Nunca houve tantas violações - ou houve?

2024 averba o maior número de participações do crime de violação alguma vez registado em Portugal: 543. Ainda assim, continua uma das taxas mais baixas da Europa. Porque por cá há muito mais respeito pelas mulheres, não é?
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Não há dúvida: a notícia de que o Relatório de Segurança Interna de 2024 regista, face a 2023, um aumento de 9,9% nas participações de violação cai na narrativa securitária como sopa no mel. Porém, frisando que já houve anos em que o número de participações deste crime aumentou muito mais em termos percentuais (caso dos 18,3% de 2008 para 2009 e dos 13,1% de 2009 para 2010, por exemplo), até vou ajudar: 543 não é apenas o maior número da década, como li em algumas notícias, mas, aparentemente, o maior de sempre: desde 1998 que só uma vez o registo anual de queixas de violação ultrapassou 500, e foi em 2022 (519).

E ajudo ainda mais: este total, como o de todos os outros anos, peca por defeito. E não, não me refiro - para já - ao facto de a violação ser, tradicionalmente, um dos crimes com maiores cifras negras, ou seja, com mais tendência para o silenciamento por parte das vítimas. Refiro-me à existência de participações de crimes que, sendo na verdade violações, são registadas com outro nome. É o caso, desde logo, do “abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”, previsto no artigo 165º do Código Penal (CP) e que prevê uma moldura penal de dois a 10 anos de prisão - muito próxima da da violação “mais grave” (porque a lei prevê também um tipo de violação menos gravosa, com pena até seis anos) - para quem tiver sexo com penetração (“cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos”) “com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência”.

Assim, por exemplo, o caso da mulher com “perturbação global de desenvolvimento” que em 2020, foi, numa paróquia portuguesa, várias vezes submetida, por um homem que aí trabalhava, a penetração vaginal com ejaculação, faria parte das estatísticas de violação. Ou o da mulher que em novembro de 2016, enquanto inconsciente, por embriagada, foi sujeita, na casa de banho de uma discoteca em Vila Nova de Gaia, a relações sexuais "de cópula completa" por dois funcionários do estabelecimento.

Como fariam parte das estatísticas de violação os casos das vítimas do crime de “abuso de pessoa internada” (artigo 166º do CP) - a saber, aquelas que, estando internadas em “hospital, hospício, asilo, clínica de convalescença ou de saúde, ou outro estabelecimento destinado a assistência ou tratamento; ou estabelecimento de ensino, centro educativo ou casa de acolhimento residencial”, sejam submetidas por “quem, aproveitando-se das funções ou do lugar que, a qualquer título, exerce ou detém” num daqueles lugares”, a “cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos” (um crime que, curiosamente, tem uma moldura penal de um a oito anos de prisão, portanto inferior à da violação).

Haverá talvez motivos muito válidos para que exatamente o mesmo ato, que significa exatamente o mesmo para as vítimas - violação –, seja classificado em tipos criminais diferentes. Porém o que resulta dessa classificação é que um crime com esta gravidade é estatisticamente escamoteado, e quem queira perceber qual a sua dimensão, características (por exemplo a relação entre vítima e perpetrador) e evolução terá grandes dificuldades.

De resto, o escamotear deste crime, tão notório na história judicial - como o livro Medusa no Palácio da Justiça ou uma história da violação sexual, da socióloga Isabel Ventura, demonstra -, está dolorosamente patente na novíssima página das estatísticas da justiça. A qual, na secção “criminalidade e justiça penal”, entre nove destaques (abuso sexual de menores, branqueamento de capitais, corrupção, crimes no desporto, crimes rodoviários, crimes violentos, criminalidade económica, incêndios florestais e violência doméstica), não inclui a violação, ou sequer o tipo mais abrangente de “crimes contra a autodeterminação sexual” - quanto mais o de “violência de género”.

Torna-se assim árduo encontrar dados para perceber de que modo foram evoluindo as participações de crimes relacionados com a violência sexual, e se podemos olhar para o aumento das queixas de violação como um “iluminar” da realidade escondida - a diminuição das tais cifras negras - ou se se trata antes de um aumento das ocorrências.

Se tivermos em consideração aqueles que são os números de queixas de violação na Europa relativos a 2022, verificaremos que, apesar de Portugal ter nesse ano registado o segundo valor mais alto de sempre, a taxa do país (5,5 por 100 mil habitantes) continua entre as mais baixas. No top está o Reino Unido, com 109, seguido da Suécia, com 85,9, e França, com 59. Mesmo países que surgem repetidamente nos primeiros lugares do “Índice Global da Paz”, como a Islândia e a Irlanda, estão muito acima do nosso, com, respetivamente, 68,7 e 21,9.

Será porque a violência sexual nesses países é muitíssimo superior à existente no nosso? Duvidoso: aliás, basta notar que até um dos regimes mais securitários do mundo, Singapura, ostenta uma taxa de violação superior à portuguesa (6,69). E que o Paquistão, esse paraíso para as mulheres, averba apenas 2,22.

Parece evidente que um elevado número de participações de violação não significa forçosamente a existência de um grau mais elevado de violência sexual. ; na verdade, Pode significar o contrário. Que as leis e os sistemas judiciais são mais protectores, não só predispondo mais à denúncia, como qualificando como violação situações que noutros países não são sequer penalizadas; que a sociedade foi encarando como violência sexual um número crescente de atos que antes eram vistos como “normais” - ou nem sequer tidos em conta.

Um bom exemplo disso são o apalpão e o dichote sexual, que até, respetivamente, 2007 e 2015 não tinham previsão penal em Portugal, e cujas denúncias, englobadas no crime de importunação sexual, têm aumentado muito.

Mas a maior evidência da progressiva consciencialização da violência sexual a que se tem assistido está precisamente na evolução do tipo criminal de violação. Este tem sido, em Portugal, sujeito a sucessivas alterações, a última das quais em 2021, no sentido de deixar cada vez mais claro que em causa está a vontade da vítima. Ou seja, em consonância com o disposto na Convenção de Istambul, ratificada pelo país em 2013, a não vontade da vítima em participar num ato sexual - ao invés da perspetiva do perpetrador, que imperou até muito recentemente na lei e que ainda é muito preponderante nos tribunais (havendo juízes a proclamar, inclusive, que “não chega a ausência de consentimento da vítima” para que se possa falar de violação).

Desde os anos 80 do século XX - quando no no primeiro Código Penal da democracia a violação era um crime que só podia ser perpetrado sobre uma mulher, indicando como “atenuante” a “contribuição da vítima”, e juízes do Supremo falavam de “coutada do macho ibérico” - até agora, muito mudou na sociedade, na lei e nas polícias e tribunais portugueses - tanto que é impossível compararmos as estatísticas de há umas décadas com as atuais, ou sequer as de há 10 anos. Aconselha-se, pois, muito cuidado na interpretação destes números.

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