Os portugueses são brancos?

Questão sobre etnia surgiu nos EUA mal se soube que o último protagonista da tradição local de tiroteios em escolas foi português. É uma das várias lições que podemos retirar deste caso horrível: há sempre alguém para quem somos o Outro.
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Foi uma pessoa a viver à margem da sociedade, cuja existência nos locais públicos, como a de todos os sem-abrigo, é escorraçada e vista como inútil para a comunidade, a ser capaz de reparar no que ninguém reparou..

Sem esse homem que vive na rua, e do qual nada sabemos a não ser o que fez — o nome divulgado foi apenas “John” — é possível que a polícia americana nunca fosse capaz de identificar o autor do tiroteio na Universidade de Brown, a 13 de dezembro, e do homicídio, dois dias depois, do físico português Nuno Loureiro, em Boston.

Recordemos que as autoridades americanas estavam, até ao momento em que souberam de um comentário de John na rede social Reddit no qual ele chamava a atenção para o automóvel conduzido por um homem do qual suspeitou e que encontrou ao pé da Universidade de Brown, completamente a zeros quando à identidade do autor do ataque. Foi a matrícula do carro, alugado com o nome verdadeiro do homicida, a permitir “desvendar” o caso – e descobrir que a morte em Boston seria atribuível à mesma pessoa (por o mesmo veículo, embora com outra matrícula – por o condutor ter mudado as chapas – ter sido captado em Brookline, a zona onde vivia e foi atingido Nuno Loureiro).

Na sociedade de hipervigilância que é a americana, com a maior parte do espaço público coberto por câmaras, a única coisa que as autoridades, que começaram por negar a relação da morte de Loureiro com o tiroteio em Brown (e por boas razões: ocorreram em estados diferentes e não foi usada a mesma arma), conseguiram foi identificar “uma pessoa de interesse” nas imagens captadas perto de Brown no dia do ataque – um homem barrigudo, com uma máscara tipo Covid que lhe tapava o rosto e andar característico, e do qual nem conseguiam concluir aquilo que geralmente as autoridades, sobretudo as americanas, começam por identificar: a etnia.

John contou depois que reparou, junto a Brown, no dia do ataque, num homem que desbloqueou um carro e parecia dirigir-se ao mesmo mas, de repente, mudou de direção e começou a andar à volta do quarteirão. Intrigado, seguiu-o e abordou-o. O homem, numa interação captada por videovigilância, reagiu mal, acusando-o de o assediar. John acabaria por se dirigir à polícia e contar o que vira – levando, como foi afirmado por pessoas ligadas à investigação, ao solucionar relativamente rápido dos dois casos.

Esta é a primeira lição que, nesta quadra tão apropriada a fábulas, devemos retirar: a salvação, ou neste caso a proteção e a solução, pode vir daqueles que votamos à invisibilidade, ao desprezo e à suspeição. Foi por querer agir como protetor da comunidade que John seguiu aquele homem cujo comportamento lhe pareceu estranho – ele que como sem-abrigo a maioria vê por definição como suspeito.

A segunda lição é-nos dirigida como país. Um país onde uma percentagem importante dos cidadãos mostra entusiasmo por demagogos cuja principal característica é o discurso discriminatório baseado na etnia e na origem nacional; demagogos que afixam cartazes nos quais visam apontar imigrantes ou grupos étnicos como “fora da lei”, indesejáveis, a expulsar, a “remigrar”.

Nunca até agora – que se saiba, já que só se soube da identidade deste por acaso, tão cuidadosamente foram os crimes planeados – tinha acontecido um português tornar-se famoso no estrangeiro por autoria de homicídios espectaculares. Nunca tinha acontecido um imigrante português assumir protagonismo numa tradição tão americana como os tiroteios em escolas e os homicídios em massa (só morreram duas pessoas no ataque à universidade, mas, tendo sido disparados mais de 40 tiros, poderiam ser muitas mais).

Nunca tinha acontecido uma comunidade imigrante portuguesa atemorizar-se, como está a acontecer à comunidade imigrante portuguesa nos EUA, com a possibilidade de um governo racista e xenófobo, como é o atual governo norte-americano, a tomar como alvo do seu discurso discriminatório.

Nunca tinha, decerto, acontecido à comunidade imigrante portuguesa nos EUA, a mesma cujos eleitores demonstraram, nas eleições mais recentes, tão grande entusiasmo pelo sucedâneo português do discurso racista e anti-imigrantes de Donald Trump, ver as redes sociais a discutir se os portugueses são brancos – com uma parte não negligenciável dos intervenientes da discussão a concluir que não.

Há sempre um lugar para o qual, alguém para quem somos o Outro, o alienígena, o “que não pertence”, o indesejável, o que deve ser expulso, o “não-branco”, ou seja, o “não-norma”, o “mau”.

Há sempre um lugar ou alguém ou um acontecimento que pode levar um governante português, como sucedeu com o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, a dizer “este grave incidente nada tem a ver com a nossa comunidade, isto não nos representa de maneira nenhuma, os portugueses não são isto”.

Como se os atos de um indivíduo, seja ele de que nacionalidade ou etnia for, pudessem representar qualquer grupo ou comunidade; como se alguém pudesse dizer o que a totalidade dos indivíduos de uma determinada nacionalidade são. Como se existisse uma natureza uniforme determinada pelo local de nascimento, a cor, a cultura. Como se, afinal, o racismo e a xenofobia fizessem sentido, neste caso pela determinação de que nós, os portugueses, não andamos aos tiros em escolas, nem a planear cuidadosamente homicídios – nós, os portugueses, cumprimos a lei (tão ao contrário, então, dos americanos, certo?).

Não por acaso, houve logo quem, ante a identificação do autor do ataque a Brown e do homicídio de Nuno Loureiro como um imigrante português desde 2017 legalmente nos EUA, criasse um sucedâneo do cartaz de André Ventura contra os ciganos, mas com os portugueses como alvo e Trump no lugar do candidato presidencial do Chega: “Portuguese must obey the law/Os portugueses têm de cumprir a lei”.

Cláudio Valente cometeu os seus crimes a poucos dias do Natal. Supõe-se que isso não teve qualquer relevo no planeamento meticuloso que quase fez deles perfeitos – no sentido de não solucionáveis. Fosse qual fosse a sua motivação, não terá decerto sido pôr-nos a refletir sobre racismo e xenofobia, muito menos sobre a necessidade de vermos e julgarmos cada pessoa pelo que é e faz – sobre o que quer dizer ser humano, ser pessoa. Mas podemos, nesta altura em é suposto respirarmos fundo e pensarmos com boa vontade, retirar algo de útil deste pavor.  

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