Um referente em crise

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Está em curso em Itália – e já com uma votação positiva no Senado – uma revisão constitucional com incidência na área da Justiça, em particular no governo e nas carreiras das magistraturas, em execução do programa de Meloni. “La riforma della giustizia la vuole il popolo”, diz ela.

Nestes domínios, olhamos sempre muito para o que preconizam organizações da mais diversa relevância, mas dedicamos pouca atenção ao que acontece nas democracias europeias. Depara-se, com frequência, um acentuado desconhecimento, e mesmo desinteresse, acerca de como se passam as coisas – ou das mudanças em curso – em Espanha, França, Itália, Alemanha, Reino Unido… quando, sob diversos ângulos, sobram razões para prestar atenção.

No caso da Itália há mesmo especiais motivos. Inspirando-se na constituição italiana houve quem defendesse, na nossa Constituinte, a consagração da autonomia do Ministério Público. A maioria rejeitou, porém, essa consagração, contra a qual se expressaram, em particular, os constituintes José Luís Nunes e Sousa Pereira (“Não podemos cair na concepção corporativa de uma magistratura do Ministério Público” – foi então sustentado, com ganho de causa). Na versão original da nossa Constituição, a opção ficou-se por “estatuto próprio”, “responsabilidade” e “subordinação hierárquica”. Seria a revisão de 1982 a abrir a Constituição a “um órgão colegial com membros do MP de entre si eleitos” – e a autonomia entraria , finalmente, na revisão de 1989. Contra a lenda instalada, os principais traços constitucionais que hoje mantemos não foram “importados” por decisão dos constituintes, mas chegaram por via das duas revisões ocorridas nos anos oitenta. Foi depois contrariado, e gorou-se, nos anos noventa, o projecto de reunir num só os conselhos das duas magistraturas, o que na altura teria formalmente aprofundado a “italianização” do sistema.

O que se pretende agora na reforma em marcha em Itália? Em primeiro lugar, a separação das carreiras de juízes e procuradores (até agora constitucionalmente uma carreira única). Em vez de um único Conselho Superior de Magistratura – em que participam, em termos diferentes, juízes e procuradores, e é presidido pelo PR – passará a haver a haver dois conselhos, como entre nós acontece. Mas os pontos mais relevantes são outros. As competências disciplinares serão retiradas aos conselhos e confiadas a um Alto Tribunal para a Justiça Disciplinar, em que terão também assento elementos exteriores às magistraturas indicados pelo Parlamento e pelo PR (um dos quais presidirá). E as regras para o preenchimento dos órgãos são revolucionadas com a atribuição dum papel decisivo ao sorteio, mesmo no caso dos nomes indicados pelo Parlamento.

Há extensos argumentos, bons e maus, para cada uma destas alterações, mas não é o seu mérito que está aqui em exame. O que é significativo é que na experiência italiana – que constituiu o referente externo, praticamente único, nos anos em que se ergueu o nosso modelo de MP e de governo das magistraturas – se procure agora, após pedregoso caminho, este momento de avaliação e de escolha.

Apesar dos excessos, falhas e atropelos ultimamente acumulados, tudo se passa entre nós como se tal momento pudesse ser indefinidamente adiado. A desatenção imperante permitirá, talvez, ir acreditando que o carteiro da mudança não baterá de novo à nossa porta. “E pur si muove…” Se tardarem as respostas necessárias, em países como o nosso serão agravados os riscos e os danos a suportar.

Jurista, antigo ministro. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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