Estado de emergência. "Até parece antidemocrático, mas é exatamente o contrário"

O estado de emergência põe em causa os Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos? Quatro personalidades da sociedade portuguesa - Lídia Jorge, Francisco Seixas da Costa, Maria Manuel Mota e Irene Pimentel dão a sua opinião sobre esta decisão política que visa preservar a saúde dos portugueses.

"Uma guerra", "uma decisão excecional para um tempo excecional" foram as palavras usadas pelo Presidente da República para justificar ter tomado uma decisão inédita em Portugal: decretar o estado de emergência para combater um inimigo invisível que já fez quase 9000 vítimas mortais em todo o mundo, duas delas no nosso país, onde há registo de mais de 600 infetados.

Uma decisão que, sabe Marcelo Rebelo de Sousa, divide os portugueses, porque alguns entendem ser perigoso a suspensão de alguns direitos constitucionais, como a liberdade de circulação, a possibilidade de serem confinados compulsivamente ou a suspensão do direito à greve. Na declaração que dirigiu quarta-feira à noite ao país, o Presidente quis sossegar os portugueses e frisou que este é um decreto confinado, que não atinge os direitos fundamentais, que tem um fim muito concreto - combater um inimigo da saúde pública, o novo coronavírus. E que não suspende a democracia.

O DN ouviu quatro personalidades sobre esta decisão presidencial, o conteúdo do decreto que declara o estado de emergência. E todos concordam que, neste momento, os fins justificam os meios. A escritora Lídia Jorge, a cientista e Prémio Pessoa Maria Manuel Mota, o embaixador Francisco Seixas da Costa e a historiadora e Prémio Pessoa Irene Pimentel dão a sua perspetiva sobre a pandemia que mudou as nossas vidas.

Lídia Jorge: "Até parece antidemocrático, mas é exatamente o contrário"

Num primeiro momento, o decreto presidencial que declara o estado de emergência pode sugerir algum choque. "Até parece antidemocrático, mas, afinal, é exatamente o contrário disso - é um cinto de segurança, da democracia." Lídia Jorge, escritora, admite que possa haver sobre o documento a ideia da restrição dos direitos liberdades e garantias dos portugueses, mas não passa de uma impressão, sobretudo para quem já viveu em ditadura.

"Tudo aquilo parece antidemocrático, mas vendo a situação por que estamos a passar, trata-se do cumprimento das medidas fundamentais para travar a pandemia." E acrescenta: "Aquilo que o decreto do Presidente da República mostra é que, mesmo temporariamente, não estamos num estado autoritário. Este é um cinto de segurança de procedimento, mas não um princípio filosófico."

Não deixa de referir que, no 25 de Novembro de 1975, foi decretado o estado de sítio, mas que essa era uma situação de "uma grande balbúrdia política" e, portanto, muito diferente de um estado de emergência que pretende salvaguardar a saúde e a vida dos portugueses.

"O decreto do Presidente da República mostra que não estamos num estado autoritário."

Para a escritora - que está a cumprir isolamento voluntário em Boliqueime - a possibilidade de o Governo poder determinar o confinamento compulsivo em casa ou em estabelecimentos de saúde pode parecer "muito agressivo", mas não deixa de se tratar de uma medida fundamental para determinar cercas sanitárias para conter a propagação do covid-19.

Na mesma linha, Lídia Jorge entende que também poderá chocar a suspensão do direito à greve. "Para as pessoas da minha idade parece uma espécie de sonho mau, foi uma conquista adquirida com luta. Racionalmente, compreendo."

Espera agora saber como estas medidas se vão aplicar no terreno. "Se estou na rua, quem diz que vou às compras, vai existir alguma espécie de salvo-conduto?"

A forma como a declaração do estado de emergência será concretizado só esta quinta-feira será decidido pelo Conselho de Ministros. Mas Lídia Jorge não tem dúvidas que as normas serão acatadas facilmente pelos cidadãos - e dá como exemplo o isolamento voluntário que a maior parte dos portugueses adotaram ou até o consenso gerado no Parlamento sobre esta matéria. "Sinto uma grande comoção pelos laços de entendimento na Assembleia da República, pelo movimento democrático e por os partidos terem sabido colocar de lado questiúnculas e divergências."

"Era importante mostrar do ponto de vista biológico e clínico o que está a acontecer."

Há em toda esta crise uma questão que a escritora faz questão de ressalvar - e que considera negativa. "Existe um estigma sobre os mais idosos, que são só os eles que são infetados e isso não é verdade. É uma faixa etária vulnerável e as pessoas sentem uma grande angústia com isso, parece que o mundo os quer expulsar, que estão a mais", diz Lídia Jorge que sabe do que fala, já que está no Algarve a acompanhar a mãe, já com uma idade bastante avançada.

E também em nome da liberdade de expressão e do direito à informação - garantidas pelo decreto de Marcelo Rebelo de Sousa - que critica o pudor das autoridades sanitárias e do Governo em não mostrar os efeitos da doença, em não mostrar as instalações onde as pessoas estão a ser tratadas, os rastreios. "Temos a sensação que tudo se passa num sítio longínquo e que é tudo miraculoso. Chegado ao ponto de ser decretado o estado de emergência, era importante mostrar do ponto de vista biológico e clínico o que está a acontecer. Até a linha SNS24 aparece como um fantasma, devia-se mostrar como funciona."

Seixas da Costa: "Exceções existem para serem usadas nas situações de exceção"

Um decreto equilibrado, bem delineado e com sentido de proporcionalidade, que elenca medidas a tomar à medida das necessidades. Assim vê Francisco Seixas da Costa o documento assinado por Marcelo Rebelo de Sousa que decreta o estado de emergência em vigor no país nos próximos 15 dias. "Dá-me todas as garantias de respeito pelos direitos dos cidadãos e é adequado à calamidade que estamos a viver", afirma o embaixador, que faz questão de frisar que não é especialista em direito constitucional e fala como cidadão.

O embaixador considera ainda que vivemos tempos de estabilidade democrática plena - a prova é um Parlamento ativo e o facto dos cargos do Estado e da oposição serem ocupados por figuras com credenciais democráticas.

"O estado de emergência é decretado não por um cataclismo de natureza política, mas de natureza sanitária. E o decreto é cauteloso ao prever que o prolongamento dos 15 dias seja feito nos termos da lei, ou seja, que o mesmo procedimento terá de ser retomado", assinala.

Francisco Seixas da Costa não deixa referir o sentimento de preocupação que atravessa alguns portugueses de que se poderá estar perante uma suspensão da ordem constitucional e dos Direitos Liberdades e Garantias, nomeadamente quando se prevê restrições à liberdade de circulação e a suspensão do direito à greve. "Prezo muito a liberdade, lutei à minha medida por essas liberdades, mas exceções existem para serem usadas nas situações de exceção."

"Temos todos que perceber isto: a há uma liberdade fundamental que é a vida."

Sobre o direito à greve, admite que seja desagradável a suspensão dos direitos dos trabalhadores, mas lembra que os governos já têm o poder da requisição civil - como aconteceu na terça-feira com os trabalhadores do porto de Lisboa. "Apelo ao bom senso, estamos a falar de duas semanas."

A faculdade de o Governo poder requisitar propriedade e iniciativa privada é vista pelo embaixador como o mais parecido que acontece quando se vive numa situação de conflito. "Nesta guerra ninguém tem dúvidas que o inimigo é comum. Podemos todos ter Direitos, Liberdades e Garantias e morrermos todos ao lado desses Direitos, Liberdades e Garantias. Temos todos que perceber isto: a há uma liberdade fundamental que é a vida."

Maria Manuel Mota: "Não queremos chegar ao ponto do sistema colapsar e não conseguirmos salvar pessoas"

A cientista sobrepõe-se à cidadã quando fala da declaração do estado de emergência. Maria Manuel Mota, diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular (IMM), começa por dizer que "é muito importante não entrarmos em pânico e cumprirmos as regras".

E que, sabendo-se que o covid-19 afeta sobretudo as pessoas com idades superiores a 70 anos, o ideal seria que essas pessoas ficassem isoladas, protegidas do vírus. E que 60 a 70% da população ficasse infetada para criar imunidade comunitária, mas que não acontecesse ao mesmo tempo.

"Os avós nesta crise não são uma solução - não devemos aproximar-nos das pessoas mais velhas, mas temos de encontrar maneiras criativas de mostrar que queremos saber delas. É quase impossível separar estas duas populações, por isso, o isolamento é a forma mais eficaz de evitar uma catástrofe."

Importante - refere a cientista Prémio Pessoa em 2013 - é conseguir-se que os casos não se concentrem num curto espaço de tempo. "O que não queremos é chegar a um ponto em que o sistema está a colapsar e não conseguirmos salvar pessoas, em que o sistema de saúde não tenha capacidade de resposta."

Depois da cientista, fala a cidadã. Para analisar os direitos que perdemos como cidadãos e para dizer que tem "uma certa dificuldade" em aceitar a alínea no decreto da declaração do estado de emergência que prevê o confinamento compulsivo - "não deveria ser necessário usar essa ferramenta". E para admitir que pode ser controversa a suspensão do direito à greve, até porque nesta crise haverá muita gente que só receberá salário se trabalhar.

"Era muito importante que os hotéis pudessem ser usados para albergar pessoas mais velhas capazes, para os isolar."

Um ponto essencial no documento, considera, é a possibilidade de o Governo poder requisitar propriedade privada, nomeadamente bens imóveis e de unidades de cuidados de saúde. "Era muito importante que os hotéis pudessem ser usados para albergar pessoas mais velhas capazes, para os isolar."

Quanto aos privados da área da saúde, apesar de não acreditar que negassem colaborar numa situação de calamidade como a que estamos a viver, o facto da sua requisição estar contemplada no decreto é uma garantia: "Não podemos só contar com a boa vontade."

Maria Manuel Mota estava em Nova Iorque no ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. Às vezes dá por si a pensar que esta pandemia tem algumas semelhanças. "Só que naquela situação sabíamos o que tinha acontecido, havia uma resolução em curso. Neste caso - e aqui os cientistas têm que ajudar para não haver pânico - parece que está para acontecer um tsunami, vemos uma onda lá ao fundo que ainda não chegou."

Irene Pimentel: "É fundamental que a liberdade de expressão esteja em vigor"

"A situação portuguesa, europeia e mundial está muito periclitante. Fala-se em guerra, estamos perante um inimigo que não é humano, é biológico." E estas condições justificam para a historiadora Irene Pimentel que o Presidente da República tenha optado por declarar o estado de emergência.

Até porque, sublinha, não o fez por razões políticas - como aconteceu no 25 de Novembro de 1975 em que foi declarado o recolher obrigatório, que agora não está previsto.

"Há uma limitação do direito à resistência, à circulação e à greve e a possibilidade de o Governo requisitar a propriedade privada", decisões que, sublinha, só foram tomadas depois de uma discussão democrática que envolveu todos os atores políticos.

Isso prova que a democracia portuguesa e as instituições estão a funcionar, aponta a historiadora. Outro exemplo: "É fundamental que a liberdade de expressão esteja em vigor. É vital que as pessoas sejam bem informadas pelos canais verdadeiros e não por fake news. Neste momento, a comunicação social está a fazer o seu papel, a ter ainda mais importância."

"A Constituição que permite este estado de emergência foi aprovada pela nossa democracia."

A quem possa pensar que o estado de emergência pode beliscar os diretos constitucionais, a historiadora que foi Prémio Pessoa em 2007, responde: "Não estou com esse receio. O 25 de Abril não se fez para isso. A Constituição que permite este estado de emergência foi aprovada pela nossa democracia."

A perceção de Irene Pimentel é que o Governo queria deixar "esta bomba atómica" para uma fase mais tardia da pandemia - António Costa deixou isso claro na entrevista que deu na segunda-feira à SIC, onde mostrou preferência pelo estado de calamidade e lembrou que o pico do coronavírus só será atingido no final de abril.

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