"Podes mudar de casa?" Médicos e enfermeiros alvos de discriminação
Está a acontecer em Espanha e em França, mas em Portugal não há casos relatados. Bastonário da Ordem dos Médicos defende que testar todo os profissionais ajudaria a dissipar o medo.
São casos pontuais, mas que nos últimos dias se têm multiplicado. Em Espanha e França há cada vez mais relatos de médicos e de enfermeiros que estão a ser discriminados por estarem na linha da frente no combate à covid-19.
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Os vizinhos pedem-lhes que mudem de casa, que estacionem o carro longe, e nos EUA um juiz atribuiu a guarda de uma criança de 4 anos ao pai, porque a mãe é médica. Considerou que a menor estava em risco de contágio.
Em Portugal, segundo Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, não há casos conhecidos de profissionais que tenham sido alvo de atitudes discriminatórias por trabalharem com doentes infetados ou apenas por exercerem funções em unidades de saúde.
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No entender do bastonário, "as pessoas têm esse tipo de reação porque têm medo. Os espanhóis estão em pânico, tomaram medidas demasiado tarde", refere.
Miguel Guimarães diz que a sugestão que fez ao secretário de Estado da Saúde, António Sales, de testar todos os profissionais - ou pelo menos aqueles que estão na linha da frente no combate à doença - poderia ajudar a dissipar este medo, que a existir em Portugal não tem sido verbalizado.
"Acredito que até eu já possa ter sido olhado de lado, por trabalhar no Hospital de S. João. Nunca fui testado", diz Miguel Guimarães.
Médicos testados, população mais tranquila
Para o bastonário, se as pessoas soubessem que os profissionais de saúde estavam a ser testados, ficaram "mais descansadas".
"Deviam ser testados de 15 em 15 dias, é isso que defende a Ordem dos Médicos", acrescenta.
Em Portugal, só se testam médicos que tenham apresentado sintomas - ou que tenham estado em contacto com infetados, sem estarem protegidos - e mesmo que sejam assintomáticos.
Também Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, diz que não tem conhecimento de casos discriminatórios contra enfermeiros no âmbito do combate à covid-19.
"Se tivesse acontecido alguma coisa, com o nível de proximidade que os enfermeiros têm hoje com a Ordem - estão sempre a escrever e a fazer exposições - ter-nos-iam dito de imediato", explica a bastonária.
Ana Rita Cavaco sabe, pelas notícias, o que tem acontecido em outros países, mas não consegue encontrar uma explicação para a discriminação de que têm sido alvo os profissionais de saúde, que em Portugal têm recebido apoios e elogios de todos os setores.
"As pessoas que fazem isso [discriminam] são pouco evoluídas e pouco esclarecidas. Têm ainda muito para aprender na vida", afirmou.
"Ainda bem que não acontece em Portugal. Isto deixa-nos uma sensação de grande tristeza. Era suposto as pessoas aprenderam qualquer coisa [com a pandemia] e ficarem um bocadinho melhores. Não sabemos se é isso que vai acontecer", disse ainda Ana Rita Cavaco.
"Ratazana contagiosa", escreveram no carro de uma médica de Barcelona
O caso mais recente de discriminação contra profissionais de saúde aconteceu em Espanha, quando uma médica ginecologista encontrou o seu carro com insultos escritos. Silvana Bonino, que mora em Barcelona, preparava-se para ir trabalhar quando encontrou o seu automóvel vandalizado na garagem comum do prédio. Nas portas, tinham escrito: "Ratazana contagiosa".
A médica fez queixa às autoridades e, segundo a agência EFE, a seguir foi fazer um parto.
"Denunciamos esta indignidade humana e apoiamos todos os profissionais de saúde", lê-se no tweet da EFE onde é mostrada a imagem do carro vandalizado.
O caso de Theresa Greene, médica num hospital de Miami, nos EUA, é mais grave. A médica perdeu a guarda da filha de quatro anos por estar a trabalhar em plena pandemia de covid-19. Foi Greene quem contou a história à CNN, depois de ter visto o juiz atribuir a guarda total da criança ao ex-marido, uma medida temporária, mas que foi tomada contra a vontade da progenitora.
"É cruel pedirem-me para escolher entre a minha filha e o juramento que fiz como médica", disse ao canal de televisão.
"Não vou abandonar a minha equipa, nem os doentes que, cada vez mais, me procuram para lhes salvar as vidas, mas é uma tortura", desabafou.
Separados há dois anos, Theresa e o ex-marido dividem a guarda da filha, mas na semana passada o juiz Bernard Shapiro decidiu que a criança devia ficar com o pai para limitar o risco de contágio.
Em França, Sophie, uma auxiliar de enfermagem que vive em Toulouse, também encontrou uma surpresa ao chegar a casa, mas não foi das positivas.
"Conhecendo a tua profissão, seria possível, para garantir a nossa segurança, que não toques nas portas das zonas comuns ou que, nos próximos dias, fiques alojada num outro sítio? Não leves a mal, mas eu e os outros vizinhos iríamos sentir-nos mais seguros".
Trabalhadores de supermercado também são alvos
Na mesma semana, em Paris, um grupo de moradores ligou para o proprietário de um apartamento por aquele ter arrendado o espaço a uma enfermeira, conta a France Inter. Disseram que não queriam correr riscos - o mesmo motivo terá levado um grupo de vizinhos a pedir a uma enfermeira, através de um bilhete deixado no vidro do carro, que estacionasse o seu automóvel longe do deles.
Também os trabalhadores de supermercados estão a ser confrontados com pedidos para abandonarem as suas casas, uma vez que os outros moradores consideram que estão mais expostos ao vírus por residirem perto de quem trabalha em serviços de atendimento ao público.
Em Múrcia, Espanha, também Miriam Armero se viu confrontada com a discriminação dos outros moradores do prédio onde vive. Foi o filho de dez anos da empregada de supermercado que notou um bilhete colocado por baixo da porta, de casa e o leu em voz alta à mãe:
"Somos os seus vizinhos e queremos pedir-lhe que, pelo bem de todos, procure outra casa enquanto isto durar. Reparámos que trabalha num supermercado, e vivem muitas pessoas aqui, não queremos correr mais riscos", dizia a nota.