“Putin está a canalizar tanto o poder Romanov como o soviético para um novo paradigma de Estado russo”
Foto: Rita Chantre / Global Imagens

“Putin está a canalizar tanto o poder Romanov como o soviético para um novo paradigma de Estado russo”

A republicação de Os Romanov, livro que conta a história da dinastia que governou a Rússia durante três séculos, foi pretexto para uma conversa com o britânico Simon Sebag Montefiore.
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Serão os Romanov os verdadeiros fundadores da Rússia, mesmo que Ivan, o Terrível, tenha sido o primeiro czar?

Sim, acredito que sim. De certa forma, Ivan, o Terrível, foi o fundador da dinastia Romanov quando se casou com Anastasia Romanovna, e o seu filho, Fiódor, foi tecnicamente o último Rurikida, mas também um Romanov por via materna. Portanto, sim, os dois estão intimamente ligados e vejo-os como interligados. Mas, após os Rurikidas, a Rússia sofreu um colapso estatal, pelo que o projeto Romanov representou também uma refundação do Estado moscovita.

A ascensão da família foi inesperada?

Sim e não: havia muitos candidatos a tornarem-se grão-príncipe ou czar em 1613, mas Mikhail Romanov foi sempre o melhor candidato, razão pela qual foi escondido pela sua família e cortesãos, e pela qual os seus inimigos moscovitas e estrangeiros, incluindo suecos e polacos, o perseguiram e esperavam matá-lo. A sua ligação a Ivan, o Terrível, e a Fiódor sempre o tornaram o candidato mais legítimo para uma nova versão do antigo Estado.

Pedro, o Grande, merece a sua reputação de modernizador do império?

Sim, mereceu a sua reputação em todos os aspetos. Foi verdadeiramente uma personagem extraordinária e, como líder político e monarca, possuía todos os talentos necessários.

Houve várias czarinas, mas, sobretudo, como é que uma alemã, Catarina, a Grande, se pôde tornar tão poderosa e influente na História russa?

Bem, muitos monarcas dos séculos XVIII e XIX por toda a Europa tinham ligações com outros países, pois é da natureza das monarquias casar os seus filhos com membros de outras dinastias para fins políticos. Para as monarquias cristãs não-católicas, os principados alemães do Sacro Império Romano-Germânico eram inevitavelmente as fontes mais conve- nientes de parceiros matrimoniais. A Rússia estava a expandir a sua influência na Alemanha sob o reinado de Pedro I, pelo que ele e os seus sucessores casaram-se com princesas oriundas de dinastias alemãs. Isto torna-se menos surpreendente quando se percebe que o marido de Catarina, o legítimo czar, também era alemão e, em termos de política e cultura, era mais alemão do que ela. Ironicamente, ela era a escolha russa. Além disso, o que diferenciava a Rússia era que a sua autocracia era tão absoluta que uma esposa podia depor o marido e tornar-se imperatriz por direito próprio, assumindo todos os poderes do autocrata.

Alexandre I foi decisivo na derrota de Napoleão?

Foi decisivo no sentido em que, ao manter o Estado unido, não ser deposto e não se render, possibilitou a derrota de Napoleão. Alexandre é subestimado em muitos aspetos. Em parte, porque enfrentou um génio como Bonaparte. Expôs-se ao ridículo ao tentar comandar batalhas contra Napoleão. Foi então obrigado a submeter-se à França. Mas manteve a calma e esperou, o que demonstrou capacidade política. Na invasão da Rússia, foi obrigado a ceder demasiado poder a Kutuzov. Mas, uma vez iniciada a retirada, mostrou que tinha amadurecido e aprendido muito - essencial para um líder - e formou realmente a coligação que lutou contra Napoleão até Paris. Por isso, apesar de todas as suas vaidades e excentricidades, revelou-se bastante eficaz.

Os últimos 90 anos da dinastia foram um fracasso, com os Romanov incapazes de modernizar o império?

O verdadeiro fracasso não foi apenas a falha em reformar, mas também a falha em criar uma versão do império que abrangesse todos os seus povos não-russos. Era um império multiétnico e a insensatez de abraçar o ultraslavofilismo ou o nacionalismo russo fazia pouco sentido num império que incluía 50% de não-russos. Faz mais sentido agora, no atual Estado russo, para Putin, porque já não contém tantos finlandeses, polacos, judeus, georgianos, etc.

A Revolução de 1917 só foi possível porque Nicolau II era um czar fraco e hesitante?

Pode ser que o império fosse irreformável, mas Nicolau II definitivamente piorou-o muito. Era mais forte do que parecia, no entanto. Recorde-se que governou mais de 20 anos, apesar de uma série de desastres, alguns por sua culpa. A Revolução foi realmente possível porque, ao contrário de 1905, o Exército virou-se contra ele. Houve tumultos espontâneos em Petrogrado, mas poderiam ter sido reprimidos. Mas a Guarda Imperial tinha sido dizimada na ofensiva de Brusilov e os generais viraram-se contra o czar. Na prática, foi um golpe militar.

O mito de Anastasia indica a popularidade dos Romanov?

Tais mitos são inevitáveis: a necessidade de lendas de sobrevivência, redenção e inocência está profundamente enraizada nas nossas almas.

A União Soviética representou uma rutura completa com a tradição imperial, ou havia algo dos Romanov no sistema?

Sim, havia algo de muito imperial nos soviéticos. Lenine trabalhou arduamente para reunir o máximo possível do império Romanov. Necessitava dos recursos e da massa territorial da Ucrânia, para além da Bielorrússia, e recuperou-os, juntamente com o Turquestão e o Cáucaso. Mas não conseguiu retomar a Finlândia, os países bálticos e a Polónia. Estaline estudou a liderança imperial, sobretudo Ivan e Pedro, e compreendeu que “o povo precisa de um czar” e que ele seria uma versão marxista do czar. Mas também sabia que os interesses russos eram semelhantes aos soviéticos e seguiu uma política semi-imperial, conquistando um império maior em 1945 do que os czares poderiam ter sonhado...

Vladimir Putin está a tentar ser a síntese do poder soviético com a força da Rússia czarista?

Sim, Putin está a canalizar tanto o poder Romanov como o soviético para um novo paradigma de Estado russo e de glória que cooptou Pedro, o Grande, e Catarina e Potemkin numa única narrativa com as vitórias de Estaline na Segunda Guerra Mundial. E, claro, tal como Ivan e Pedro e Potemkin/Catarina e Lenine, acredita que a Ucrânia é essencial para o Estado russo...

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"Existem muitos países com um preconceito compreensível contra as antigas potências imperiais"

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