Num mundo de tensões crescentes, há cada vez mais desafios para as democracias e um fortalecimento dos regimes totalitários?No seu relatório anual, o instituto de investigação sueco V-Dem (Variedades de Democracias) afirma que hoje só cerca de 30% da população mundial vive num regime democrático. Isto significa que a grande maioria não vive. Nos grandes países democráticos também existem tensões em torno da democracia, que sofre ameaças internas. Vemos isso nos EUA, onde questionamos a democracia quando um presidente como Trump anuncia restrições aos media e garante a remoção de um apresentador de um programa de late-night. Por outro lado, assistimos ao surgimento de novas potências. Passámos de um mundo bipolar, que terminou com o fim da Guerra Fria, para um mundo unipolar, com uma hiperpotência americana, até por volta da década de 2010, mas sobretudo na década de 90. Mas foi talvez em 2008, com os Jogos Olímpicos de Pequim, que a China começou a afirmar-se como um pólo, rivalizando com os EUA. Depois, temos potências emergentes ou reemergentes, como a Rússia, o Brasil, a África do Sul, ou a Índia, que querem desempenhar um papel maior no panorama internacional e se organizaram nos BRICS. Vemos também a China e a Rússia, inicialmente por razões de segurança, a lançarem a Organização de Cooperação de Xangai, da qual novos Estados se tornaram membros. Estou a pensar na Índia, que, embora rival da China, aderiu. O Paquistão, rival da Índia, está a juntar-se. O Irão, que é algo marginalizado, pelo menos no lado ocidental, também. Vemos uma espécie de aliança de países à volta de uma postura anti-ocidental, ou pelo menos anti-americana. E que estão a tentar, através de demonstrações de força, provar que um outro mundo é possível e atrair o Sul Global. Hoje vivemos nesta oposição, com de um lado as democracias que continuam a defender os seus valores e a propor um modelo universalista, e do outro as autocracias, que propõem um modelo de respeito pela integridade territorial. Modelo que a Rússia não respeita, porque invadiu a Ucrânia. Já a China propõe a ideia de que a economia é suficiente, pois a felicidade do povo virá, mesmo que não tenha liberdade de imprensa, nem liberdade de expressão, nem outras liberdades fundamentais.Desde o fim da II Guerra Mundial, habituámo-nos a contar com os EUA para moldar o mundo tal como o conhecíamos. Ainda podemos contar com os Estados Unidos para defender a ordem mundial que conhecemos?É uma excelente questão, e devo dizer que não. Vemos claramente que Trump, e ele sempre disse isso, é um isolacionista, e até um pacifista. A guerra não lhe interessa, quer é fazer acordos, negócios acima de tudo. Ele acha que o sistema internacional funciona como os negócios, com acordos, mas isso não funciona. Então apresenta processos de paz que já estavam em curso antes da sua chegada, como vitórias do seu mandato. Mas nas duas principais guerras hoje, Gaza e a Ucrânia, não há uma solução. Trump pôs em causa a NATO, pediu que os europeus participassem mais no orçamento da NATO, todos os membros aumentaram os gastos em defesa, mas hoje temos a impressão que Trump não é realmente o capitão da Aliança. Poderíamos até falar de um tipo de trumpismo, uma espécie de ideologia branda, muito mutável, que é evolutiva, como vimos com a Ucrânia, em que mudou completamente de posição, porém sem agir. Não impôs sanções à Rússia. Já passaram semanas desde a reunião com Putin e ele não fez nada.A China tenta cada vez mais afirmar-se como uma superpotência. Vimos o mega desfile militar em setembro em Pequim. Xi Jinping encontrou um equilíbrio entre a abertura económica e o controlo da sociedade chinesa? Sim, é um pouco o que Deng Xiaoping já tinha começado. Podem enriquecer, mas não vamos questionar o sistema comunista. Vimos isso com Tiananmen, que foi o não à liberalização política e o sim à libertação económica. Xi Jinping fez uma recuperação real do controlo sobre a população chinesa, não apenas através das redes sociais, com a grande muralha da Internet, fechando completamente a rede ao exterior, como através do controlo sobre as populações minoritárias, como os uigures no Xinjiang, que são completamente limitados nas suas diferenças culturais e colocados em centros de reeducação. É o controlo total. Vimos como isso pode levar a tensões, como durante a Covid, mesmo não tendo sido muito divulgado no Ocidente, porque a China fez de tudo para não deixar que fosse sentido. Até agora, Pequim controlou a sociedade, com a ideia de que tem sorte, porque pode enriquecer, pode ter um apartamento, podem ter vários filhos, podem viajar, podem estudar no estrangeiro.Durante a Guerra Fria, era EUA de um lado, com a sua ideologia capitalista, a defesa da democracia, da liberdade individual, e do outro a URSS, com uma ideologia comunista. Neste momento, a China é a grande rival dos EUA, mas falta-lhe uma ideologia capaz de competir com a americana? A única ideologia que a China tem é o comunismo. Mas o modelo comunista chinês não atrai, o que atrai é o capital que traz. Portanto, estes regimes totalitários, estas autocracias, como a Rússia de Putin, têm de usar o anti-ocidentalismo para agregar. É a oposição ao Ocidente como ideologia. Putin é frequentemente comparado ao Czar. A guerra na Ucrânia veio provar que partilha pelo menos dos seus desejos expansionistas?A guerra na Ucrânia deveria ser ganha em poucos dias, no máximo algumas semanas. Já passaram mais de três anos de guerra e os russos mal conquistaram 20% do território ucraniano e já controlavam a Crimeia desde 2014. Estão atolados. E os ucranianos têm feito algumas contra-ofensivas, tecnologicamente impressionantes, com drones. Atingiram a infraestrutura estratégica russa. Se a Rússia fosse uma grande potência militar, deveria ter alcançado os seus objetivos em semanas, talvez alguns meses. Não é o caso. Podemos ver que a Rússia está fraca. O que a Rússia fez ao mesmo tempo foi reorientar completamente a sua economia para o sector militar e industrial, por isso o crescimento ainda está lá. Além disso, também beneficiou dos preços dos hidrocarbonetos que se mantiveram estáveis ou até aumentaram. O gás deixou de ser tão vendido para a Europa, mas é vendido para outros países, como Índia, China e outros países asiáticos. Mas no dia em que a guerra terminar, o que acontece? Para mim, estamos num impasse. Temos uma potência militar que permanece bastante fraca, por outro lado, a Rússia está a começar a conduzir o que chamamos guerras híbridas, onde não é apenas militar, mas também tudo o que está relacionado com o ciberespaço, através da desinformação, através da interferência nos processos eleitorais, através da interferência nos céus, como os drones que entraram no espaço aéreo da Dinamarca. É o que chamamos de política de incómodo, com hackers a organizar operações de desestabilização. França foi alvo destas operações nos últimos cinco, seis anos. Começou com o canal de televisão TV5. Os hackers assumiram o controlo, transmitiram mensagens do Daesh. Desde então, tem havido ataques contra a administração pública, contra hospitais. E a Rússia pode estar em vantagem, uma vez que tentará desestabilizar os Estados europeus sem uma ofensiva militar.Passando para o Médio Oriente, a guerra em Gaza renovou o apoio internacional a um Estado palestiniano. Isso vai contribuir para uma solução de paz ou é mais simbólico?Simbolicamente é muito forte. Porque há uma expectativa dos palestinianos. E este reconhecimento permite distinguir os palestinianos do Hamas. Trata-se de dar perspetiva e dizer que os Estados-membros da ONU, a vasta maioria, já que nem todos concordam, incluindo os EUA e Israel, reconhecem que há um conflito desde 1948, um conflito territorial, e a solução só pode ser de dois Estados. É uma perspetiva, enquanto que a guerra que Netanyahu trava há dois anos não tem perspetiva nenhuma. É retaliação, vingança. Obviamente, foi catastrófico, não ponho em causa o que aconteceu no dia 7 de outubro. Mas a reação israelita durou um pouco demais. Tem de haver uma solução que não seja uma estratégia militar para aniquilar tudo e expulsar as populações. E o que é muito preocupante é que este projeto é apoiado pelo único Estado capaz de contribuir para a paz na região: os EUA. Israel sabe fazer a guerra, é uma potência militar à escala do Médio Oriente, mas nunca conseguiu alcançar a paz. Quando houve processos de paz, foi graças à mediação americana. De Camp David, a Oslo, até aos Acordos de Abraão. É bom os EUA quererem fazer a paz entre Israel e os árabes, mas deve haver uma perspectiva política para os palestinianos. Por isso, agora ressurgiu a ideia de reconhecer o Estado palestiniano, que não é nada de novo. E a crítica feita pelo governo israelita de que é uma dádiva para o Hamas, é porque não querem fazer a paz..“A imprevisibilidade advém mais de Donald Trump do que de Putin e Xi”.Voltemos à Europa, onde assistimos à ascensão dos extremismos. É a prova de que os partidos tradicionais não souberam dar resposta às preocupações das pessoas?Este populismo tem várias dimensões. Assiste-se ao surgimento de partidos extremistas à direita, mas também à esquerda. Em França, temos os dois. O que isto mostra, é uma espécie de cansaço. Nos últimos 15 a 20 anos, falámos muito de uma economia globalizada que aumentaria a riqueza dos Estados europeus. Mas o que as pessoas percebem é que perdemos muita da nossa indústria, muitas pessoas perderam os empregos. Depois há o problema da imigração. Em alguns países, podemos ter aberto demasiado as fronteiras, ou demasiado rapidamente. E houve uma perceção entre muitas pessoas de que estávamos a favorecer as populações estrangeiras em vez das locais. Em França, o voto extremista está muito presente nas antigas zonas industriais e nas zonas rurais e muito menos nas cidades, apesar de ser aí que encontramos a maioria dos imigrantes. Isso mostra que há a perceção de que o Estado favorece certas populações e abandona outras. E esse é um dos argumentos dos partidos extremistas. Houve também a chegada de refugiados sírios, de um fluxo de populações muçulmanas, de pessoas a quem foi negado o direito à educação, como as mulheres afegãs, que chegam ancoradas na tradição muçulmana e portanto de véu. Os países da UE deviam obrigar estas populações a aprender a língua, as instituições, os códigos do país anfitrião para poder integrar-se. Olho para as estatísticas e uma grande maioria integrou-se, abriram restaurantes, pequenos negócios, alguns era advogados, médicos, que muitas vezes retomaram as suas atividades. Mas não é desses que vão falar os demagogos dos partidos extremista. Estes factores criam uma tensão numa população que já vive em condições difíceis, de pobreza, de desemprego, sentindo-se abandonada. E o discurso populista é que “estamos a pensar em vós, vamos encontrar soluções”. Veremos se funciona e por quanto tempo. O caso de Itália é interessante porque a senhora Meloni parece ter encontrado uma certa estabilidade no poder.Meloni moderou um pouco o discurso…Lá está, moderou o discurso e não sei qual será o resultado a longo prazo. Portanto, tudo isto levanta questões e mostra que a Europa tem problemas. E acrescentaria um último problema que é a quebra na taxa de natalidade. Em toda a Europa, a taxa de natalidade é muito baixa, pelo que não há renovação populacional. A questão é o que o futuro reserva para os próximos 20 a 30 anos se não houver fluxo de migrantes. Talvez devêssemos pensar na melhor forma de integrar estas pessoas para que se tornem bons europeus. Depois, temos de olhar para a escala global. Os europeus representam hoje 15% dos 8 mil milhões de habitantes do mundo, o que não é muito. Em 1945, éramos quase 40%, por isso houve uma verdadeira mudança. Hoje, a maior parte da população mundial vive na Ásia; 50% da população mundial é asiática.Que lugar tem então esta Europa neste contexto global?Penso que, e vimos isso com a Covid e com a guerra na Ucrânia, a Europa está a fornecer soluções. Em primeiro lugar, a solidariedade. No refinanciamento das economias pós-covid, na ajuda prestada à Ucrânia. Se quisermos continuar visíveis internacional- -mente, somos mais fortes a 27 do que sozinhos. Somos mais fortes com 450 milhões do que com 67 milhões de franceses ou 10 milhões de portugueses. Tenho a impressão que a Europa é mais forte, ou pelo menos mais credível, quando há um problema. Em momentos de crise, surge como uma solução possível. No seu Atlas das Religiões, salienta que o mundo em 2015 era mais religioso do que era em 1970. Não é portanto de estranhar que as religiões estejam hoje no centro de certos conflitos. Estou a pensar na Birmânia, no Médio Oriente, claro, na República Centro-Africana?Se o mundo era mais religioso ontem do que hoje, isso também está ligado à globalização. As pessoas estão à procura da sua identidade, para além da identidade nacional. Depois, penso que, na maioria dos conflitos, a religião é só mais um aspeto, mas por vezes serve de álibi para o conflito. Mas mesmo entre israelitas e palestinianos, qual é o conflito fundamental? É o território que não conseguem partilhar. Mesmo havendo menos cristãos na Palestina hoje do que em 1948, quando Israel foi criado, não se trata de islamismo versus judaísmo, uma vez que também lá há cristãos. Não é isso, é o território. Mas hoje, e particularmente porque há uma radicalização de certos grupos religiosos, que vão fundar partidos como o Hamas, temos a impressão de que se trata de um conflito religioso..“Existem três impérios em expansão hoje no mundo: a China, a Rússia e os EUA”