João Massano: "A democracia não pode ficar de quarentena. Tribunais não podem parar"

Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados alerta para a paralisação dos processos numa altura em que os direitos das pessoas estão a ser afetados devido ao surto de covid-19. E pede ajuda urgente para a classe.
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João Massano venceu as eleições para o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, o maior do país, para o período 2020/22 com 4571 votos contra os 2769 do advogado Luís Silva. No mandato anterior era vice presidente do CR. Licenciado em Direito e mestre em Ciências Jurídico Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa exerce advocacia desde 1999. É sócio na ATMJ - Sociedade de Advogados, RL

Foi eleito em dezembro para liderar o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados até 2022. Três meses depois está perante um início de mandato muito desafiante..
Sim, não estava à espera de ter um início tão complicado. Todos fomos lançados numa situação de exceção.

A pandemia está a criar muitos problemas a todos os setores da sociedade. Qual o impacto do covid-19 nos advogados, principalmente quando os tribunais estão praticamente parados?
Há colegas meus que vivem só do acesso ao direito e agora com os tribunais completamente parados não recebem e ficam sem poder exercer. Todos os setores de atividade estão a ser apoiados porque é que os advogados não o são? O sistema não pode ficar suspenso por tempo indeterminado. Vai "matar" a classe. Os advogados estão completamente desprotegidos. Temos de ser apoiados - a nossa profissão está em grandes dificuldades. Até o sr. Bastonário [Luís Menezes Leitão] já vem aderir à questão do apoio específico para a classe.

E para quem necessitar de recorrer a um advogado?
Todos sabemos que em época de crise os litígios disparam. Vai haver muitos atropelos aos direitos das pessoas, atropelos aos direitos dos trabalhadores, guardas partilhadas - se houver um isolamento profilático como ficam as guardas partilhadas? É como se fosse possível suspender os tribunais e os direitos das pessoas. Isso não é possível. Não podemos suspender o Estado de direito. A democracia não pode ficar de quarentena. Temos todos de encontrar soluções para que os direitos das pessoas continuem a ser garantidos. Sinto que corremos o risco de acontecerem atropelos aos direitos e como tudo está parado ninguém defende.

Há quem defenda os julgamentos por videoconferência...
Tenho dúvidas sérias em relação aos julgamentos por videoconferência. Mas por exemplo, há outros atos processuais que podem continuar a ser efetuados sem se colocar em risco a vida, são atos que não precisam de contactos diretos. Há países onde os ministros da Justiça têm aparecido, aqui a ministra [Francisca Van Dunem] só apareceu agora por causa das prisões. Passado o tempo inicial em que ficámos sem saber bem o que fazer, temos de passar à fase de ver o que podemos fazer de acordo com as instruções da Direção-Geral de Saúde - evitar o contacto social. Criar os meios para continuar a fazer as coisas. Defendo que o Ministério da Justiça deve dotar os tribunais e toda a gente de meios que lhes permita o teletrabalho. Não podemos parar tudo.

Falou na questão das prisões, o que lhe parece a medida de mudar a situação de alguns dos reclusos?
Toda a gente deve ter salvaguardada a sua saúde. Todos sabemos que o sistema prisional é um local onde a propagação da doença [conhecida como covid-19] ocorrerá rapidamente e coloca em risco toda a gente. Ou então o Estado consegue garantir a proteção adequada a toda a gente que está no sistema e as quarentenas, pelo que oiço parece que não deve ser possível. Mas também temos de ponderar o alarme social. Será uma medida a ponderar seriamente nas situações causadoras de menor alarme social. É daqui que tem de sair a decisão. O mais importante é a salvaguarda a saúde de todos neste momento, mas sem pôr em causa a paz social.

Voltando agora à sua eleição e aos projetos que apresentou. Quais são os seus objetivos para este período?
Quero continuar o trabalho que temos vindo a fazer na área da formação e contribuir para a melhoria da imagem da advocacia que está claramente degradada. Há um certo aproveitar de algum adormecimento da Ordem dos Advogados para se fazerem ataques que não têm merecido resposta. Os advogados têm sido atacados por todos os lados e por pessoas que pretendem praticar atos dos advogados e invadir a nossa esfera de atuação. Por isso está na hora de os advogados contra-atacarem.

Como vai ser esse contra-ataque?
Os advogados têm de demonstrar para que é que servem e têm de explicar a sua função social. Temos de sair da ideia de mercenários que nos tem sido colada. Da imagem que os advogados são vigaristas, que recebem fortunas e que defendem os ricos, os poderosos, os corruptos e tudo o mais que seja conotado negativamente. Os advogados são uma classe constituída por várias, se quisermos chamar, subclasses. Temos advogados em prática individual, temos advogados em prática societária, dentro da prática societária temos pequenas sociedades, médias sociedades, grandes sociedades e, além do mais, ainda temos advogados inscritos no acesso ao direito e temos, por exemplo, advogados que têm só como atividade profissional a realização de documentos particulares autenticados [as escrituras]. É isso que acho que não passa para a opinião pública. Não se percebe como é que uma classe que faz o que nós fazemos está sistematicamente colada aos mercenários. Porquê?

E como se podem defender?
Não há outra classe profissional como a nossa que suporte o acesso dos mais carenciados aos serviços que prestam. Os advogados com as suas quotas pagam a gestão administrativa do sistema de acesso ao direito, ou seja, é graças às quotas que funciona o apoio judiciário [as defesas oficiosas]. Caso contrário o sistema parava. Só o conselho regional de Lisboa gasta perto de meio milhão de euros com o apoio judiciário para ajudar os mais carenciados. Que me lembre não há mais nenhuma classe que suporte o sistema no qual trabalha - não sei de nenhum médico que pague o SNS, diretamente com a sua remuneração. Os juízes não pagam a justiça dos mais pobres, dos mais carenciados e os advogados pagam, os advogados pagam a gestão do sistema. Os advogados têm despesas no âmbito do apoio judiciário que não lhes são pagas e as remunerações desse apoio judiciário não são atualizadas há 16 anos...

Mas recorrer à justiça também é caro....
Se deixássemos de contribuir parava o acesso à justiça dos mais carenciados. E depois a classe é identificada como mercenária. Sabemos que, como acontece em todas as profissões, há bons e maus profissionais, mas não faz sentido que a nossa classe seja sistematicamente identificada com maus exemplos que são uma franja. E isto é um problema social.

Estamos a falar dos casos mediáticos?
Claro.

Mas esses processos andam anos nos tribunais, com recursos e mais recursos. Tudo isso faz para transmitir essa imagem que está a falar, não?
Claro, mas acho que essa imagem passa precisamente porque, e aí se calhar a falha é nossa, não conseguimos transmitir o oposto. Todas as classes têm naturalmente situações que poderão merecer desconfiança da sociedade, mas o problema é que nós, a maioria dos advogados, são pessoas que se dedicam a processos do cidadão comum. Porém, quando se fala dos advogados parece que há uma identificação, única e exclusivamente com aquela franja mais conhecida e depois procura crucificar-se os advogados mais conhecidos dizendo que só defendem corruptos, vigaristas. E depois toda a classe acaba por ser identificada. O que se passa neste momento com os advogados é que há uma identificação excessiva com casos marginais que podem ou não merecer censura, depende, porque repare se me disser que há um advogado que fica com dinheiro de um cliente e merece censura, eu diria que sim.

E a não comunicação por parte dos advogados de negócios que estão previstos na legislação, por exemplo, do branqueamento de capitais...
Temos de ter em atenção que existe o sigilo profissional e naturalmente a relação e a confiança que tem de existir entre o cliente e o advogado. Seria como se as pessoas que vão fazer a confissão considerassem que o padre pode ir dizer tudo o que ouvir. Se fosse assim não iam lá. Os advogados são parte essencial do sistema de justiça e têm de ter a confiança dos clientes e esses têm de saber que o advogado está obrigado a guardar segredo profissional, não há volta a dar a isto. Permita-me dar-lhe o exemplo do processo Rui Pinto [hacker que está acusado pelo Ministério Público de seis crimes de acesso ilegítimo, um de sabotagem informática, 14 de violação de correspondência, 68 de acesso indevido e um de extorsão na forma tentada], não vou falar do caso concreto mas vou dizer-lhe o seguinte: o acesso a um sistema informático é penalizado, portanto ... e às vezes parece que nos esquecemos disto.

Mas há advogados a defender que essa intrusão até pode servir um bem maior que é fazer denúncias de ilegalidades...
Não posso falar, nem devo falar do caso em concreto, nem me quero pronunciar sobre a acusação do sr. Rui Pinto, o que quero dizer é que, em tese e em abstrato, o acesso ao sistema informático por alguém que não esteja legitimado por uma investigação judicial ou com autorização do juiz não é possível e nós temos de perceber que não podemos passar a imagem errada de que é lícito andar a invadir sistemas informáticos porque se pensa que poderá haver um crime. Isso é muito perigoso porque de repente podemos ter uma multiplicação de situações em que as pessoas andam a invadir sistemas e dizem: eu estou aqui [num computador de terceiros] porque acho que há um crime.

Pode criar situações perigosas...
Imagine o poder que poderá ter alguém com acesso à informação contida no seu computador, e que lhe diz: meu caro, ou fazes o que eu quero ou então eu vou divulgar por exemplo que tem uma situação ilícita. Portanto isto é muito perigoso. E se nós legitimamos de forma indiscriminada o acesso a computadores pessoais ou sem ser pessoais corremos um risco civilizacional muito grande e teremos "ene" detetives privados atrás de toda a gente. E isso eu não quero.

Isto mostra um problema cultural...
Há a cultura do Eu e o narcisismo elevado ao extremo e isso é um problema. O exacerbar do Eu em detrimento do social e da sociedade pode ter consequências gravíssimas a nível da própria estruturação da sociedade, porque quando nós temos situações, perdoe-me a expressão, de glorificação da estupidez, corremos o risco de ficarmos todos estupidificados e a sociedade morre. E quando aceitamos que haja polícias que são empurrados contra carros, que são rodeados por pessoas e ninguém faz a condenação dos atos e ninguém sabe o que acontece, em termos de punição dos infratores, pode produzir o efeito mimetismo, ou seja a repetição. Noutros locais e quando as polícias se sentem ameaçadas, a tendência será para sempre que virem uma situação que merece a sua intervenção olhar para o lado e se calhar isso vai conduzir à erosão das regras sociais e da própria sociedade porque o exacerbar do EU e o condenar de determinadas situações que visam a proteção da sociedade como um todo é muito perigoso.

E qual é o papel dos advogados nestas situações?
Os advogados, na minha opinião, têm de contribuir para alertar para situações que não são admissíveis socialmente, por exemplo, falando no "caso Marega", os advogados podem contribuir para alertar para o fenómeno e infelizmente este foi reduzido a uma vertente, que é o racismo, que me parece não ser a única vertente a realçar.

Voltamos à questão da cultura da sociedade...
É uma cultura civilizacional, porque repare, o que é que se passa, se o Marega vestisse as cores do Vitória de Guimarães aquilo não acontecia e quem vai ao futebol sabe, perfeitamente, que a questão é mais abrangente do que isso. Eu fui ver um Sporting-Benfica [em fevereiro deste ano], por exemplo, e o jogo esteve parado cinco minutos no início da segunda parte porque estavam a atirar very-lights para dentro do relvado. E ninguém disse nada, isto é gravíssimo. Mais do que racismo é uma situação de ódios que são extravasados no futebol, e que eu acho que o papel dos advogados aqui, será, nessas situações procurar denunciar e sublinhar que são situações que não devem ser toleradas. Eu não posso tolerar num estado de direito democrático que só porque sou órgão do clube A ou clube B seja empurrado ou seja agredido porque não gosto do presidente, isto não é legítimo.

O ano da defesa do idoso

Na sua tomada de posse disse que iria ter todos os anos uma bandeira...
Sim, e este ano é a defesa da pessoa idosa, agora vou ser um bocado limitado na minha ação por causa do covid-19, porque eu tinha aí uma série de ações já previstas e que vão ser suspensas porque ninguém vai ouvir. Mas nós estamos numa sociedade, e, atenção, tenho 3 cães, 2 gatos gosto de animais, mas, não posso aceitar viver numa sociedade que fica chocada e bem, e bem, com maus tratos a animais, mas se uma pessoa idosa for encontrada num caixote do lixo ninguém diz nada de especial, não se faz o mesmo burburinho. Não estou a dizer que se deixe de condenar os maus tratos a animais, acho que se tem que condenar, e cada vez mais a justiça tem de ir atrás de quem maltrata animais como está a fazer, mas nós não nos podemos esquecer que as sociedades são constituídas essencialmente com regras que se destinam a assegurar uma convivência entre as pessoas também. E a convivência entre as pessoas passa por respeitar os mais idosos e basta olhar para as culturas, por exemplo, asiáticas, onde o idoso é a figura central, é venerada, salvaguarda os seus conhecimentos aproveita os seus conhecimentos. Cá em Portugal, parece que a pessoa, a partir de uma certa idade, caixote do lixo com ela, para ver se não chateia e se morrer depressa ainda melhor.

Lisboa tem problema grave de pessoas idosas a viver sozinhas, sem acompanhamento..
E ainda é pior. Repare, se na violência doméstica, as denúncias são difíceis, na violência contra o idoso ainda são mais difíceis. Qual é o idoso que vai denunciar o filho? O neto? É muito pior, é muito mais difícil e a coação diária desde os netos aos filhos relativamente ao idoso para lhes dar as pensões, por exemplo, existe. Há pessoas que se aproveitam da situações de solidão, como referiu, para serem beneficiários de testamentos, beneficiários de transmissões de propriedade e outras situações.

Transmissão de contas bancárias, de dinheiro existente nas contas bancárias.
E há situações chocantes que têm que ser denunciadas como por exemplo, não sei se conhece, eu infelizmente tive que conhecer, os hospitais têm uma zona onde ficam os idosos que não têm para onde ir, há pessoas que são depositadas autenticamente que depois de terem sido tratadas, só não saem porque ninguém as vai buscar.

O Conselho Regional de Lisboa fez várias ações de formações, tem outras previstas e colocadas em prática. Essa vossa necessidade de intervir com formação tem a ver com a necessidade de dar mais formação aos advogados ou parte também do facto de a formação inicial dos advogados não estar a acompanhar as mudanças na sociedade?
Há aqui duas situações. Se me pergunta se era melhor ver como está a ser a formação nas universidades, não sei como é que o ensino corre nas universidades para lhe poder dizer que se corre bem se corre mal. Mas, coloco uma outra perspetiva, a perspetiva que eu enquanto presidente do Conselho Regional assumo e que assumi enquanto vice-presidente: as alterações legislativas são tantas, as mudanças são tantas, a falta de tempo para nos prepararmos é tanta, que quero dizer aos advogados que têm aqui um programa de formação. Quero que as pessoas se capacitem cada vez mais e compreendam que têm de ser cada vez melhores para poderem prestar um serviço cada vez melhor ao cidadão

E a adesão?
Tem sido fantástica. O ano passado ultrapassámos os 17 500.

O covid-19 também merece essa atenção, essas formações?
É a minha ideia realizar, assim que consiga que os oradores estejam disponíveis para isso. Há estes constrangimentos todos de circulação, psicologicamente as pessoas já perceberam que têm de se movimentar menos - suspendemos no Conselho Regional também os estágios presenciais e estamos a fazer sessões online, na sexta-feira (3 de abril) vamos fazer uma sobre as questões que se levantam com o estado de emergência - e o que estou a equacionar em relação ao covid-19 é a realização de uma conferência preferencialmente com outras classes em que se consiga dar um enquadramento jurídico da questão, naturalmente sem acesso público feita só em streaming.

No seu discurso da tomada de posse criticou a entrega de assuntos referentes aos advogados a outras profissões. Este também é um problema com que o Conselho se debate há muito tempo...
Acho que é fundamental neste momento comunicar com a sociedade e o comunicar com a sociedade implica o quê? Explicar à sociedade o que é que os advogados fazem. Acho que as pessoas ainda não perceberam isso.

Num artigo de opinião referiu-se à realidade paralela do sistema judiciário. O que é?
Continuo a achar que a comunicação do judiciário, e aqui incluo também os advogados, não é boa, para não ser um bocadinho mais duro, mas não é boa. E o que é que se passa, passa-se que, como eu também já referi, muitas das vezes as decisões são criticadas porque não são compreendidas. E nós como que criamos uma realidade paralela. E isso é um problema de todo o sistema e muitas das vezes o sistema ganharia em equacionar como comunicar. Se eu lhe explicar como é que eu cheguei a "A" se calhar já percebe, mas se eu só lhe disser a decisão é "A" e depois vai-me perguntar, então mas é "A" porquê? E o que é que acontece se eu só souber a decisão? o que acontece é que eu vou começar a conjeturar porque é que chegámos a "A" e não chegámos a "B" e isto é que é o problema. Se, naturalmente, não podemos ir atrás dos ímpetos populares, e temos "ene" situações de julgamentos populares, porque temos condenações mediáticas e na praça pública, isso é um risco porque a pessoa já foi enlameada e depois ninguém lhe tira essa lama de cima. Temos de aceitar as críticas do cidadão e a melhor forma de tentar contornar as críticas não é ignorando-as, é tentando explicar ao cidadão porque é que as coisas acontecem daquela forma e isso é fundamental.

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