A Rússia ataca a Polónia quando Von der Leyen estava a rever o seu discurso sobre o Estado da União Europeia

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Uma vez mais, Vladimir Putin mostrou o seu sentido de oportunidade. Sabe explorar os acontecimentos políticos a seu favor, ou seja, enviar as mensagens que baralhem os planos dos adversários e fortaleçam o seu poder. É uma liderança astuta. Não pode ser tratada por amadores nem por líderes incapazes de explicar às suas populações o perigo que Putin representa. É um erro pensar que é possível assinar tratados de paz, mutuamente vantajosos, com gente assim.

Horas antes do discurso anual da Presidente da Comissão Europeia sobre o Estado da União, Putin fez disparar cerca de uma dúzia e meia de drones contra a Polónia, um país membro da UE e da NATO. E depois esperou pelas palavras de Ursula von der Leyen, para medir a resposta à provocação que acabara de levar a cabo.

A Comissão não tem grandes poderes na área da defesa. Pode, todavia, desempenhar um papel fundamental num conflito híbrido e multidimensional, que é o tipo de confrontação que a Rússia adota contra a Europa, para além da guerra aberta de agressão contra a Ucrânia.

É a Comissão que propõe os pacotes de sanções, que são depois submetidos à aprovação do Conselho Europeu. O 19.º pacote está praticamente pronto e foi mencionado no discurso de von der Leyen. Deve incluir uma maior utilização dos juros dos depósitos soberanos russos para financiar as despesas militares e o funcionamento da administração ucraniana. A Presidente queria fazer uso dos fundos soberanos russos depositados na Europa, mas países como a França têm vetado essa medida. Para já, apenas os juros serão objeto de expropriação. Donald Trump quer ver incluído nesse novo pacote europeu tarifas secundárias da ordem dos 100% contra os países que comprem petróleo e gás à Rússia, ou que tenham relações económicas que permitam a Moscovo adquirir material que possa ser desviado para o esforço de guerra. Von der Leyen deixou claro que essa pressão vinda da Casa Branca não é do interesse europeu. A Europa não quer abrir novas áreas de disputa com países terceiros.

A presidente da Comissão também fez referência aos novos instrumentos programáticos e financeiros recentemente aprovados por Bruxelas, com especial relevo para o programa SAFE. São 150 mil milhões de euros destinados a reforçar a capacidade militar e a ultrapassar, tanto quanto possível, a fragmentação e a competição das indústrias de defesa europeias. O SAFE e os outros programas já em curso deverão aumentar a cooperação militar entre os Estados-membros e permitir um desempenho mais marcante das forças europeias no seio da NATO. Este reforço do pilar europeu da NATO é, aliás, uma questão fundamental, no que respeita ao equilíbrio do relacionamento com os EUA e à defesa perante a política imperialista da Rússia e à possível agressão de outros Estados e forças hostis.

As narrativas estratégicas e a luta contra as notícias falsas ou tendenciosas são igualmente questões essenciais. A Europa, para além de ter suspendido as licenças de operadores oficiais russos, precisa de investir bastante mais numa comunicação que possa explicar aos cidadãos o significado da ameaça russa, e de outras. Em especial agora, quando os EUA anunciam retirar-se do esforço comum de proteção contra as campanhas russas de desinformação. Esta é uma guerra híbrida que se ganha, em grande parte, através do esclarecimento e da mobilização da opinião pública.

A liberdade de expressão não pode ser usada para fazer o jogo e difundir a propaganda do inimigo. A Rússia está em guerra contra nós, uma guerra diferente das do passado. Putin quer destruir as nossas instituições, desintegrar a UE e enfraquecer a NATO, criar o caos nos nossos países, tirar vantagem das nossas economias e arruinar a nossa liberdade. Esta é uma guerra que não desejamos, mas da qual nos temos de defender, porque não aceitamos ser oprimidos e manipulados como o são os cidadãos russos e os que sofrem o peso de outras ditaduras. Não queremos ser vassalos do Kremlin nem de ninguém, incluindo de aliados estranhamente incertos e pouco confiáveis.

Os drones sobre a Polónia deram razão a von der Leyen quando disse que a defesa e a segurança devem ser uma das três grandes prioridades da UE. As outras duas são, no seu entender e muito bem, a soberania económica da Europa e a consolidação dos valores que devem orientar a política europeia, ou seja, os direitos humanos, a justiça social e a cooperação internacional. Ainda há, todavia, um longo caminho a percorrer. E esse caminho deve passar por Gaza e por toda a Palestina, bem como pela reforma e o reforço do sistema das Nações Unidas.

O que se passa em Gaza e na Cisjordânia é inaceitável. As propostas contidas no seu discurso – sanções contra os extremistas israelitas, suspensão do acordo de comércio e da ajuda material a Israel, criação de um fundo para a reconstrução de Gaza – devem ser aprovadas sem demora. São insuficientes, porém. A UE, se a Alemanha, a República Checa, a Hungria e a Áustria deixarem, deve tomar uma série de iniciativas diplomáticas que contribuam para forçar Israel a escolher a paz e a boa vizinhança como soluções duradouras. É crucial que tais iniciativas passem pelo envolvimento à cabeça das estruturas das Nações Unidas. A legitimidade reside aí.

Conselheiro em segurança internacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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