Nos últimos dias, a possibilidade de uma solução negociada para pôr fim à guerra na Ucrânia aparenta fazer o seu caminho. Apesar de ter nascido de uma proposta que beneficia o invasor, Kiev, à falta de alternativa, não a enjeitou, tentando moldá-la na medida do possível, sendo os pontos mais críticos as questões territoriais e o controlo da central nuclear de Zaporíjia. Apesar da pressão norte-americana e de algumas declarações otimistas, o ceticismo — ou o pessimismo — reina na Europa: basta ouvir Vladimir Putin, que em junho declarou que toda a Ucrânia pertence à Rússia porque “os povos russo e ucraniano são um só”; ou, mais recentemente, segundo os meios de comunicação do seu país, rejeitou a hipótese de não conquistar o Donbass (as regiões de Donetsk e Lugansk) por completo. “O Donbass é nosso”, terá afirmado o presidente russo. Uma posição que embate de frente com o plano de 20 pontos emendado por Kiev, que prevê uma zona económica especial, ou seja, desmilitarizada, para o leste ucraniano, pelo que as perspetivas de um desfecho justo e a breve trecho são escassas. Ao DN, o cientista político Bernardo Ivo Cruz mostra-se “bastante pessimista” quanto à hipótese de um acordo de paz num futuro próximo. .5000km2 foi o avanço das forças russas em território ucraniano em 2025. Uma área equivalente à região do Algarve e que, em conjunto com a ocupação anterior, equivale a 20% da Ucrânia.. Até ao momento, a estratégia do Kremlin tem sido a mesma desde o reatar das relações diplomáticas com Washington: não se desviar um milímetro dos objetivos militares enquanto aparenta estar a desenvolver conversações com os Estados Unidos, como se viu após a cimeira do Alasca entre Donald Trump e Putin, quando uma reunião subsequente em Budapeste foi cancelada porque Moscovo voltou a pôr em cima da mesa as “causas profundas” do conflito. Há quem, como o presidente da Estónia Alar Karis, diga que Putin simplesmente “não quer a paz”, e os relatórios mais recentes dos serviços de informações dos EUA alertam que Putin mantém o plano de conquistar a totalidade da Ucrânia e inclusive de reclamar territórios da antiga União Soviética. .Segundo o analista Casey Michael tudo se resume à obsessão do líder russo: “Não há quantidade de armas, material ou apoio que o Ocidente possa dar à Ucrânia que dissuada Putin da sua visão final de reunificar Kiev e Moscovo e de apropriar-se da soberania ucraniana para si próprio. Putin está tão saturado de teorias da conspiração, iliteracia histórica e obsessões com o seu próprio legado que não há custo que não esteja disposto a pagar para satisfazer a sua obsessão de conquistar a Ucrânia para si e restaurar a Rússia ao estatuto de grande potência que supostamente merece”, escreveu na Foreign Policy. A guerra mais mortíferaO número de conflitos armados ativos mundo fora rondava os 130, disse em junho o Comité Internacional da Cruz Vermelha. O mais mortífero, segundo o índice desenvolvido pelo Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), é a Ucrânia, cuja população tem sido vítima diária de drones de ataque e de mísseis em números cada vez mais elevados, enquanto, em paralelo, as forças russas continuam a destruir a infraestrutura energética. Há dias, o serviço de informações do Ministério da Defesa britânico estimava o número de baixas russas (mortos e feridos) em 2025 em 400 mil, semelhante ao ano anterior. Nenhuma das partes divulga as suas baixas. A última vez que tal aconteceu foi em fevereiro, quando o presidente ucraniano admitiu terem morrido mais de 45 mil soldados desde fevereiro de 2022..26500Eventos de batalha registados na Ucrânia pelo ACLED nos primeiros 11 meses do ano, um aumento de 53% face ao ano anterior..No dia em que Donald Trump tomou posse, 20 de janeiro, as forças russas lançaram um míssil balístico e 141 drones de ataque contra a Ucrânia. A promessa de acabar com a guerra num dia não se concretizou e, apesar de por diversas vezes, o presidente dos Estados Unidos lamentar a morte e a destruição, esta só aumentou à medida que a Rússia reforçou as capacidades para castigar todo o tipo de alvos de norte a sul e de leste a oeste da Ucrânia. Em junho e julho sucedem-se ataques diários com mais de 300 drones e mísseis — o maior dos quais quase nos 750. Após uns dias de relativa acalmia em agosto, que antecederam a cimeira de Trump com Vladimir Putin no Alasca, Moscovo redobrou esforços e desde então em mais de 20 dias o território ucraniano foi alvo de mais de 400 drones e mísseis — o triplo do registado em 20 de janeiro — tendo atingido o recorde em 7 de setembro com mais de 800 drones e uma dúzia de mísseis. Também a Ucrânia aprofundou a aposta em ataques com aeronaves não tripuladas a alvos em território ocupado ou na Rússia, em especial nas refinarias de petróleo. Calcula-se que tenha provocado uma quebra de 20% da produção, com o objetivo de baixar os rendimentos russos da sua principal fonte de receitas e de sabotar o abastecimento de combustível às forças inimigas. Em novembro, os ataques estenderam-se aos petroleiros da frota fantasma russa, tendo chegado ao Mediterrâneo.Um “Algarve” invadidoNa linha da frente, as avaliações dependem do analista, mas a realidade é que as forças ucranianas deixaram de controlar territórios na Federação Russa — nas regiões de Kursk e Belgorod —, depois da contraofensiva russa e norte-coreana. Segundo o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, sediado em Washington), a Rússia ocupou 4984 quilómetros quadrados de território ucraniano — o equivalente ao Algarve — desde o início do ano até meados de dezembro, quando o chefe do Estado-Maior russo, Valery Gerasimov alegava a conquista de 6300 km2. “Começámos o ano com os russos a avançar lentamente a partir do leste da Ucrânia e vamos terminar o ano com os russos a avançar muito lentamente a partir do leste da Ucrânia”, comentou à Newsweek o perito em história militar David Silbey, da Universidade Cornell. Mas o exército russo impreparado e descoordenado que tinha como missão decapitar o poder em Kiev em três dias não é o mesmo de hoje. Apesar das sanções internacionais, a indústria militar russa produz drones baseados na tecnologia iraniana e com recurso a peças oriundas da China. Além disso, a captura de Mariupol em 2022 permitiu pôr ao serviço da máquina de guerra as duas metalurgias. As táticas militares evoluíram. No assalto a Bakhmut, por exemplo, conquistada em 2023, ondas e ondas de soldados foram forçados a avançar sob pena de serem abatidos pelas costas pelo fogo russo. Hoje as atenções estão concentradas em Pokrovsk, outra localidade em Donetsk e uma das últimas a garantir aos ucranianos que as forças russas não avancem para a região de Dnipropetrovsk, no centro do país, muito mais difícil de defender, nem para norte em direção às duas maiores cidades ainda controladas pela Ucrânia em Donetsk, Kramatorsk e Sloviansk. Moscovo chegou a dizer que as suas forças — graças ao uso combinado de drones e de pequenas unidades de assalto, que tanto usam veículos ligeiros como motorizadas e motos-quatro — controlavam a destruída localidade onde moravam 60 mil pessoas, mas as forças ucranianas terão recuperado posições. “Isto é diferente de Bakhmut, que foi muito mais um ataque frontal direto e desgastante em terreno urbano de forma deliberada. [Em Pokrovsk] o objetivo operacional tem sido cercar as tropas ucranianas, em vez de necessariamente limpar a cidade quarteirão a quarteirão”, disse à CNN Mason Clark, diretor do projeto Defesa da Europa do ISW. Para lá da projeção das forças no terreno, as condições políticas e económicas dos dois países também contam para a eventualidade de os esforços diplomáticos vingarem. A Kiev foi atirada uma boia de salvação no mais recente Conselho Europeu. Apesar de a ideia mais ambiciosa — canalizar o valor equivalente aos ativos russos congelados na UE — ter redundado num fracasso, o governo ucraniano vai ter um empréstimo de 90 mil milhões de euros para os próximos dois anos. Já do lado russo, os sinais de alarme sucedem-se, com a ex-conselheira do Banco Central Alexandra Prokopenko a comparar a economia russa a um carro parado com o motor em sobreaquecimento, mas muito depende da política de sanções dos EUA. .“O comissário europeu [Kubilius] disse que 450 milhões de europeus não podem depender de 320 milhões de americanos para se defenderem de 180 milhões de russos que não conseguem derrotar 40 milhões de ucranianos. Soa bem. Mas ainda não vimos grande coisa.”Bernardo Ivo Cruz.A demissão, há um mês, do segundo homem mais poderoso da Ucrânia — o chefe do gabinete presidencial Andriy Yermak e chefe das negociações com os EUA — após buscas realizadas em sua casa pela agência anticorrupção, foi um golpe em Zelensky. Putin aproveitou o espetáculo anual da conferência de imprensa — onde afirmou não se sentir responsável pela morte das pessoas porque, alegou, não iniciou a guerra — para reiterar a alegada ilegitimidade do presidente ucraniano, exigindo não só eleições como a participação dos ucranianos que vivem na Rússia (o que inclui os territórios ocupados), que o autocrata estimou serem de cinco a dez milhões. .As eleições são o ponto 18 da proposta de paz revista pela Ucrânia, mas a ideia de se realizarem no prazo de 60 ou 90 dias foi alterada para uma fórmula mais aceitável (“assim que for possível”). Zelensky deixou a hipótese no ar de se realizar um referendo ao acordo e eleições na mesma data.Multilateralismo em riscoPerante este panorama, Bernardo Ivo Cruz, ex-secretário de Estado da Internacionalização, vê ameaçadas as fundações da diplomacia e do multilateralismo. “Desde que o presidente Trump chegou ao poder, toda essa construção, da qual as Nações Unidas foram o principal obreiro, tem vindo a ser posta em causa. Se chegarmos ao fim do conflito, que surge porque um membro do Conselho de Segurança, enquanto presidente do Conselho de Segurança, resolveu, ao arrepio da Carta das Nações Unidas, invadir um vizinho que não tinha feito nada, e sair vencedor, isto envia um sinal ao mundo que o direito internacional, as negociações e os tratados valem muito pouco”, diz, alertando para uma caixa de Pandora. “O que vai impedir outros países de resolverem as questões que possam ter com os vizinhos através da força?”..Acordo "nas etapas finais": Trump e Zelensky anunciam avanços cruciais em Mar-a-Lago