A sigla BWV (Bach-Werke-Verzeichnis, ou, traduzido do alemão, Catálogo do Trabalho de Bach) indica sempre uma composição de Johann Sebastian Bach. É uma marca de catalogação que antecede o nome de cada obra do compositor (por exemplo, a cantata Bleib bei uns, denn es will Abend werden ou o arioso So heb ich denn mein Auge sehnlich auf, são respetivamente as obras BWV 6 e BWV 1088). Por vezes, aparece, numa ou noutra composição, uma marca do que era frequente no século XVIII: a indicação de gavotte ou gavotte en rondeau, como acontece na Partitia para Violino N.º 3 em Mi Maior, a BWV 1006. Isto refere-se a danças de matriz rural que o compositor, tal como outros, escreveu a partir dum ritmo dançável em vários contextos. Gavotte, bourrée e rondeau são danças de matriz rural francesas. Se Bach tivesse nascido em Portugal, talvez a referência fosse repasseado, vira, chula ou corridinho. E talvez estas danças portuguesas fossem tão valorizadas, quase ao nível da erudição,como são as francesas que referi.Esta ideia de derramar a criatividade do povo numa obra erudita está longe de ser exclusiva do barroco e muito menos de outros países, mas são um bom exemplo de como a música não tem fronteiras, sociais de classe ou nacionalidade. A este propósito, e para dar um exemplo incrivelmente mais recente, mas não menos meritório, destaco a Suite Rústica n.º 2, de Fernando Lopes Graça, composta em 1965. Fernando Lopes Graça , entre uma vastíssima obra, com morfologias diversas, tem vários exemplos de como o povo é inspirador e inspirado, o que leva a questionar, não necessariamente de forma retórica: Quem é que inspira o povo?.Eu diria que tudo inspira o povo, desde os casamentos mal sucedidos até ao cavalo que caiu numa ravina (isto é baseado em factos verídicos, garanto), sendo que a grande inspiração são os outros povos.Vou recuar mais um pouco, até aos anos 30 do século XX, quando andou por Portugal, durante dois anos e meio, um musicólogo inglês que mergulhou na música feita pelo povo e até se deu ao trabalho de criar teorias sobre evolução e origem de algumas expressões musicais, de norte a sul do país, e até insulares.Rodney Gallop, de forma magistral, e com algum humor, descreveu como a música do povo não tem limites. Não imagino como é que no início dos anos 30 as pessoas partilhavam músicas entre si, para além da que era tocada ao vivo, em concertos ou espontaneamente, ou da que passava na rádio, ainda nos seus primórdios. As primeiras emissões regulares de rádio em Portugal remontam a 1925, mas só em agosto de 1935 é que a Emissora Nacional - hoje Antena 1 - adquiriu um caráter mais formal.Mas regressemos a Rodney Gallop. O musicólogo descreve, no seu livro Cantares do Povo Português (1937) o que cantaria um grupo de mulheres “na linda ponte de Mirandela”, em Trás-os-Montes. “Parei. Uma centena de mulheres, ou mais, talvez, lavava as suas roupas nas límpidas águas do Tua. Agorа, pensei, vou de certo ouvir o verdadeiro leit-motiv de Trás-os-Montes. Pois apenas uma mulher cantava, e o seu cantar era... o fado da Mouraria!!!...”As retiências e os pontos de exclamação repetidos são do autor e revelam a emoção com que ele notou que o fado da Mouraria era popular numa região remota em relação a Lisboa, que na altura teria acessos impensáveis. O espanto de Gallop, conta ele mais à frente, deve-se ao facto de só ter encontrado o fado em Lisboa e em Coimbra, em cafés ou entre “estivadores e operários de ganga”. Gallop defende ainda que “é certamente difícil dizer até que ponto as canções regionais e urbanas se entre-influenciaram, mas não há dúvida que tal intercâmbio existiu, existe, e oferece exemplo particularmente valioso” da sua “teoria sobre a origem e o desenvolvimento da música popular”.A teoria do musicólogo é vasta e merece ser revisitada, mas gosto particularmente da parte em que explica que “a ligação da música à dança é hoje tão característica da canção popular portuguesa como o era já no reinado de D. Dinis”, no século XIV, “e prova que, a despeito de todas as influências estrangeiras, de todas as evoluções, os alicerces em que assenta a canção popular portuguesa são puramente autóctones”.Com tudo isto, sinto que Bach, Lopes Graça e Gallop poderiam perfeitamente estar a falar sobre o que os inspirou, o que acabaram por inspirar e sobre o que encontraram ao longo de uma vida de busca incessante pela criatividade, a própria e a dos outros, com mais ou menos austeridade (Bach era extremamente religioso), algum conteúdo político e, acima de tudo vontade de olhar para os outros. Parece quase o início de uma anedota: Bach Lopes Graça e Gallop entram num bar...