Saúde mental sem espaço para hesitações

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Domingo, de uma em uma hora (ou até em intervalos menores), um canal televisivo reportava insistentemente, mesmo sem nada de novo a acrescentar, o desaparecimento da irmã de um conhecido apresentador de televisão, revelando tragédias pessoais que a mulher enfrentara como que a dar contexto para justificar o sumiço e ausência de contacto com familiares, que já durava há dias. Mais tarde, houve realmente um desenvolvimento na história, quando foi revelado que a mulher estava internada em Madrid a receber cuidados médicos do foro psiquiátrico.

Segunda-feira, às primeiras horas do dia, é revelado um guia da Ordem dos Psicólogos (OPP) destinado a pais e mães, focado nos sinais de alerta, formas de prevenção e como agir se o(a) filho(a) estiver a ser alvo de cyberbullying. A OPP esclarece que o motivo para esta publicação é o facto de a maioria das vítimas ocultar a situação dos pais, por “medo de perder o acesso às redes e por vergonha”. Ou seja: preferem sofrer sozinhos, tantas vezes sem a maturidade e as ferramentas mentais adequadas, do que buscarem ajuda partilhando o problema com a família.

Saúde mental sem espaço para hesitações
‘Cyberbullying’. Maioria dos jovens oculta casos por vergonha e medo de ficar sem telemóvel

No mesmo dia, surgiu outra notícia a marcar a atualidade: José Manuel Anes, 81 anos, fundador do OSCOT e especialista em criminalidade e terrorismo, fora brutalmente esfaqueado em casa pela própria filha, que seria detida já depois de publicar uma série de mensagens nas redes sociais dando conta de pormenores macabros sobre a tentativa de homicídio, tudo indícios de um episódio agudo de perturbação mental.

Os três casos têm em pano de fundo o mesmo fio condutor – os problemas de saúde mental, a pandemia (tantas vezes) invisível do século XXI que afeta cada vez mais pessoas. É, por todas as razões, um tema que vale a pena discutir e combater. Esse combate pode ser feito de várias formas. Por exemplo, através da coragem revelada por João Vieira de Almeida ou Horta Osório, duas figuras públicas que ocupam cargos de elevada responsabilidade e que tornaram públicos os casos de esgotamento por que passaram, ajudando assim a combater o estigma que persiste sobre esta doença. Um estigma que, aliás, até existe dentro da própria classe médica: um exemplo disso são as juntas médicas, que ao avaliarem baixas psicológicas olham sobretudo para o parecer do médico assistente (normalmente o médico de família), desvalorizando o que o psicólogo tenha a dizer sobre o estado do paciente.

Mas esse combate não se faz sem investimento, sem reforçar os quadros de psicólogos nas unidades de saúde (serão pouco mais de mil no SNS, quando, em 2023, estavam inscritos na Ordem cerca de 28 mil profissionais), nas escolas públicas e noutras instituições do Estado. O caminho tem de ser o de aumentar a oferta à população, por isso não deixou de ser espantosa uma constatação feita por Miguel Xavier, coordenador nacional das políticas de saúde mental, no passado dia 10 de outubro: “No Orçamento do Estado [para 2026], que tivemos acesso ontem, não está sequer a palavra saúde mental. No entanto, estamos convencidos que há um empenho governamental e que a reforma da saúde mental vai continuar sem grandes problemas”. A ministra da Saúde, Ana Paula Martins, também garante que o investimento vai continuar e é bom que assim seja. Até porque a dimensão das mexidas na legislação laboral que o Governo está a preparar – as quais podem, entre outros aspetos, vir a facilitar despedimentos e cortar direitos parentais – promete alargar o número de pessoas em risco de sofrer algum tipo de problema psicológico (um alerta feito pela própria OPP num parecer recente). A promoção da saúde mental é uma matéria em que o Governo não pode sequer hesitar.

Editor Executivo do Diário de Notícias

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