"Não há um Partido Republicano fora do trumpismo neste momento"
Escritor, jornalista e comentador habitual da CNN, Michael D'Antonio publicou a biografia The Truth about Trump (A Verdade sobre Trump) em 2015. Obteve acesso extenso ao presidente Donald Trump e à sua família e formou uma opinião bastante direta e crua sobre o universo em que se movem os ocupantes da Casa Branca.
Em entrevista ao DN, Michael D'Antonio, que ganhou um Prémio Pulitzer em 1984, como parte de uma equipa de jornalistas da Newsday, desmonta aquilo que considera estar por detrás da dinâmica familiar do homem mais poderoso dos Estados Unidos.
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Porque é que o Partido Republicano encheu o alinhamento da convenção com membros da família Trump?
É interessante. Penso que, em vez da convenção nacional republicana, é a convenção nacional do Trump. Mesmo quando vemos os gráficos no início da transmissão, não diz republicanos, diz Trump. Eles sempre se imaginaram a ser praticamente a família real, primeiro de Nova Iorque e agora da nação. Acreditam que nasceram para liderar. Começando com o presidente, existe um impulso que corre noutros Trumps para se promoverem como merecedores de respeito e de liderança simplesmente por serem Trump. Não é algo que têm de adquirir através de experiência, educação ou desempenho. É algo que herdam geneticamente.
De onde vem essa crença na família?
Trump expressou posições de eugenia e o seu filho disse-me que a família subscreve a teoria da corrida de cavalos no desenvolvimento humano. O que ele quis dizer é que se emparelharmos uma boa égua com um bom garanhão obtemos uma cria superior. Isto é consistente com a sua visão da humanidade: que eles são exemplares por virtude de quem são. Esse é um aspeto. Também penso que eles não têm vergonha, e portanto não possuem a capacidade de imaginar que isto parece mal. É patentemente não americano: nós derrubámos a monarquia para podermos ter uma república democrática. Mas eles pensam que são merecedores por nascimento. Muito disto também reflete o quão ignorantes são em relação à história americana - tal como muitos americanos. Por isso há, é claro, dezenas de milhões de pessoas que acham isto apelativo e concordam com isso.
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Com a parada de Trumps na convenção?
Desse ponto de vista, é programação televisiva. Tal como Jane Fonda era a filha de Henry Fonda e era natural para os fãs de cinema a aceitarem no ecrã como o aceitaram a ele. Fomos treinados para olhar para os seus exteriores lustrosos, melhorados pela cosmética - ou cirurgia - como um sinal de superioridade. Se alguém se parece com uma estrela das novelas, tem bom cabelo, uma boa postura, está impecavelmente vestido, a audiência dá-lhes muita credibilidade e está disposta a aceitá-los.
Só pela aparência de riqueza e celebridade?
Sim. E para o presidente é tudo uma questão de controlo. O seu negócio era gerido por membros da família e era um grupo muito pequeno o dos executivos que não pertenciam à família. Todas as pessoas que ocupavam uma posição importante na Trump Organization deviam muito a Donald Trump. Ele jogou este jogo de selecionar pessoas ambiciosas mas pouco qualificadas, como Michael Cohen, o advogado que acabou na prisão, e recompensá-las de forma extravagante, para que se acostumassem a um nível de riqueza e responsabilidade que não poderiam ter conseguido sozinhos. Era relativamente fácil controlá-los.
Quer dizer, exigir lealdade?
Sim, exigir lealdade mas também desempenho, sob pena de lhes tirar todos os benefícios a que se acostumaram. Dentro da sua família, olhe como a Ivanka e o Jared [Kushner] eram tristemente desqualificados para trabalharem na Casa Branca. Foram postos nestas posições porque eram familiares, e é claro que vão fazer tudo o que podem para apoiar Trump e não arriscar a perda de posição mas também de amor filial.
Isso é algo que percebeu no seu trabalho?
Tal como Donald estava determinado desde jovem e durante a sua vida a de alguma forma satisfazer o seu pai e conseguir o seu amor, que era negado, também os seus próprios filhos são guiados por este tremendo desejo de serem amados por ele. Quando eu vi os dois filhos de Trump, Eric e Donald Jr., a fazerem imitações de um pai que parece um desenho animado, senti que ambos deviam ter um sinal brilhante a dizer "por favor, ama-me, pai". Porque era isso que estavam a fazer, e há algo muito triste nisso. É assim que ele opera: atrai pessoas que não são família para perto dele e mantém familiares perto ao negar amor mas também mantendo a ameaça de que podem perder o que têm - incluindo as heranças. São pessoas que podem apresentar sem qualquer risco. E pense em quais são as opções dele. Alguém se lembra de que há um ex-presidente republicano vivo, que não apareceu de todo na convenção?

© EPA/Jim Lo Scalzo
E porque é que o partido Republicano aceita isto?
Penso que é porque o Partido Republicano que existiu desde Lincoln desapareceu. Não há um Partido Republicano fora do trumpismo neste momento. Porque ele fez ao Partido Republicano o que fez à organização que o seu pai construiu. O mito de que Trump criou a sua riqueza é apenas um mito. Ele assumiu, e quase destruiu, a empresa do seu pai, e transformou-a numa seita. Uma das coisas que é demonstrativa disto é que antes, quando eu ia à Trump Tower para me reunir com pessoas e fazer entrevistas com os seus filhos, todos eles repetiam as mesmas mentiras que ele contou sobre o seu passado. Todos eles promoviam as mesmas fantasias sobre quem ele era, porque tinham memorizado as histórias da mesma forma que os seguidores do líder de uma seita memorizam os seus ensinamentos. Mesmo que eu os confrontasse com factos que refutavam aquilo, eles continuavam a dizê-lo.
Pode dar um exemplo?
O maior exemplo disto é incrível e de certa forma trivial. Uma história que Donald começou a espalhar quando se casou com a sua primeira esposa [Ivana], que ela era uma esquiadora que competiu nos Jogos Olímpicos de 1972, no Japão, em representação da Checoslováquia. Não houve uma equipa de esqui checa no Japão nesse ano. Ela não participou nos Jogos Olímpicos e afirmar que o fez é pura fantasia, mas todos os membros da família me contaram esta história e sempre da mesma forma. Quando eu retorquia que andei a investigar e não havia equipa checa de esqui, eles diziam-me que eu é que estava enganado.
Tinham a mesma reação que os apoiantes de Trump têm quando confrontados com factos que contradizem o presidente?
É uma observação brilhante. É interessante, as pessoas embarcam no trumpismo - e penso que deve ser chamado de trumpismo, porque não é política, não é filosofia nem um conjunto de ideais, é fé nesta pessoa. Embarcam de uma forma que torna abandoná-lo insuportável.
Porque passa a ocupar tanto espaço nas suas vidas?
Sim. É como quando uma pessoa compra um carro dispendioso, mostra-o a todos os amigos e nos seis meses seguintes tem uma série de problemas mas não o abandona, porque andou a gabar-se do seu carro de luxo. Desenvolve-se uma ligação tão grande àquela identidade que as pessoas não conseguem desistir dela. Na convenção, para voltar ao tópico, estas são as pessoas mais fiáveis que o presidente pode selecionar. Vai contar com elas, também porque não tem grandes alternativas.
Como encara então a dissidência da sobrinha Mary Trump, que escreveu um livro muito crítico, e da irmã Maryanne, que foi apanhada numa gravação a dizer coisas muito negativas sobre ele?
São casos isolados. Até a irmã não divergiu publicamente. Os Trumps têm de ser encurralados para dizerem a verdade, se é que a conseguem ver. Quando estão a lidar com jornalistas ou com um escritor como eu, não o vão fazer. Mas a Mary Trump estava um pouco sob disfarce, como escritora, e como membro da família conseguiu obter a verdade da irmã de Trump. Não duvido que, no fundo, em muitos membros da família há um elemento de angústia sobre tudo isto. Em especial a Ivanka e o Jared, que não são burros. O difícil agora é que são cúmplices, ao ponto de não se poderem deixar admitir o quão horrível tudo isto é. Se fazem parte de uma administração que permitiu que 180 mil americanos morressem por causa de uma pandemia com que outros países lidaram muito melhor, como é que admitem que isto foi um erro? Que é uma presidência falhada?
Quando estava a fazer a pesquisa e a escrever sobre Trump, qual foi a impressão que teve? Os membros da família acreditam ou não em toda a mitologia?
Penso que agora acreditam, sim. Foram tão corrompidos pela vida no universo Trump que precisariam de anos de desprogramação para saírem disto. Isso não vai acontecer. A outra questão é quantas pessoas que têm acesso a centenas de milhões de dólares alguma vez confrontam verdades desagradáveis. É a loucura da sua riqueza e isolamento.
É o que conhecem?
Sim, quem é que lhes vai dizer a verdade e ajudá-los a acreditarem? Quem deixarão que lhes diga a verdade? Ninguém. Pense em Don Jr. No início da presidência de Trump, ele era um homem de família, com uma unidade intacta, mulher e filhos, apresentando-se quase como este ideal familiar. Agora perdeu essa família, divorciou-se, a mulher e os filhos foram-se embora, e a sua associação é com esta mulher que anda aos gritos [Kimberly Guilfoyle], o que é grotesco. É trágico. Na busca de persuadir os americanos a aceitar a fantasia, esta convenção foi uma minissérie em quatro partes, mas aterradora. No primeiro ato, criaram o perigo, amarraram a América à linha do comboio. No segundo ato, tiveram muita gente a gritar sobre como a América vai ser dominada pelo comunismo, o monstro de Loch Ness e Joe Biden. E depois houve um tema de esperança, que está a chegar, aí vem o salvador. E, depois de o drama ter sido criado, todos são salvos por Donald Trump. Não há muita gente que participaria nisto sem ter relações familiares com ele.
Considera que eles se veem ou se apresentam como os novos Kennedy?
Até certo ponto, sim. A diferença é que os Kennedy viveram na grande era do cinema e os Trump são da era das novelas baratas e da internet. Pense em John F. Kennedy envergando um smoking e depois pense em Donald Trump e verá a diferença. Mas também penso nos Trumps como uma família de trolls. São trolls da internet. Quando John F. Kennedy nomeou Robert [Kennedy] como procurador-geral, cometeu um ato de corrupção. Nenhum historiador negaria isso. Foi tolerado à altura porque o Partido Democrata era poderoso e o mito e mística de Kennedy tinham sido estabelecidos e o país estava seduzido por isso. O que o Trump está a fazer agora é mais à força bruta. Não há nada genial nisto. Com os Kennedy havia uma imagem falsa de calor e noblesse oblige. Os Kennedy tinham, sim, um sentido de dever cívico e acreditavam nisso sobre si próprios.
Mais qualificação, também. Kennedy tinha experiência em cargos públicos, certo?
Certo, e essa é uma grande diferença. Serviu noutros cargos públicos e tinha um sentido de dever. Também serviu no Exército, em vez de inventar afirmações falsas de incapacidades para escapar à tropa. Um era um herói genuíno e o outro disse que a crise do VIH foi o seu Vietname.

© EPA/Jim Lo Scalzo
Como interpreta o apoio que o eleitorado continua a dar a Trump e o explica a quem está a ver de fora da América?
As pessoas podem olhar para o que aconteceu com o Brexit, ou com Marine Le Pen, Silvio Berlusconi. Em todas as populações, há 35% a 45% das pessoas que são vulneráveis a abraçar uma pessoa como Trump. Donald Trump não leu um único livro em 40 anos, mas a maioria dos americanos também não. Tenha isso em conta, não para denegrir as pessoas mas para compreender ao que devotam o seu tempo e atenção. Começamos a perceber porque é que isto está a acontecer. Ele conta uma história convincente, que coloca estes eleitores num papel virtuoso. Diz que o seu sofrimento e os seus problemas, que são reais, não são culpa deles mas dos democratas e de Joe Biden. Quem tem tempo para pesquisar políticas fiscais? Ou para perceber como a desigualdade se agudizou ano após ano desde a década de 80 e de Ronald Reagan? Poucos. Se alguém aprendeu todas as noites na Fox News a acreditar naquelas vozes e elas apoiam Trump, é meio caminho andado para ele.
Tem alguma previsão para as eleições de novembro?
É impossível dizer. Penso que as pessoas subestimam a motivação dos que estão chocados com Trump. Há uma possibilidade mais substancial de Trump ser derrotado do que havia há um ano. Mas não há limites para o que ele fará, por isso devemos esperar que coisas muito perturbadoras e desonestas aconteçam entre agora e a eleição. Muito disto, penso, é motivado pelo seu desejo de não ir para a prisão. É uma pessoa que está vulnerável a acusações criminais, assim como a sua família. O que vai acontecer até 20 de janeiro de 2021 será profundamente perturbador, independentemente de qual o resultado da eleição. Será traumático.