido e que gostaria um destes dias de trocar impressões comigo. Nunca me havia dito nada tão afetivo. Na altura, tinham consciência de que estavam a começar uma era política nova? Quando entrei para o governo julgava que estaríamos ali muito, muito, a prazo. Porém, à medida que a governação foi avançando e cativando o povo, percebi que em novas eleições a maioria absoluta era uma possibilidade real. Quando se dá a moção de censura do PRD, tive a confirmação do que já suspeitava. Qual foi a melhor decisão daquele governo? Lembro-me de uma, do meu ministério: a taxa social única, ainda hoje em vigor. Cavaco Silva é para si...? Uma referência. Sempre fui um sá-carneirista ferrenho e até hoje não esqueci o carisma de Sá Carneiro. De resto, a minha ligação era com o PPD e entrei para o PSD já membro do governo. Porém, Cavaco Silva é uma referência. É o nome primeiro de uma memória de um governo de competência técnica, rigor e seriedade na gestão, que marcou uma época. Que conselho ou observação de Cavaco guarda até hoje? ‘O senhor ministro tem uma vocação teórica e académica, mas a política requer explicações simples”, disse-me, num dia em que eu estaria a alongar-me. Havia um outro que lembrava a todos: o lugar de ministro não é técnico. É político.