A China anunciou na quarta-feira que vai expulsar jornalistas americanos do The New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal em retaliação à decisão de Washington de cortar o número de chineses autorizados a trabalhar para a comunicação social estatal em solo americano..O anúncio surge quando as duas potências continuam sem chegar a acordo no que toca às tarifas aplicadas às importações dos produtos de cada país e em que trocam recriminações sobre a pandemia do novo coronavírus, com o presidente americano Donald Trump a classificá-lo de "vírus chinês" e o Ministério das Relações Exteriores da China a veicular uma teoria da conspiração de que podem ter sido militares dos EUA a levar o covid-19 para Wuhan..Mas o caso da limitação da liberdade de imprensa é outro e tem um historial nas relações entre Pequim e Washington..Curiosamente, a Constituição da China prevê amplas liberdades. "Os cidadãos da República Popular da China gozam de liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de desfile e de manifestação", lê-se no artigo 35.º. A realidade é outra. No final de 2019, a China tinha 48 jornalistas na prisão, mais do que qualquer país, o que ajuda a explicar o facto de estar em 117.º lugar entre 120 países no que toca à liberdade de imprensa, segundo o relatório de 2019 dos Repórteres sem Fronteiras..As dificuldades também se aplicam aos jornalistas estrangeiros, e não se limitam a temas quentes como os movimentos rebeldes no Tibete ou em Xinjiang, mas também à forma como a elite enriqueceu..O panorama não tem sofrido melhorias. "A China tem vivido um cenário progressivamente mais restritivo na comunicação social desde que Xi Jinping se tornou presidente, em 2013", segundo um relatório do Comité para a Proteção de Jornalistas..Xi Jinping, que ganhou estatuto pela sua luta anticorrupção, terá levado muito a sério as notícias que saíram a público antes de ter chegado à presidência..imagemDN\\2019\\12\ g-2090288b-a16b-4c7f-a888-5dd0f3f7e0a6.jpg.Em 2012, o jornalista Michael Forsythe revelou na Bloomberg os negócios da família do então vice-presidente Xi Jinping, que estava prestes a tornar-se presidente da China. Entre outros negócios, dos minerais às telecomunicações, a notícia detalhou que a irmã de Xi, Qi Qiaoqiao, e o seu marido fizeram milhões ao investir no grupo Wanda. As ações da empresa do bilionário Wang Jianlin passaram a valer oito vezes mais no espaço de três anos..Meses depois, o The New York Times publicou um especial sobre a fortuna bilionária da família do primeiro-ministro Wen Jiabao. O jornalista David Barboza conquistou o Prémio Pulitzer de reportagem internacional após dar a conhecer o enriquecimento de Wen e seus próximos, sem ninguém explicar como. Só a mãe do então chefe do executivo tinha uma fortuna de 120 milhões de dólares e no ano anterior Wen Jiabao contara que a sua família era muito pobre..A reação do governo chinês passou pelo bloqueio aos sites e impediu qualquer nova candidatura de jornalistas do NYT e da Bloomberg. A proibição de novos vistos para jornalistas chegou a ser levantada tanto pelo presidente Barack Obama como pelo vice Joe Biden..Segundo a mulher de Forsythe, Leta Hong Fincher, professora universitária e também jornalista, houve ainda mais do que censura e entrada fechada a novos jornalistas: ameaças de morte por parte de uma mulher, que também terá avisado o jornalista da New Yorker Evan Osnos, como escreveu no livro Age of Ambition: Chasing Fortune, Truth and Faith in the New China: "Ele [Forsythe] e a família não podem ficar (...) Alguma coisa vai acontecer. Vai parecer um acidente. Ninguém vai saber o que terá acontecido. Simplesmente será encontrado morto.".Hong Fincher denunciou no The Intercept o tratamento da empresa de Michael Bloomberg ao marido e em especial a si (ameaças para assinar um acordo de confidencialidade) noutro tipo de pressões que surgiram na sequência da continuação da investigação de Forsythe e dos seus companheiros sobre as ligações do empresário Wang Jianlin e outros membros de alta patente do Partido Comunista Chinês..A história acabou por não ser publicada. Segundo contou mais tarde o The New York Times, na videoconferência entre as redações da Bloomberg em Nova Iorque e Hong Kong, o então chefe de redação Matthew Winkle justificou a medida lembrando a autocensura de agências de notícias estrangeiras que trabalhavam na Alemanha nazi. "Se publicarmos a história, seremos expulsos da China", disse Winkler. Em consequência, cinco jornalistas demitiram-se, entre os quais Forsythe..Segundo o Comité para a Proteção de Jornalistas, têm sido vários os casos de jornalistas estrangeiros impedidos de entrar no país ou que não viram a sua credencial renovada nos últimos meses..Mas o tom subiu, e de que maneira, em fevereiro depois de a China ter dado ordem de expulsão a três jornalistas (dois norte-americanos e um australiano) do Wall Street Journal, tendo alegado que o jornal publicou um título racista. Desde 1998 que um jornalista estrangeiro não era expulso da China..artigo11839160.O título, "A China é o verdadeiro doente da Ásia", referia-se a um texto de opinião de um professor universitário e não teve qualquer colaboração dos três jornalistas expulsos. O artigo alertava para os riscos da epidemia do novo coronavírus para a economia chinesa e mundial e criticou a resposta inicial do governo da província de Wuhan, que apelidou de "hermético e egoísta" e também não poupou a resposta inicial do governo central para conter o contágio..imagemDN\\2020\\03\ g-78cad66f-14eb-46da-9879-6d3ac6a9f048.jpg.O conflito intensificou-se à medida que os EUA reclassificaram a imprensa estatal chinesa a operar nos Estados Unidos como missões estrangeiras..O Clube de Correspondentes Estrangeiros da China (FCCC) disse que a expulsão significa que pelo menos 13 jornalistas norte-americanos a trabalhar no país serão expulsos. A FCCC disse "deplorar" a medida e advertiu: "Não há vencedores no uso de jornalistas como peões diplomáticos pelas duas potências económicas mais poderosas do mundo.".Opinião diversa tem Pequim. "As expulsões são legítimas e uma autodefesa fundamentada em todos os sentidos", disse o Ministério das Relações Exteriores. Os jornalistas visados devem devolver as suas credenciais no prazo de dez dias e não poderão trabalhar em Hong Kong e em Macau, territórios que gozam de um estatuto que consagra a liberdade de expressão..A Human Rights Watch mostrou-se alarmada com essa proibição. "A medida viola ainda mais a liberdade limitada de Hong Kong sob o regime de 'um país, dois sistemas'", disse a HRW. Além disso, Pequim ordenou aos órgãos daqueles jornalistas, assim como à Voice of America e à revista Time, que declarassem por escrito quem são os seus funcionários, as suas finanças, operações e bens imóveis na China em resposta às regras semelhantes impostas por Washington aos meios de comunicação chineses..O Ministério das Relações Exteriores disse que essas medidas - que a China foi "obrigada a tomar em resposta à opressão injustificada que as organizações de media chinesas vivem nos EUA" - eram "inteiramente necessárias e recíprocas"..imagemDN\\2020\\03\ g-9aa12cf9-cda3-4a51-8202-9d56783432dc.jpg."Lamento a decisão da China de excluir ainda mais a capacidade do mundo em conduzir o trabalho da imprensa livre que, francamente, seria realmente boa para o povo chinês nestes tempos globais incrivelmente desafiadores, em que mais informação e mais transparência são o que salvará vidas", reagiu o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo. Disse também que a China estava errada ao equiparar os seus meios de comunicação estatais, que respondem a Pequim, aos meios de comunicação independentes dos EUA.."Todos os meios de comunicação social geridos pelo Partido devem trabalhar para expressar a vontade do Partido e as suas propostas e proteger a autoridade e unidade do Partido", disse Xi Jinping numa visita a órgãos de comunicação em 2016, segundo a agência oficial Xinhua noticiou na altura. Também o presidente norte-americano falou sobre o tema, tendo repudiado a decisão da China de expulsar jornalistas dos Estados Unidos. "Não estou contente por ver isso", disse Donald Trump. "Eu tenho as minhas próprias desavenças com todos esses três grupos de media, acho que sabem isso muito bem. Mas eu não gosto nada de ver isso.".Outras reações de lamento foram expressas pelos diretores dos jornais visados. Matt Murray, chefe de redação do The Wall Street Journal, comentou a medida de ataque "sem precedentes" à liberdade de imprensa. Para Dean Baquet, diretor executivo do The New York Times, é um "erro grave" da China, mas desejou que Washington e Pequim resolvam as desavenças. O diretor executivo do The Washington Post, Marty Baron, disse que a decisão foi "particularmente lamentável porque acontece durante uma crise global sem precedentes".