Vamos imaginar que, certo dia, Dulcineia, de 71 anos, enquanto regressa da loja local dos CTT, onde foi levantar a pensão, pelas 18h, numa noite de inverno, é rodeada por 5 homens fortes que lhe pedem a carteira. Nenhum está armado, nenhum usa ou ameaça violência. Limitam-se a rodear a Dulcineia e a pedir-lhe a carteira. A Dulcineia dá-lhes a carteira, e os 5 homens vão-se embora. O encontro não durou mais do que 2 minutos. Quando chega a casa, a Dulcineia conta o episódio à filha, explicando que, não sabe bem porquê, mas acabou por lhes dar a carteira. Não consegue dar sentido ao que se passou, e sente-se culpada por ter oferecido o dinheiro da pensão a 5 estranhos. A filha pergunta-lhe sucessivamente: estavam armados? Não. Ameaçaram-te? Não. Disseram-te “e melhor dares a carteira já”? Não, limitaram-se a dizer, um deles, aliás, “dá-nos a carteira”. A filha fica irritada e zanga-se com a mãe por ser tão generosa, e tão facilmente ter oferecido o dinheiro da pensão a 5 estranhos. No dia seguinte, Dulcineia conta o episódio à vizinha, enquanto tomam o pequeno-almoço no café da esquina. Está muito envergonhada e triste, e explica como a filha ficou zangada e desiludida. Não sabe o que fazer, nem como vai pagar as contas nesse mês. A vizinha faz as mesmas perguntas, e obtém as mesmas respostas. O caso chega aos jornais e o país todo fica suspenso num debate complexo: será furto, será roubo, será caridade? Será a Dulcineia uma vítima, ou uma mulher fácil com o seu dinheiro?Se esta história vos parece absurda, podemos trocar uns pormenores. A Dulcineia tem 18 anos, e os 5 rapazes, em vez de apenas pedirem a carteira (e também ficaram com o telemóvel), pediram sexo em grupo. E assim chegamos ao caso que ficou conhecido como “La manada”, que ocorreu em Pamplona, em 2016. Também aqui, os 5 rapazes limitaram-se a rodear a vítima e a “pedir” sexo. Os rapazes seguiram a vítima quando regressava ao carro, rodearam-ne, levaram-na para uma entrada de um prédio (um local mais escondido) e impuseram-lhe sexo. A vítima nunca disse que não. Mas, também, nunca disse que sim. Este caso tem pormenores mais macabros: os agressores filmaram o ataque e partilharam vídeos em grupos, nos telemóveis dos agressores descobriu-se, pelo menos, um outro ataque semelhante, e roubaram o telemóvel da vítima. Foram, após muitas decisões e recursos, condenados a 15 anos de prisão por violação coletiva. Mas a questão central é semelhante. Quando é que há consentimento?Que haja dúvidas, em qualquer dos casos, é igualmente absurdo. Os homens não têm um direito fundamental a ter sexo com uma mulher (ou jovem, ou criança), e a existência de uma mulher na proximidade de um homem não permite presumir a existência de consentimento para atividades sexuais. Porém, muitas vezes, parece ser essa a perspetiva da sociedade e, infelizmente também, de algumas decisões judiciais. Sendo certo que a regra em processo penal – assente no in dúbio pro reu – é a de que compete à acusação provar a existência de crime, faria sentido, no julgamento dos 5 rapazes pelo crime de roubo, exigir que a Dulcineia provasse que demonstrou claramente que não queria dar a carteira? Ou, como é obvio, a ausência de consentimento decorre naturalmente do contexto, dentro da normalidade da experiência comum?A razão pela qual as coisas se complicam tanto na criminalidade sexual assenta na ausência de uma “normalidade da experiência comum”. Não só por falhas estruturais na educação sexual (que este Governo considera dispensável), mas também porque a nossa compreensão da sexualidade está contaminada por séculos de patriarcado, e da noção de que o homem tinha mesmo um débito de sexo sobre a mulher. É por isso que foi tão difícil compreender que um homem casado não pode forçar a sua mulher a ter sexo (só a partir da década de 10 deste século é que os tribunais passaram a reconhecer a violação entre casados como um crime autónomo da violência doméstica). É por isso que o ónus de evitar a violação é imposto quase exclusivamente sobre a mulher, mesmo quando ainda nem mulher é, devendo estar vigilante e viver em constante medo de cometer um erro ou descuido. Em contrapartida, pouco é ensinado ou exigido aos homens, embora sejam estes, quando na posição de agressores, os únicos responsáveis pelo crime. Quem rouba é o único responsável pelo roubo, quem viola é o único responsável pela violação.Deveria ser simples, mas ainda não é. Como nos demonstra o caso recente da jovem de 16 anos que ficou em risco de vida por ter sido violentamente penetrada vaginalmente por um homem de 25 anos, após uma festa, quando se encontrava em casa deste (ver aqui). As perguntas mais comuns são: e porque é que a rapariga estava em casa do homem?; e porque é que estava embriagada?; e porque é que não gritou, resistiu? Não vi ainda ninguém perguntar: e porque é que este homem se dirigiu a uma jovem de 16 anos embriagada, tirou-lhes as calças, e penetrou-a com tal violência que a deixou em risco de vida? Será este tipo de atuação a normalidade da experiência comum? Temos todos dias mulheres a entrar nas urgências dos hospitais com laceração do saco de Douglas, a precisarem de cirurgias de urgência após a relação sexual? Este tipo de lesão, extremamente rara, extremamente grave, não acontece por acaso, não é um mero acidente. Acontece, como nos diz a práxis médica, em relações traumáticas não consentidas e, ainda mais raramente, quando existem lesões prévias, piercings penianos, e nos pós-parto se não houve ainda recuperação total da mulher.Mas nem assim, com uma evidência física medicamente comprovada, esta vítima mereceu credibilidade para o tribunal, que absolveu ao arguido. E porquê? Por três razões. Primeiro, porque não resistiu fisicamente (não gritou por ajuda). Segundo, porque não considerou imediatamente que o que lhe aconteceu foi violação. Ora, se a vítima, qualquer vítima, faz parte desta nossa sociedade que tem ainda ideias tão absurdas sobre a sexualidade e o consentimento, é natural que não percebesse que o que lhe aconteceu foi uma violação. Na cabeça da vítima – e de tantas pessoas ainda – se aceita ir para casa de um homem num “clima de sedução”, sujeita-se, perde o direito a dizer não (mesmo que diga não). Pois não gritou, nem mordeu, nem resistiu fisicamente. Afinal, parece mesmo que o homem tem um direito fundamental a ter sexo com qualquer mulher que “apanhe”, a não ser que essa mulher lute até à morte para defender o seu direito, já não tão fundamental, a não ter sexo com aquele homem.Terceiro, e esta é uma questão central, porque hesitou em apresentar queixa, tendo sido pressionada pelos amigos (adultos) do arguido a ficar calada. Centro-me nesta questão, não só porque o caso ainda está em recurso, mas também porque a Assembleia da República aprovou há pouco tempo uma proposta no sentido de tornar público o crime de violação. As mensagens da vítima com amigos, e com os amigos do arguido, foram escalpelizadas ao pormenor para se tentar perceber até que ponto é que a vontade de apresentar queixa era espontânea, verdadeira, desinteressada. Aliás, fica-se com a impressão de que a única vontade da vítima que foi seriamente analisada foi a vontade de apresentar queixa, e não aquela que era objeto do processo: a vontade de ter sexo ou não com o arguido.Como tinha escrito aqui, a qualificação dos crimes sexuais graves como semipúblicos “promove a centralização do processo, e a responsabilidade pela existência do mesmo, sobre a vítima, contribuindo para as narrativas de falsas queixas ou de interesses espúrios na apresentação de queixas. A apresentação de queixa é ainda um indício de forte suspeição sobre a própria vítima, o que pesa certamente na decisão de ficar em silêncio.” Mesmo num caso como este, em que a vítima é menor – e, portanto, o crime é publico, não depende da vontade da vítima – a posição da vítima sobre a queixa foi central no julgamento. E, muito provavelmente, só não houve desistência da vítima – são claras as pressões que sofreu para ficar calada – precisamente porque se trata de crime público. Veja-se que o arguido, de 25 anos, é pai de duas crianças pequenas, tinha trabalho fixo, e já esteve cerca de 1 ano em prisão preventiva. Uma condenação vai certamente “estragar-lhe” a vida e privá-lo de uma relação normativa com os filhos.Agora pergunto, e se esta vítima tivesse 18 ou 19 anos? Deveríamos colocar toda a responsabilidade em “estragar” a vida ao seu agressor nos seus ombros? Ou, tal como num crime de roubo, violência doméstica ou falsificação, deve ser o Estado, com os seus meios próprios, a assumir a responsabilidade do processo penal?