Gisèle, ou a revolução do consentimento
Posso estar a ser injusta, mas creio que em Portugal seguimos com pouca atenção o caso de Gisèle Pelicot. Falou-se muito dele, sim, e da extraordinária coragem dela, da imensa, sobrenatural bravura necessária para expor assim a sua vitimização, para exigir que as audiências do julgamento fossem públicas e que os vídeos encontrados em posse do seu marido, nos quais ela é violada por dezenas de homens, fossem exibidos. Falou-se muito do horror que é descobrir que um marido com quem se viveu toda a vida, com quem se criaram filhos e se festejaram netos, foi capaz de a coisificar assim, de a oferecer como se fosse sua para dar; da incredulidade que é constatar que dezenas de homens aceitaram o convite de um estranho para ter sexo com a "sua" mulher inconsciente, vários deles regressando muitas vezes. Perguntou-se muito “como é possível”.
Falou-se menos do que este caso expõe daquilo que é ainda hoje, na Europa do século XXI, a relação entre homens e mulheres - disse-o o Ministério Público francês nas alegações finais, quando pediu a pena máxima de 20 anos para o marido e penas muito altas (todas, excepto uma, superiores a 10 anos) para os outros violadores: “O que está em causa neste processo é mudar fundamentalmente as relações entre homens e mulheres".
Mas não será decerto um processo, por mais terrível e simbólico, a mudar algo de tão cimentado na nossa civilização - tão cimentado que, reparem, esta extraordinária mulher chega ao nosso conhecimento com o nome do marido, esse ferrete de propriedade que até hoje se vê como “natural”.
Já me dava por muito feliz se este processo ajudasse a mudar a forma como se vê o crime de violação - mesmo se, estou ciente, essa perspetiva está irremediavelmente ligada ao cimento das “relações entre homens e mulheres” (e notem como ao dizer isto o procurador francês colocou, na frase, primeiro os homens e depois as mulheres - porque é assim, com essa precedência, esse ascendente, que fomos habituadas a pensar).
Começando então pelo princípio (ou o fim): a lei penal francesa, como a portuguesa, não indica expressamente a violação como sexo com ausência de consentimento - apesar de a França, como Portugal, ter ratificado a Convenção de Istambul, a qual define as "infrações sexuais de natureza penal" como "todos os atos sexuais impostos intencionalmente a outra pessoa sem o seu livre consentimento." Sendo esse livre consentimento explicado no artigo 36/2 da Convenção: "O consentimento tem de ser prestado voluntariamente, como manifestação da vontade livre da pessoa, avaliado no contexto das circunstâncias envolventes.”
A Convenção deslocava assim, em 2011 - há 13 anos - o foco do comportamento da vítima para o do agressor. Uma revolução para os ordenamentos jurídicos da maioria dos países, nos quais à época se entendia a violação como o “forçar” fisicamente o sexo, sendo necessário que a pessoa forçada resistisse para ser considerada vítima, ou seja, para merecer a tutela do direito penal. Nem sequer bastando o “não quero” para “convencer” de que realmente não queria, como explicava em 2012 o penalista Jorge Figueiredo Dias, considerado um dos “pais” do Código Penal português: "Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer resistência corporal.” E aprofundava: “Não basta nunca (...) que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar, ato de violação - isto é, que este ato tenha tido lugar sem ou contra a vontade da vítima (...). O meio típico de coação é pois, antes de tudo, a violência, existindo esta quando se aplica a força física (…), destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada."
Escusado dizer que segundo esta perspetiva nenhum dos homens que, a convite do marido, teve sexo com uma Gisèle inconsciente poderia ser condenado por violação: se não empregaram aquilo que o penalista designa por violência - e que define apenas como emprego de força física -, se se “limitaram” a usá-la e ainda por cima, como vários frisaram, “com o consentimento do marido”, podendo afirmar (como alguns afirmaram) que achavam que ela estava a fingir-se adormecida, que culpa tinham esses 50 coitados?
Mas eis que no processo de Gisèle o tribunal concluiu que não há “direito ao erro de violar sem intenção, de violar por acidente, de violar involuntariamente, de violar por estupidez, de violar por incultura”. Desses 50 auto-proclamados violadores involuntários que mesmo face à violada, ao pedir-lhe desculpa, insistiam não ser violadores, 40 receberam penas entre 15 e sete anos (tendo o marido sido condenado à pena máxima possível para os crimes em causa: 20 anos).
No tribunal, o juiz Roger Arata perguntou a todos os arguidos se tinham recolhido ou tentado recolher o consentimento de Gisèle, atitude sublinhada ao Libération pelo ex-magistrado Denis Salas: “Poderia ter sido legalista e usado as palavras ‘constrangimento’ e ‘de surpresa’, que são as inscritas no tipo criminal, mas preferiu usar a palavra ‘consentimento’ e interrogar não a vítima mas os acusados, para demonstrar como desconheciam se ela consentia”. O que, conclui o jornal, é “uma enorme mudança, que pode encorajar a introdução da noção de consentimento no Código Penal, mas a cargo do acusado.”
Parece óbvio, não é? Mas não, aquilo que a Convenção de Istambul, que é vinculativa - como a Associação Portuguesa das Mulheres Juristas tem incansavelmente lembrado -, estipula e que no caso de Gisèle parece tão evidente (como poderia ela, que estava inconsciente quando foi violada, ‘provar’ não ter dado consentimento?) está longe de o ser em França ou em Portugal.
Quem não se lembra da gargalhada geral quando por cá se falou pela primeira vez da necessidade de consentimento no sexo? Quem não recorda aquelas piadas do tipo “então estão no meio da marmelada e ele tem de pedir para ela assinar um papel”, para se chegar, claro, à costumeira conclusão “querem acabar com o jogo da sedução”?
O “jogo da sedução”, com tão largas costas. Do qual, precisamente, nos falou um acórdão de 2018 do Tribunal da Relação do Porto, que confirmava a condenação a quatro anos e meio de prisão, com pena suspensa, de dois funcionários de uma discoteca que tiveram sexo com uma cliente inconsciente (porque alcoolizada) no chão da casa de banho. Para este acórdão, cuja relatora, frise-se, foi uma mulher, Maria Dolores da Silva (coadjuvada pelo então presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares), a culpa dos arguidos situara-se “na mediania” e a ilicitude “não fora elevada”, já que a violação ocorrera “ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica” e “ambiente de sedução mútua”, não houvera “premeditação” nem “danos físicos” ou eram “diminutos”, nem “violência”.
Ah, a ideia revolucionária de que ter sexo com alguém que não manifestou vontade de ter sexo naquele momento, daquela maneira, com aquela pessoa é violência. E que na dúvida sim, pergunta-se, interrompe-se, chama-se a polícia (coisa que nenhum dos 50 acusados no caso Gisèle fez).
Porque violência é, como tão bem definiu ao DN a penalista Fernanda Palma, “o que verga a vontade do outro”. Sendo disso mesmo, o reconhecimento da vontade do outro, neste caso da outra - a vontade da mulher -, do reconhecimento da existência da mulher como ser com vontade própria, desejo e agência próprios, que trata o processo de Gisèle e alguns, raros, acórdãos portugueses (sobre os quais escrevi em março). Um reconhecimento que vai dando os primeiros passos na justiça portuguesa como na francesa (ou na espanhola, vide o caso La Manada), com decisões judiciais que tornam claro que as vítimas de violação não são obrigadas a resistir para serem consideradas vítimas. Que não são sequer obrigadas a dizer não, que o silêncio e a passividade não podem ser entendidos como consentimento, e que não é, não pode ser nunca, a vítima a ser julgada.
É um progresso - mas, lá está, ainda tão pequeno, tão lento. Porque a grande mudança a fazer, como disse o procurador, é a das relações entre mulheres e homens. Num mundo onde um abusador sexual condenado foi eleito presidente dos Estados Unidos, quando tudo parece andar para trás, Gisèle, a magnífica, que fez da vitimação uma arma, deu-nos mais força para continuar a lutar, para não desistir. Talvez seja verdade, como se diz, que as trevas são mais escuras antes da alvorada.