Myanmar é epicentro das "fábricas de crime" que afetam Portugal
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Myanmar é epicentro das "fábricas de crime" que afetam Portugal

Fraude digital: como uma tempestade perfeita de guerra civil e tecnologia transformou o Sudeste Asiático num vizinho virtual extremamente perigoso para os portugueses.
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A distância entre as selvas de Myanmar e os ecrãs dos telemóveis em Lisboa, no Porto ou noutra região portuguesa nunca foi tão curta. O que começou por ser um problema regional no Sudeste Asiático transformou-se, em 2025, numa crise global com uma "ponta" bem assente no mundo lusófono.

Investigações da agência de notícias Reuters e relatórios de autoridades internacionais revelam que aquele país se consolidou, hoje, como um autêntico "Estado de Burlas", onde o crime organizado opera com a precisão de uma multinacional tecnológica, mas com métodos de escravatura medieval. Só que, com a tecnologia do mundo moderno, o seu alcance é global, com Portugal a ser uma das suas vítimas.

Esta ascensão não ocorreu de forma orgânica, mas sim pelo aproveitamento de um vácuo de poder sem precedentes. Segundo a Reuters e o Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC), a transformação do país é o resultado direto do golpe militar de Fevereiro de 2021. A destituição do governo civil mergulhou a antiga Birmânia na guerra e num colapso administrativo que deixou as fronteiras sem qualquer controlo efectivo. A Junta Militar, isolada por sanções e desesperada por financiamento, passou a tolerar e a lucrar activamente com actividades ilícitas em troca do apoio de milícias locais.

Esta vulnerabilidade atraiu as máfias chinesas que, entre 2022 e 2023, foram expulsas do Camboja após uma repressão conjunta entre Pequim e Phnom Penh. Myanmar ofereceu o refúgio perfeito: "Zonas Económicas Especiais" controladas por Grupos Armados Étnicos, como a Guarda de Fronteira (BGF).

Nestes territórios, onde a polícia nacional não tem autoridade, as tríades encontraram infraestruturas de luxo construídas originalmente para casinos, que foram rapidamente convertidas em centros de operações de fraude à escala industrial. A geografia selou o destino da região: complexos como Shwe Kokko e Myawaddy localizam-se a escassos quilómetros da fronteira com a Tailândia, o que inicialmente permitiu o uso de redes de telemóvel tailandesas.

Mesmo com bloqueios e cortes de energia, o uso massivo de terminais Starlink (de ligação a internet por satélite) e geradores elétricos industriais garante que estas cidades-estado criminosas continuem operacionais, financiando exércitos privados através do roubo digital global, comprovou a Reuters no local.

Os esquemas em detalhe

Dentro destes complexos, a indústria do crime está organizada por departamentos especializados que utilizam manuais de psicologia e guiões de conversação para refinar os ataques. No topo da hierarquia encontra-se o Pig Butchering (abate de porcos, em tradução literal). Neste esquema, o criminoso constrói uma relação de confiança com a vítima ao longo de meses, simulando uma amizade ou romance digital. Através de plataformas falsas de "marca branca" que mostram gráficos de lucro fictícios, os burlões convencem o alvo a investir todas as suas poupanças em criptomoedas. O "abate" ocorre quando a vítima tenta levantar os fundos e é confrontada com a necessidade de pagar "taxas de libertação" ou "impostos" inexistentes, acabando por perder todo o capital.

Apesar de existirem casos daqueles em Portugal, a face mais visível deste sistema no nosso país são as "burlas de tarefas" via WhatsApp. Nestes casos, estas redes operam através de um funil de recrutamento em que a vítima recebe pequenos pagamentos (5 a 10 euros) por tarefas simples, como pôr "likes" em vídeos ou avaliar hotéis, apenas para provar uma falsa legitimidade. Assim que o utilizador é atraído para grupos de Telegram "VIP", é-lhe pedido que faça depósitos elevados para desbloquear tarefas de maior valor, momento em que o contacto é cortado e o dinheiro desaparece.

Adicionalmente, as autoridades identificaram a ascensão das "Burlas de Recuperação", onde os criminosos contactam vítimas anteriores fingindo ser advogados que prometem recuperar os fundos mediante novas taxas adiantadas.

Se os portugueses são os alvos financeiros preferenciais, os cidadãos da CPLP -- com destaque para os brasileiros -- são frequentemente as vítimas do tráfico humano que sustenta esta engrenagem. Na maioria destes casos, os scammers são atraídos por falsas promessas de emprego tecnológico na Tailândia mas, ao chegarem, são transportados para Myanmar. Aí, os seus passaportes são confiscados e são obrigados a trabalhar 16 horas por dia sob ameaça de tortura e choques eléctricos. Se não atingirem as metas de burla, são vendidos entre complexos como mercadoria.

Alertas da PJ e do BdP

A gravidade da situação levou já a Polícia Judiciária (PJ) e o Banco de Portugal (BdP) a emitirem alertas urgentes nos últimos meses deste ano. Em outubro e novembro, as autoridades avisaram para a multiplicação de chamadas de números nacionais que utilizam técnicas de spoofing para simular proximidade.

Além disso, a Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime (UNC3) da PJ denunciou, em dezembro, campanhas de phishing que utilizam abusivamente o logótipo da polícia para assustar cidadãos com falsas notificações judiciais, visando apenas a captura de credenciais bancárias e dados pessoais.

O desafio permanece hercúleo. A localização destes centros em zonas de impunidade total, controladas por milícias aliadas à junta militar, torna a extradição quase impossível. Como a Reuters descreve, o branqueamento de capitais é pulverizado através de redes globais de "mulas de dinheiro" e stablecoins, como o USDT, tornando o rastreio financeiro extremamente complexo. Perante este cenário, a sensibilização e o ceticismo digital tornaram-se a primeira e mais eficaz linha de defesa para os cidadãos do mundo, Portugal inclusive.

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