Xi Jinping apresentou a Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota em 2013. Estava no poder há um ano, após a sua eleição como Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês em 2012. Era uma ideia nova? Ou já tinha sido concebida pelos anteriores líderes chineses?Não. Os chineses nunca demonstraram grande interesse pelas Rotas da Seda. A China sempre se considerou o centro do mundo - algo semelhante aos nova-iorquinos de hoje - pelo que, historicamente, presumia-se que outros povos viriam até ela. E vieram: sogdianos, árabes, persas e, mais tarde, britânicos, europeus e muitos outros. É possível encontrar alguns momentos de curiosidade, claro: as observações de Sima Qian sobre os povos a oeste há mais de 2000 anos, ou as fantasias literárias encontradas em Jornada ao Oeste do século VII. Mas, de um modo geral, a China não estava profundamente envolvida com as Rotas da Seda enquanto conceito organizador do funcionamento do mundo, ou mesmo na exploração de oportunidades em regiões distantes do nome que a China recebeu no passado e mantém no presente: Zhongguo, o centro do mundo. Na verdade, o ímpeto moderno para a ideia veio principalmente do Japão no século XX, formulado em parte como um antídoto para as narrativas sobre a supremacia do Ocidente. O modelo das Rotas da Seda forneceu uma forma de os pensadores na Ásia falarem sobre as suas próprias interações, conquistas e histórias sem serem doutrinados sobre a centralidade de Aristóteles ou Leonardo da Vinci, ou a supremacia das tradições ocidentais. Ironicamente, em tempos mais recentes, a força motriz para o renascimento contemporâneo da linguagem das “Rotas da Seda” veio dos Estados Unidos - Silk Roads Act de 1999, seguida pelos traumas das intervenções no Afeganistão e no Iraque, que também levaram a novas ideias sobre como melhorar a conectividade no centro da Ásia. E depois veio Hillary Clinton, que invocou explicitamente a ideia de uma “Nova Rota da Seda” em 2011. Só depois disso é que Xi Jinping e a liderança chinesa reconheceram o quão poderosa e significativa a narrativa poderia ser, especialmente como forma de explicar porquê e como os Estados poderiam cooperar no futuro. Portanto, não: esta não é uma forma tradicional chinesa de ver o mundo - pelo menos, não até há pouco tempo. Xi Jinping apresentou aquela que se tornou a Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota há 12 anos; e é certo que se baseou em ideias articuladas pelos seus antecessores sobre a conectividade regional e os corredores económicos. No entanto, o enquadramento, a ambição e o alcance global da Iniciativa Uma Faixa , Uma Rota foram de Xi - e é graças a ele que esta faz agora parte da constituição formal do Partido Comunista da China. É, na minha opinião, uma jogada inteligente, pois é fácil de compreender e deixa claro que a China está a tentar falar a linguagem do comércio e da cooperação. Isto é bem recebido não só na Ásia Central e no Sudeste Asiático, mas também noutros locais.O seu livro As Rotas da Seda, lançado em 2015, foi um sucesso. A Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota, apresentada pouco antes e inspirada na Rota da Seda, foi também um grande sucesso para a China?Há, obviamente, diferentes formas de analisar isto. Em primeiro lugar, penso que a questão certa não é se foi um sucesso para a China, mas sim para os países recetores. Como afirmou a revista The Economist ao avaliar os primeiros 10 anos da Iniciativa, muitos países de rendimentos médios e baixos beneficiaram substancialmente do investimento chinês, particularmente em projetos como a energia, caminhos-de-ferro, portos de águas profundas, energia limpa e outros. É certo que houve alguns casos em que houve falhas, em que os projetos não seguiram o planeado ou não foram bem executados. Além disso, é de salientar que a China tem sido um parceiro disposto a fornecer financiamento, enquanto as instituições multinacionais e os países ocidentais nem sempre o puderam ou quiseram fazer. Isso foi um grande sucesso para a China? Essa é uma boa questão. Por um lado, os projetos da Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota proporcionam normalmente retorno financeiro - por isso, se acredita no modelo de capital e investimento, o resultado também tem sido positivo para a China. A situação é mais complexa nos casos em que se verificaram problemas com níveis excessivos de endividamento ou, mais concretamente, com projeções demasiado otimistas. Nestes casos, embora possa ser tentador pensar ou falar sobre armadilhas da dívida, é provavelmente mais útil ser paciente e analítico, e reconhecer que ficar com dívidas impagáveis não é necessariamente uma boa notícia para a China ou para as instituições financeiras chinesas. Além disso, vale a pena notar que, apesar de todos os seus esforços para se envolver com outras regiões da Ásia ou mesmo da América Latina, a China não tem sido particularmente bem-sucedida na conversão da sua influência em amizades e alianças funcionais. Parte disso deve-se à má comunicação; parte à inexperiência em formação; e em alguns casos deve-se à simples falta de jeito. Mas, se me perguntassem se foi bem-sucedida, eu diria o seguinte: o comércio da China com a América Latina era de 12 mil milhões de dólares em 2000. Hoje, é de 500 mil milhões de dólares. Esta é, provavelmente, uma boa notícia para os latino-americanos.A China conseguiu convencer outros países, tão distantes como África e, lá está, a América Latina, de que a Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota é uma situação vantajosa para todos?Muito depende de se se quer ouvir o que já se pensa. O meu trabalho como historiador e académico é analisar evidências e dados. A maioria dos comentadores presume que a maior parte do mundo vê os assuntos globais na mesma perspetiva que nós, na Europa e no Ocidente. A realidade é que 85% da população mundial não vive no Ocidente; na verdade, quase dois terços não vivem em democracias funcionais. Assim, por exemplo, a maior parte do mundo não considera o ataque da Rússia à Ucrânia injustificado, embora nós, aqui na Europa, possamos considerá-lo. Em muitos países, o investimento, a atenção e o apoio chineses são recebidos de forma positiva, não só no âmbito político, mas também pela população em geral. Há, naturalmente, desafios. Por exemplo, na Ásia Central, existe uma considerável hostilidade em relação à mão-de-obra chinesa e muita discussão sobre o facto de homens chineses estarem a casar com mulheres locais. Estas opiniões nem sempre se baseiam em factos, refletindo historietas, impressões e, por vezes, até notícias falsas. A conclusão, com certeza, é que os países de todo o mundo provavelmente prefeririam investimentos de (por exemplo) empresas portuguesas ou do Estado português. Mas esse investimento ou não existe, ou vem com condições, ou é caro. Portanto, embora seja uma pergunta razoável se as pessoas na América Latina ou em África veem a China como uma situação vantajosa para todos, geralmente não têm muitas opções. Isto, por si só, é uma vitória para Pequim.A Rússia, uma grande potência euro-asiática, rendeu-se à estratégia chinesa, aceitando ser o parceiro menor?A maioria dos comentadores diria que sim; sou mais cético. As estratégias chinesa e russa são distintas e muito diferentes. Moscovo e Pequim querem coisas muito diferentes a curto e longo prazo. Penso que nós, no Ocidente, estamos tão mal informados que temos dificuldade em analisar os pormenores e a realidade - e preferimos ver sombras e alianças que nem sempre são reais. A Rússia e a China têm um casamento por conveniência. Isto é bom para ambos; e não há nada de mal nisso. Um dos problemas que temos na Europa é que não compreendemos e não criamos relações úteis semelhantes com muitos parceiros.Será que a recente cimeira de Donald Trump com cinco presidentes da Ásia Central significa que os EUA identificam o coração da Eurásia como decisivo na luta pela supremacia global?A perspetiva dos EUA é global - portanto, essa é apenas uma arena. Acompanho de perto os EUA em África, onde têm estado muito ativos na RDC, por exemplo; ou no Cáucaso, onde Trump tem estado muito envolvido com o Azerbaijão/Arménia. Muitos podem preferir rir-se dele; mas Trump também desempenhou um papel importante na redefinição das relações e na reorientação das mentalidades no Sul e Sudeste Asiático. Tem 100% de razão sobre a importância da recente visita dos cinco presidentes dos antigos Estados soviéticos da Ásia Central. Esta reunião teve dois objetivos: em primeiro lugar, ajudar a reconfigurar uma rara vulnerabilidade estratégica dos EUA em torno das terras raras e dos minerais críticos; mas também deixar bem claro à Rússia, China, Irão e outros que, apesar de toda a conversa sobre “América em primeiro lugar”, os EUA não são isolacionistas e estão dispostos a usar a sua formidável força para configurar o mundo de acordo com as suas próprias necessidades. E não se surpreenderá ao saber que não é difícil adivinhar o que foi informado a Trump quando disse que “estas nações já foram o lar da antiga Rota da Seda, que ligava o Oriente e o Ocidente” e que “compreendo a importância desta região”. Da mesma forma, quando ele disse que “infelizmente, os anteriores presidentes americanos negligenciaram completamente esta região”, posso dizer-lhe como foi informado..A Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota foi anunciada por Xi em Astana. Agora, Trump recebe o presidente cazaque Kassym-Jomart Tokayev na Casa Branca e trata-o como um parceiro importante. O maior país encravado do mundo tem um grande valor ao ponto de ser disputado por americanos, chineses e russos por causa da localização geográfica ou por causa dos recursos minerais?Eu analisaria isto de outra forma: do ponto de vista do Cazaquistão. Um pouco como alguém que tenta obter o melhor preço pelos seus bens/casa etc., quanto mais pessoas estiverem a prestar atenção, melhor. Se os EUA quiserem fazer negócios, envolver-se ou apoiar o Cazaquistão, esta é uma excelente notícia para o país, o presidente e o seu povo: quanto mais interesse, melhor. Isto permite que melhores acordos sejam fechados, em melhores termos. Um dos problemas desta região como um todo é que é quase sempre vista de fora - um campo de batalha; um local para competir, marcar pontos e dominar. Penso que esta é a política e até a história contada através de apresentações em PowerPoint, em vez da realidade. As pessoas que conheço e com quem trabalho nestes países são inteligentes, ponderadas e pensam sempre nas consequências a longo prazo. Isto deixa-me um pouco louco, pois se alguém perguntasse se a Europa é um local a ser disputado pela Rússia, China e EUA, as pessoas pensariam que está louco. Acho que precisamos de mudar a forma como pensamos sobre as pessoas e sobre nós próprios.Olhando para o passado, até onde levou a antiga Rota da Seda os produtos chineses?Bem, pode encontrar sedas chinesas no Mediterrâneo há mais de 2000 anos - e vidro romano em túmulos chineses do mesmo período. Para todos os lugares que se olha, podem encontrar-se evidências de comércio a longa distância - como porcelana, objetos lacados, chá e peças de metal que viajaram pelos oásis da Bacia do Tarim e mais além, chegando às cortes da Sogdiana e da Báctria, e depois mais adiante para a Pérsia e o Mediterrâneo oriental. As mercadorias chinesas também se deslocaram para sul, ao longo de rotas marítimas através do Mar do Sul da China e do Oceano Índico. Chegaram aos grandes portos comerciais da Índia e do Sri Lanka e, a partir daí, navegaram para a Arábia e para o Mar Vermelho, acabando por chegar ao Egipto e aos mercados da África Oriental. As descobertas arqueológicas destacam o quão longe estes objetos viajaram: cerâmicas da dinastia Tang foram encontradas em lugares tão distantes como o Quénia moderno; porcelana Song aparece em naufrágios na costa da Indonésia; Moedas chinesas foram descobertas no Irão, no Iraque e até no Mar Báltico. E, uma vez chegados os marinheiros portugueses e espanhóis às Américas, as mercadorias chinesas - e as pessoas - também atravessaram o Pacífico em grandes quantidades.A Pax Mongolica foi a era dourada da Rota da Seda?Se a Pax Mongolica foi uma “era dourada” da Rota da Seda depende muito de quem se trata! Se teve o azar de sofrer com a violência mongol, então a resposta é taxativamente não. Cidades como Nishapur e Bagdade sofreram destruição catastrófica; populações foram massacradas; sistemas agrícolas e as redes de irrigação foram arruinados. Para muitas comunidades, a chegada dos mongóis não representou prosperidade, mas um trauma a uma escala vasta e inesquecível. Mas se sobreviveu - e, melhor ainda, se conseguiu encontrar uma posição dentro do sistema mongol - o cenário é bem diferente. Figuras como Ivan Kalita, em Moscovo, ascenderam precisamente porque aprenderam a trabalhar com os senhores mongóis. O Império Mongol criou estruturas administrativas sem precedentes que recompensavam a cooperação, garantiam a movimentação de enviados e mercadores e integravam territórios distantes sob uma única estrutura política. Aqueles que conseguiam obter privilégios ou patrocínio podiam conhecer um avanço económico e político muito importante. Para os comerciantes em particular, a Pax Mongolica foi transformadora. Sob o domínio mongol, a vasta extensão que vai do rio Amarelo, na China, até ao Danúbio tornou-se notavelmente segura. O banditismo foi reprimido; caravançarais foram construídos; estações postais foram mantidas; e leis garantiam a proteção dos comerciantes. Mercadorias que antes demoravam meses ou anos a ser transportadas, atravessavam agora o continente com uma velocidade surpreendente. O percurso de Marco Polo, quaisquer que sejam os adornos que lhe põem, teria sido inconcebível sem a estabilidade imposta pelos mongóis. O mesmo se aplica ao movimento em grande escala de tecidos chineses, cavalos da Ásia Central, vidros persas, especiarias e muito mais da Índia e do Sudeste Asiático. No entanto, esta mesma conectividade também teve consequências negras. As redes de estradas, portos e estações de retransmissão não só permitiam que as mercadorias e as pessoas se deslocassem rapidamente, como também os agentes patogénicos. A Peste Negra, que chegou à Europa no final da década de 1340, difundiu-se precisamente através destas redes de troca. Os frutos da Pax Mongolica dependiam de quem se era e de onde se estava.A chegada de Vasco da Gama à Índia representou um rude golpe para o comércio terrestre entre a Ásia e a Europa, ou havia clientes para todos?A viagem de Vasco da Gama tardou a ter algum efeito real, mas a sua chegada à Índia ajudou a lançar as bases de um império português que se estendia pela América do Sul, África e Ásia. Este império desempenhou um papel central na integração do mundo, criando os primeiros sistemas de troca a que hoje chamamos globalização. Mas, como sempre, isto foi bom para uns e desastroso para outros. A era dos descobrimentos europeus trouxe consigo séculos de escravatura, exploração e miséria. Trouxe grande riqueza a alguns europeus, mas não a todos. E o mesmo aconteceu em África e na Ásia: os governantes locais que se posicionaram bem no comércio global puderam prosperar. É por isso que os líderes podiam construir monumentos como o Taj Mahal, tal como as elites portuguesas construíram os seus próprios grandes palácios. É também importante lembrar que a escolha entre rotas terrestres e marítimas é artificial e, infelizmente, produto de uma visão superficial da história atual. É claro que devemos vê-las lado a lado e não separá-las: são complementares, não são concorrentes. Os europeus gostavam de acreditar que eram os únicos construtores de impérios do mundo, mas os otomanos, os mogóis e os Qing foram também grandes beneficiários desta nova ordem mundial - poderosos, globais e fundamentalmente terrestres. Na verdade, havia clientes suficientes para todos.O romantismo em torno da Rota da Seda, o próprio nome, favorece hoje a política externa chinesa?Bem, é uma história melhor do que a da escravatura, da exploração e da dominação, com certeza. Quando vou a países de África, não me surpreende que os chineses queiram falar sobre as Rotas da Seda e sobre a cooperação, enquanto apontam como os europeus levaram milhões de africanos acorrentados para outras partes do mundo. Os europeus esquecem-se que outras partes do mundo não nos veem apenas como bons jogadores de futebol, autores, artistas e assim por diante, mas como pessoas que exploraram recursos, industrializaram-se queimando combustíveis fósseis, enriqueceram e estão agora a tentar impedir o crescimento de outros lugares ou a colocá-los ativamente no seu devido lugar. Neste contexto, precisamos de desenvolver melhores histórias e narrativas - e é nisso que os historiadores podem ajudar. Estive em Bruxelas em outubro para algo chamado Global Gateway - de que a maioria das pessoas em Portugal nunca ouviu falar; esta é a principal política externa e económica da UE. Mas o que significa e para quem? Parece uma loja Duty Free num aeroporto. As Rotas da Seda ressoam muito mais do que isso.Outro dos seus livros conta a história da Primeira Cruzada. E um outro narra a história do mundo tendo em conta a forma como o ambiente moldou as sociedades humanas. As Cruzadas afetaram a Rota da Seda? Algum fenómeno natural também a afetou? Lembro-me que, numa entrevista anterior em Lisboa, me falou da abundância de chuvas por volta do início do século XIII, que deu à Mongólia prados verdes, uma abundância de cavalos e, portanto, a capacidade militar de Genghis Khan.Ótima pergunta; e não ficará surpreendido ao saber que a resposta é sim. O mundo natural é o palco onde todas as atividades humanas acontecem - tal como acontece com toda a vida animal e vegetal também. Portanto, sim: o clima e os fatores ambientais desempenham um papel enorme. Se estiver montado num cavalo com uma armadura pesada e estiver 35°C, a sua capacidade de luta será diferente do que se a temperatura for amena; as suas necessidades de hidratação serão diferentes - tal como as do seu cavalo. Da mesma forma, se estiver num castelo sitiado, ser capaz de se alimentar é talvez ainda mais importante do que a sua determinação ou a sua fé. É claro que todos estes fatores desempenham papéis fundamentais. E as Cruzadas afetaram as Rotas da Seda? Sim! Porque todas as interações têm consequências - boas e más. E, mais uma vez, tudo depende de quem é e de onde está....Peter Frankopan: “Das sete grandes mudanças de regime imperial na China, todas ocorreram num contexto de mudança climática”.“Putin está a canalizar tanto o poder Romanov como o soviético para um novo paradigma de Estado russo”