A história de Vilson Duarte Dong que publicámos há dias neste jornal, dificilmente deixa alguém indiferente. Português, nascido e criado em Almada, filho de um imigrante chinês, emigrou para a Inglaterra aos 12 anos com a família. A adaptação foi dura. Nada de novo para muitos jovens de segunda geração de imigrantes, que se reflete na realidade vários países europeus. Entrou para um gangue aos 14 anos, traficou droga, foi preso, cumpriu pena. Depois iniciou um caminho de reconstrução pessoal feito de disciplina, leitura, apoio na reabilitação e trabalho interior. Hoje, integrado numa fundação ligada a um clube de futebol, vai aos contextos de risco para falar com outros jovens e tentar quebrar ciclos de violência. O seu percurso é uma exceção, sabemos, mas o seu exemplo de superação remeteu-me para a nossa realidade e para a fragilidade dos caminhos que oferecemos a muitos dos nossos jovens antes de chegarem ao ponto de rutura.Foi impossível ouvir o seu testemunho sem lembrar a Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta (CAIDJCV), criada em 2022, por iniciativa do então ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, e pela sua secretária de Estado, Isabel Oneto, após ter sido identificada uma escalada clara deste fenómeno acentuada desde 2021. Numa entrevista ao Diário de Notícias, Oneto resumiu o essencial: “A obrigação do Estado é impedir que os jovens fiquem com os seus percursos de vida marcados para sempre.” Foi com esse objetivo que a comissão trabalhou. E o trabalho foi sério, exigente e profundo. Produziu um dos diagnósticos mais completos alguma vez feitos sobre a delinquência juvenil e grupal em Portugal. Identificou falhas na escola, na resposta social, na justiça tutelar, no apoio às famílias, na intervenção precoce, na articulação entre serviços e nos territórios mais vulneráveis. Apresentou dezenas de recomendações concretas, 59 no total. Um trabalho técnico de grande qualidade.Entre as recomendações da comissão (expressas no relatório final e nos intercalares) estão medidas de intervenção precoce, apoio às famílias, reforço de estruturas sociais em zonas vulneráveis (infantários, por exemplo), intervenção escolar e programas de prevenção e apoio comunitário. O relatório final foi entregue em março de 2024.Mas depois… instalou-se o silêncio.O XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, tomou posse a 2 de abril de 2024 e desde então não existe qualquer evidência pública de o que quer que seja sobre a execução destas recomendações. Nem houve mais nenhuma reunião da Comissão e, se o Governo tem outra estratégia ela não é conhecida nem publicamente, nem pelas entidades e especialistas que produziram o referido trabalho. Concluímos, pois, que foi para a gaveta todo um plano de intervenção que podia mudar drasticamente a vida e o futuro de toda uma geração de jovens que, por muito que digamos que têm sempre escolha, esta é-lhes profundamente condicionada. E não falamos apenas de criminalidade comum, há toda uma ameaça de extremismos sobre os jovens identificada pelas autoridades, para a qual falham políticas públicas de intervenção. Ainda na semana passada, na Segunda Grande Conferência de Cibersegurança, a propósito da utilização das plataformas digitais para influenciar os mais novos, o diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, alertava para este crescendo. “É a manipulação, sobretudo de muito jovens. Não têm ideia do grau de radicalização que grassa na juventude, e não só, de ódio, morte, sofrimento, terror”, asseverou, olhando para o público.O relatório final da CAIDJCV sublinha precisamente a necessidade de “intervenção atempada”, “reforço de respostas sociais” e “monitorização contínua” , sinalizando que sem essas medidas estruturais, é pouco provável que se revertam as tendências negativas.Porém, desde 2021 que há cada vez mais criminalidade praticada por jovens/crianças entre os 12 e os 16 anos. Segundo os dados oficiais, em 2021 registaram-se 1120 participações. Em 2022 esse número subiu para 1687, um aumento abrupto de 50,6%. Em 2023 voltaram a crescer para 1833 ocorrências e, em 2024, atingiram os 2062 casos, mais 12,5% do que no ano anterior. Em apenas três anos, a delinquência juvenil quase duplicou. Cada subida representa mais jovens a entrar num ciclo que o país continua sem conseguir travar a tempo. É pouco provável, assim, que a linha de evolução não seja, em 2025, também ascendente, com uma expressão cada vez maior em zonas metropolitanas como Lisboa. Quanto mais tarde se intervém, mais pesada se torna a fatura: em recursos policiais, em processos judiciais, em prisões, em medo, em fragmentação social. E, sobretudo, em vidas que ficam marcadas cedo demais - exatamente aquilo que o Estado afirmou querer evitar. Estamos a fazer tudo o que é necessário para não perder estes jovens? Ou desistimos?O debate sobre a segurança passou a girar quase exclusivamente em torno da imigração. Mas temos um risco profundo dentro de portas. Não será erosão silenciosa de parte da nossa juventude um risco muito maior?O trabalho da comissão não podia ficar dependente dos ciclos eleitorais. As suas conclusões exigiam continuidade, precisamente porque os resultados nunca seriam imediatos. Quem governa herda problemas, mas herda também diagnósticos, instrumentos e caminhos. E tem o dever de lhes dar seguimento. Também para isso devem olhar os candidatos à Presidência da República. Vilson é uma exceção e conseguiu reabilitar-se com esforço próprio e apoios que lhe chegaram no momento certo. Mas um país não pode depender apenas de histórias individuais para resolver problemas que são coletivos. Quebrar esses ciclos exige coragem política, investimento e visão de longo prazo. E essa é uma escolha que pode ser feita.