A vontade incognoscível das mulheres

Passaram dez anos desde que o crime de violação foi alterado para que os tribunais deixassem de colocar o ónus nas vítimas e na sua “resistência”. Mas continuamos a deparar-nos, uma e outra vez, com decisões que assentam na ideia de que é “normal” que os homens “insistam” até que elas “cedam”.
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Num acórdão do Tribunal de Angra do Heroísmo  que o DN noticia esta terça-feira, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, o coletivo de juízes decidiu, com uma das magistradas a votar (indignadamente) vencida, absolver um homem de 25 anos da acusação de violação agravada de uma jovem de 16, por considerar que não ficou provado que esta tivesse “dito ou sinalizado que não pretendia que o arguido lhe introduzisse o pénis na vagina”.

Apesar de a jovem, a quem o DN chamou Maria, estar alcoolizada — os factos ocorreram de manhã, após uma noitada com bebida e consumo de canábis —, da respetiva idade, e de ter sofrido, na relação sexual, uma laceração grave do fundo da vagina, com hemorragia abundante, situação que, segundo a perícia forense, a colocou em risco de vida (teve de ser operada de urgência) e corresponde a uso de grande violência na penetração, o tribunal entendeu fazer assentar o seu julgamento sobre a conduta dela e não do arguido (“Filipe”).  

Do que se lê no acórdão — o julgamento ocorreu à porta fechada —, Filipe garantiu que Maria, a quem tinha conhecido naquela noite e da qual disse não conhecer a idade (afirmação na qual os juízes não acreditaram), nunca efetuou a tal “sinalização” de que não desejava a penetração. Já Maria afirma o contrário — que queria dar beijos e “amassos” mas mais nada, que disse várias vezes que não queria a relação sexual e tentou manter-se vestida quando ele a tentava despir, até não conseguir mais opor-se.

O facto de estarem ambos numa divisão da casa dele (a sala) e de na divisão ao lado, separados por uma porta fechada, permanecerem os restantes elementos do grupo, levou os dois magistrados responsáveis pela absolvição a considerar que se realmente Maria não quisesse a relação sexual, sentindo-se forçada, teria gritado, pedindo ajuda, fugido. 

Particularmente curiosa é a interpretação que o acórdão faz das SMS trocadas entre Maria e os membros do grupo, os quais, próximos do arguido, a tentaram pressionar, depois de ela estar no hospital, a manter o silêncio e “não dizer nomes”, tentando convencê-la de que o que ocorrera nada tinha de errado, que “muitas mulheres gostariam de estar no lugar dela” e advertindo-a de que se falasse criaria grandes problemas a todos os maiores de idade presentes. 

Admitindo que nessas mensagens — enviadas antes da apresentação da queixa às autoridades, e quando Maria, apesar de os médicos lhe terem dito que as lesões indicavam que tinha sido forçada, ainda resistia à ideia de se queixar e garantia que estava a “ser amiga de um homem com quem nunca tinha falado na vida” (Filipe) — a adolescente menciona “várias vezes que disse que não à relação sexual”, os magistrados de Angra valorizam o facto de ela afirmar também que o que acontecera não fora uma violação. 

Dizem então os juízes: “Pode significar que não queria e disse que não, mas que depois, perante a insistência do Arguido [Filipe] e o ambiente criado, assentiu e quis.”

Ou, prosseguem, “não queria e não assentiu na relação sexual, mas que, quando mandou as mensagens, não tinha ainda a noção de que o ocorrido era uma violação porque o Arguido, como disse a própria Assistente, não foi violento.”

Note-se que ambas as hipóteses colocadas partem do princípio de que Maria não queria e disse não — sendo que num caso a vontade dela teria sido “vencida” pela “insistência”, e no outro a recusa de qualificar o ocorrido como violação dever-se-ia apenas ao facto de ter da violação uma ideia de grande violência (exatamente o que Maria admitiria depois em julgamento). 

O que se vê aqui não é só a contradição entre o que os juízes deram como não provado — a “sinalização” de que Maria não queria a relação sexual — e a interpretação que fazem das SMS. É o facto de ficar demonstrado que consideram que a insistência de Filipe após a expressão da vontade dela (ou seja, da não vontade dela) não corresponde ao tipo criminal de violação.

Para estes magistrados, ela tinha de fazer mais que dizer não — tinha de resistir, fugir, gritar. A ideia de que não fosse capaz de o fazer, por ter sido colocada numa situação em que não conseguiu reagir — é aliás o que Maria reconhece em tribunal, que não conseguiu opor-se — não parece ter ocorrido aos juízes. 

Como não terá ocorrido a estes dois juízes notar que, sendo Portugal subscritor, desde 2013, da Convenção de Istambul, a qual tem aplicação direta no nosso ordenamento jurídico, a noção de “constrangimento” que tipifica o crime de violação implica que o comete quem não respeita a formação de um “consentimento livre” — ou seja, a liberdade do outro para decidir se quer ou não.  

Isto porque esta Convenção, a qual obrigou à alteração, em 2015, da redação do artigo 164º do Código Penal (o que criminaliza a violação), diz que “o consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes”

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Vítimas de violação não têm de resistir, diz Tribunal da Relação

Considerar que uma miúda de 16 anos, embriagada, que está com um homem que conheceu há umas horas, consentiu livremente em ter sexo — e violento — depois  de o homem continuar a insistir ante o não dela é decerto ignorar totalmente a alteração da lei e o enquadramento que dela faz a Convenção.

É, na verdade, ter da violação a ideia que Maria, de 16 anos, tinha (antes de, tão à sua custa, aprender que há outras formas). 

É continuar a aplicar a noção de violação anterior à citada alteração, uma noção que ainda em 2012 uma das grandes autoridades portuguesas em Direito Penal, Jorge Figueiredo Dias, resumia assim: “Não basta nunca à integração do tipo objetivo de ilícito (...) que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar, ato de violação — isto é, que este ato tenha tido lugar sem ou contra a vontade da vítima (...). O meio típico de coação é pois, antes de tudo, a violência, existindo esta quando se aplica a força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva), destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada.” Concluindo: “Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer resistência corporal.”

“Apenas por palavras” não chegava — era (é?) preciso, lá está, fugir, gritar, escoicear. Como, de resto, se lia num famoso acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2011, o qual absolveu um psiquiatra que, no seu consultório e no decorrer de uma consulta, penetrou e teve “cópula completa” com uma paciente grávida de 34 semanas: “A recusa meramente verbal ou a ausência de vontade, de adesão ou de consentimento da ofendida, por si só, insuficientes para se julgar verificado o crime”.

10 anos após o tipo criminal de violação ter sido alterado para que a distinção entre crime e não crime se estabeleça na existência ou não de uma livre decisão, de uma vontade livre, a “vontade cognoscível da vítima”, como refere a nova redação do artigo 164º — isso a que se dá, mal, o nome de “consentimento” (porque, lá está, a ideia de consentir pressupõe uma atitude passiva) —, continuamos a ver os tribunais decidir como se nada tivesse mudado, e quem estivesse, ainda e sempre, em julgamento fossem as vítimas. As mulheres, sempre. E até, como no caso de Maria, miúdas de 16 anos. 

Para os tribunais, como para os homens que as forçam, a vontade das mulheres continua a ser incognoscível — ou “não é séria” ou não existe.

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