Alto representante, alta exigência
O cargo que foi destinado à ex-primeira-ministra da Estónia no acordo a que se chegou em Bruxelas, com o preciso conteúdo que hoje tem, nasceu com designação diferente da que agora ostenta: a de “ministro dos Negócios Estrangeiros da União.”
De forma simplificada, pode dizer-se que só a perdeu - ficando com outra mais trabalhosa de enunciar: alto-representante/vice-presidente da Comissão para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança - porque o “tratado constitucional” que a introduzia foi reprovado em referendo, na França e depois na Holanda (2005).
O passo que se dava nesse tratado pode resumir-se assim: o Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da UE passava a ter - caso único em todas as formações do conselho - um “presidente permanente”; esse presidente permanente era membro e um dos vice-presidentes da Comissão Europeia e, em simultâneo, tomava parte no Conselho Europeu, junto dos primeiros-ministros e chefes de Estado e presidente da comissão; e por último, além de contribuir com as suas propostas, cabia-lhe “conduzir a Política Externa e de Segurança comum da União.” Por isso, claro, se lhe dava um nome: “o MNE da União.”
Era evidente que os MNE nacionais eram, de todos os ministros, os mais directa e imediatamente afectados por esse tratado e que, com ele, ficava moldado um cargo executivo com o mais alargado enraizamento nas instituições europeias: no conselho, na comissão, no Conselho Europeu, e com responsabilização e prévia passagem perante o Parlamento.
Esta solução não desapareceu quando o tratado constitucional caiu por terra, nem veio a sofrer alterações. Numa operação que alguns qualificam de “circunvenção estratégica”, regressou à vida poucos anos depois, com o Tratado de Lisboa, mudando-se apenas o nome à coisa. Mas os anos que se seguiram à sua entrada em vigor (2009) revelariam que se estava a desperdiçar, na realidade, bem mais que uma designação.
Está em curso, agora, o procedimento de nomeação do quarto titular desse cargo. Não serão demasiados os que se lembram hoje, de imediato, dos antecessores de Borrell: Catherine Ashton e Federica Mogherini.
Quer os processos de nomeação quer os desempenhos subsequentes não tiveram impacto - nem europeu, nem muito menos externo - ao nível do que tivera a criação dum cargo com aquelas dimensões e as expectativas que fundara.
Estava em voga ao tempo evocar a pergunta que Kissinger décadas antes colocara - a quem ligar quando precisava de falar com a Europa? Apesar duma frase generosa de Hillary Clinton, tornou-se patente que nem essa “pequena pergunta” tinha sido eficazmente resolvida: passou mesmo a circular a boutade de que tinha sido pedido um número e afinal tinham sido indicados três…
São muitos, de então para cá, os que se interessaram por este verdadeiro case study. Falam alguns nos efeitos esperáveis do recurso a escolhas “em mínimos” para lidar com expectativas - e também resistências - “em máximos”. Mas, de modo mais cru, a maioria aceita que essas personalidades não foram escolhidas “apesar dos aspectos limitativos” que apresentavam para o cargo em vista… mas que o foram, em boa parte, em razão deles.
Em que medida se aprendeu com passado tão próximo e tão eloquente? Embora os factores que têm avolumado a ameaça de “provincialização” da Europa estejam longe de ser confundíveis com deficiências e vicissitudes ligadas ao cargo, será muito desejável que a insistência nelas não dê também o seu contributo. Seria gravoso que, em vez de se aprofundarem exigências, num replay com que algumas instituições às vezes nos brindam, se estivesse a voltar atrás na matéria.
Kaja Kallas - que alguns media lançaram como a “dama de ferro do Báltico”, e primeiro, sem sucesso, para secretária-geral da NATO - tem várias razões para ser bem conhecida pelos que a apontaram em Bruxelas (ex-primeira-ministra, ela própria filha de ex-primeiro ministro e, sobretudo, vice-presidente e membro da Comissão Europeia durante vários mandatos). Mas para lá da contundência da sua posição em relação à Federação Russa, e de pormenores pessoais e familiares expressivos, pouco se sabe na Europa politicamente acerca dela (até mesmo da polémica situação que a terá fragilizado no seu país, tão longe como no ano passado) e, sobretudo, de como perspectiva as suas missões e iniciativas na “fase geopolítica” em que a presidente pretende situar a comissão. Pois não foi ela que desde o início disse: “A minha comissão será uma comissão geo-política”?
É justamente o lugar a ocupar na comissão - uma das dimensões-chave da figura a preencher - que justifica que o processo de nomeação não esteja concluído e passe ainda pelo Parlamento Europeu. O que é uma boa notícia. Será bom que esse procedimento se revele esclarecedor e não possa vir a dizer-se, de novo, “alto-representante, baixa exigência”… como se concluiu, por mais de uma vez, no passado.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.