“Maior flexibilização da legislação laboral a vários níveis, de modo a que todos possam ter acesso ao mercado de trabalho, mediante a liberalização das entradas e saídas do mercado de trabalho.”Esta era, quanto a leis laborais, a ideia-base do programa do recém-criado Chega quando se apresentou às legislativas de 2019: liberalização total.Como se explicita na página 51 desse programa: “Para que os fluxos aumentem é necessário facilitar as contratações e isto só é possível se os custos de ‘empregabilidade' — salários, restrições legais, horários de trabalho rígidos, difícil acesso a informação, contribuições para a segurança social e custos de despedimento — forem reduzidos”.Assim, no texto, que foi retirado do site do partido, acabavam todas as regras existentes, desde os horários de trabalho ao salário igual para trabalho igual, às indemnizações por despedimento — que outra coisa significava “liberalizar entradas e saídas no mercado de trabalho” e "reduzir os custos de despedimento"?Tratar-se-ia então — para usar expressões do candidato presidencial do Chega, André Ventura, a propósito da reforma laboral proposta pelo Governo (a qual tinha dado sinais de estar disposto a viabilizar, referindo as leis laborais em vigor como sendo “do tempo da União Soviética e do PREC") — de “despedir sem direitos nenhuns”, de "um bar aberto para despedimentos".Ou, citando de novo Ventura, de “criar em todos a sensação de vida instável, naquela lógica liberal: se for uma coisa selvagem, todos contra todos, vamos todos ficar melhor.”Uma lógica que a 12 de dezembro de 2025, no dia seguinte ao da greve geral e após a publicação de uma sondagem evidenciando uma aprovação maioritária da greve no país, o líder e candidato presidencial do Chega reputou de "erro", mas que estava plasmada no programa do partido de há seis anos, com o qual foi pela primeira vez eleito deputado.O Chega de 2019 propunha então, como já referido, a redução dos salários e das contribuições para a Segurança Social. E também “a aplicação da máxima ‘salários diferentes para trabalho diferente’”. Era aliás a favor da redução das “restrições legais” em geral, embora desejasse ver a legislação a “equiparar os trabalhadores do setor público ao setor privado” e a instituir “o serviço comunitário durante a concessão de subsídio de desemprego”. Definindo-se como “conservador liberal”, o Chega queria o Estado a intervir o menos possível — a não ser para, como referido, impor trabalho obrigatório aos desempregados e alargar, para os profissionais de saúde, “o horário semanal das 35 para as 40 horas semanais”.Quanto aos sindicatos, exigia o fim daquilo que denominava como os seus “vários privilégios”, “nomeadamente o de poderem requisitar filiados ao seu trabalho profissional”, assim como das subvenções públicas que lhes fossem atribuídas.Porém esta agenda do Chega 2019 de retirada de direitos aos trabalhadores, incluída num programa hiperliberal no qual constavam propostas como a de acabar com o ministério da Educação e entregar as escolas públicas a quem as quisesse (a fazer lembrar o programa de Javier Milei, atual presidente da Argentina), a instituição do princípio do “utilizador-pagador” na saúde, com a redução do Serviço Nacional de Saúde ao atendimento de miseráveis, tendendo “as funções sociais do Estado (…) para um estatuto de mera residualidade”, programa que André Ventura, em entrevista ao Observador em março de 2020, deu mostras de não conhecer nem saber explicar, viria a ser radicalmente invertida, mais de um ano antes da reviravolta registada no tocante ao pacote laboral do Governo, no programa eleitoral para as legislativas de 2024. Neste outro documento, no qual o trabalho tem direito a uma secção própria — curiosamente titulada “Pelo Trabalho Digno”, ecoando a “Agenda do Trabalho Digno”, nome que o Governo Costa deu às alterações ao Código Laboral que efetuou em 2023 —, é referida a importância da “estabilidade laboral”, de “assegurar salários dignos e condições de trabalho adequadas”, de “promover o equilíbrio na relação entre o trabalho e a vida familiar”. E até — quiçá inesperado num partido que se tem notabilizado no ataque a excluídos e discriminados — de “lutar contra a exclusão social”. Da total desproteção dos trabalhadores ao “reforço dos direitos laborais” “Sem trabalhadores não existiam bens, nem serviços, sendo estes o resultado palpável das suas capacidades, conhecimentos e esforços”, sendo o “esforço dos trabalhadores (…) o alicerce sobre o qual repousa o desenvolvimento de um país e as suas condições sócio-económicas. Os trabalhadores geram riqueza, promovem o desenvolvimento e fortalecem a base financeira das nações”.Esta ode aos trabalhadores, que pode ser lida na página 76 do programa eleitoral de 2024, é seguida de uma certificação de que “é preciso valorizar o ‘trabalho’ [aspas em trabalho são do original], com a consciência de que investir no bem-estar dos trabalhadores não é apenas uma questão ‘ética’ [mais uma vez, aspas no original], mas uma estratégia inteligente (a melhor) para promover o crescimento do país, devendo, neste âmbito, ser tidos em conta três factores: primeiro, o salário; segundo, a estabilidade laboral; e terceiro, as condições de trabalho.”Repetindo esta última parte sobre a valorização do trabalho, o programa para as legislativas de 2025 vai bastante mais longe que o anterior, fixando como objetivo um aumento de 15% do salário mínimo no próximo ano (a partir dos 870 euros de 2025): “O nosso compromisso é claro: avançar para uma melhoria substancial das condições laborais, promovendo um aumento sustentado do salário mínimo nacional, com a meta de atingir os 1000 euros já em 2026”.De relevar que o mesmo programa retrocede em toda a linha face aos propósitos, expressos seis anos antes, de obrigar quem descontou, através da Taxa Social Única, para o seguro que é o subsídio de desemprego a trabalhar em troca do mesmo. Em 2025, em vez de obrigar os desempregados a trabalho forçado, o Chega pugna por melhorar a eficiência do apoio: “Defendemos um regime de proteção social mais eficiente que apoie efetivamente os trabalhadores em situações de desemprego, doença ou parentalidade, assegurando que ninguém seja deixado para trás.” Do mesmo modo, o partido descobriu que o slogan “salário igual para salário igual” faz afinal sentido: “A desigualdade salarial entre homens e mulheres continua a ser uma realidade inaceitável em Portugal, onde muitas mulheres recebem menos do que os homens para desempenhar as mesmas funções.” Da “inviolável liberdade de contratar” à regulação dos anúncios de empregoSe em 2019 embandeirava com “o Direito fundamental da Liberdade Contratual” (assim mesmo, com maiúsculas), animado pelo desiderato de colocar “no âmago do Direito o princípio inviolável da liberdade de contratar”, que definia como “cada um deve ser livre de contratar o que quiser, com quem quiser e da forma que quiser, (…) condição essencial da liberdade, no sentido da possibilidade de cada um dispor de si próprio — e de tudo o que é seu — como muito bem entender”, em 2025 foi ao ponto de querer regular os anúncios de emprego. É o que se lê na página 203 do atual programa: “Assegurar que os anúncios de trabalho contêm um conjunto relevante de informação como, por exemplo, a identificação do empregador e o valor certo ou estimado da retribuição ou que esta informação é prestada ao candidato no contato que precede a entrevista”.E o mesmo partido que quisera tudo desregular empenhava-se agora em que o organismo criado para fiscalizar o cumprimento das regras impostas pelo Estado nas relações laborais fosse reforçado: “Proceder ao reforço dos meios técnicos e humanos da Autoridade para as Condições do Trabalho, assegurando que esta tem todas as condições para proceder a fiscalizações regulares e dar resposta às denúncias recebidas.”Por outro lado, se em 2019 se insurgia contra os “privilégios dos sindicatos”, em 2024 e 2025 não podia estar mais alinhado com “os sindicatos do setor” na reivindicação da recuperação integral do “tempo de serviço congelado a educadores e professores do ensino básico e secundário”.Quanto à reposição das 40 horas de trabalho para profissionais de saúde, que, recorde-se, constava no programa político de 2019, evaporou-se no programa eleitoral de 2024. Este, pelo contrário, manifesta preocupação com a “degradação e sobrecarga da atividade profissional”, que considera ter “conduzido ao abandono da carreira pública e também a uma elevada taxa de emigração”, e propõe que se reconheça “a profissão de médico e de enfermeiro como de alto risco e desgaste rápido”.E se a palavra “flexibilidade” surge no programa do Chega de 2024, uma única vez, na página 70, associada ao trabalho (no programa de 2025 não consta nesse contexto), é-o num parágrafo em que vem atracada à “segurança dos trabalhadores”: “Rever o Código do Trabalho, tornando-o mais simples, garantindo flexibilidade às empresas e segurança aos trabalhadores, nomeadamente, promovendo o trabalho remoto e flexível e, eventualmente, implementar os Contratos de Zero Horas para Desempregados e Reformados.” “Simplificar” igual a desproteger?Que será, então, para o Chega, essa "simplificação" do Código do Trabalho — simplificação que, note-se, também a AD colocou, cripticamente, no seu programa para as legislativas de 2025? Em princípio, tendo em conta o contrato que o Chega fez com os portugueses para esta legislatura e as declarações mais recentes do seu líder, não poderá ter a ver com facilitação de despedimentos e aumento da precariedade. Tão-pouco com a ideia de que a lei laboral atual, que data de 2003 e foi alterada várias vezes desde então (a última das quais há dois anos, através de acordo em sede de concertação social) é “do tempo da União Soviética”. De resto, em declarações a 12 de dezembro, citadas pela Lusa, Ventura, ao mesmo tempo que recusou pôr-se do lado das centrais sindicais contra o Governo, afirmou que acabou o tempo em que a esquerda é que está ao lado de quem trabalha; agora, proclama, “é a direita que defende os trabalhadores”. Não será porém claro em que é que a atual posição do Chega, tal como argumentada pelo seu líder — que afirmou, ainda segundo a Lusa, “foi o Governo que levou os trabalhadores para esta greve, uma vez que havia tempo para negociar e impedir uma lei que quer despedir toda a gente de qualquer maneira e que aumenta a precariedade” — se distingue da dos sindicatos. Teresa Nogueira Pinto, "ministra sombra" do Chega para a Juventude e Cultura, pode ajudar a perceber. Presente esta terça-feira, 16 de dezembro, na RTP-N, no programa Jogo Político, foi questionada precisamente sobre o que o partido preconiza para a reforma laboral. À pergunta do pivô sobre “como é que se aumenta a flexibilidade sem trazer mais precariedade”, a política e professora universitária respondeu: "É necessário que as empresas não tenham medo de contratar, porque se têm medo de contratar, não contratam". Estarão mais capacitadas, prosseguiu, "para reter talento se houver mais dinamismo e flexibilidade no mercado laboral. O que não se consegue ter é tudo: a segurança absoluta de um emprego para o resto da vida e salários altos." O jornalista insistiu: "Mas há também menos proteção laboral, havendo mais flexibilidade, não?" Sem mostrar preocupação com aquilo a que o líder e candidato presidencial do seu partido denominou de “bar aberto para os despedimentos” nem rechaçar o pacote laboral do Governo, Nogueira Pinto confirmou: "Com a lei que está a ser discutida? Pois com certeza, mas é um trade-off." E questionou de volta: "O que é a proteção laboral? É eu ter a garantia de que fico no mesmo emprego para o resto da vida?" É não perder determinados direitos que foram conquistados e podem voltar atrás com esta lei, esclareceu o pivô, suscitando na representante do Chega um sorriso irónico. "Ah, mas isso é uma lógica muito interessante, muito progressista: direitos que são conquistados, direitos que depois lesam o verdadeiro direito de salários justos para quem trabalha, não podemos mexer neles, porque foram 'direitos conquistados’.” .Barómetro DN/Aximage. Greve geral tem apoio maioritário dos portugueses. Sindicatos também com opinião favorável.Chega "eclipsa" destruição da escola pública e do SNS do seu programa.Chega prepara "inversão" do seu programa anti-Estado Social.André Ventura anuncia que votará contra pacote laboral se não houver cedências do Governo