Depois de uma primeira passagem por Portugal para um acampamento de escuteiros em 1978, quatro anos mais tarde Anne Lammila voltava ao nosso país, dessa vez para um estágio na Rodoviária Nacional. A jovem estudante de Economia na Universidade Turku, a cidade onde nasceu em 1957, chegava então a uma Lisboa onde ganhou o gosto por uma boa bica, mas sem os muitos turistas que hoje enchem as suas ruas. Essa foi uma das grandes diferenças que encontrou quando em julho passado voltou a Lisboa, pela primeira vez nas suas funções de diplomata. A embaixadora Lammila veio, como a própria explicou, na sua despedida no Facebook da embaixada, “com a missão de restaurar a confiança na liderança, acalmar e normalizar a situação vivida na Embaixada, após uma crise que atingiu o seu pessoal”. E passados menos de seis meses, regressa agora à Finlândia com a certeza da missão cumprida e o coração pesado por ver chegar ao fim este seu “outono português”. Mas feliz por uma merecida reforma, após mais de quatro décadas na carreira diplomática. Sentada no seu gabinete na embaixada da Finlândia, edifício de azulejos florais na rua do Possolo, a embaixadora Lammila, que esteve em Portugal como Encarregada de Negócios, recorda, num excelente português, com algumas pinceladas de sotaque brasileiro, estes seis meses e a marca que deixou na embaixada, apesar da curta passagem. A quinta de uma sucessão de embaixadoras finlandesas em Portugal - o sucessor será um homem, Christian Lindholm -, a diplomata quis aproximar a embaixada das pessoas. E nada melhor para isso do que as redes sociais. Por isso teve a ideia de fazer uns pequenos vídeos para divulgar o melhor de Portugal. “Vim para cá em julho e vi que a embaixada só estava no Facebook que é um pouco... assim para velhos [risos]. Estava no LinkdIn, mas é mais profissional, mais focado na promoção do comércio. Então comentei aqui ‘Como é que podemos falar aos jovens?’ Eles estão no Instagram. E no TikTok, mas isso não faço! No Instagram estou pessoalmente e assim a embaixada entrou também no Instagram”, explica.Anne Lammila confessa que para os tais vídeos se inspirou nos de uma embaixadora britânica em Helsínquia que decidiu promover o melhor da Finlândia nas redes sociais. “E eu pensei: porque não aqui?”, recorda Lammila. E explica: “A minha ideia era encontrar algo que nos une. Então, não podia faltar o pastel de nata, pois não temos nada parecido, mas gostamos muito. E somos os maiores bebedores de café do mundo. Por isso, fiz um vídeo a beber uma bica e a comer um pastel de nata”. Numa viagem pelo melhor de Portugal, seguiu-se o fado. “Sabe que temos fadistas finlandeses, que são muito bons?”, interroga a embaixadora. E vai explicando que “este tipo de canto é muito querido pelos finlandeses, porque nós somos nostálgicos, sentimentais, e nós gostamos de fado, flamenco, também dos cantos eslavos.”Nesta série, não podia, claro, faltar um vídeo sobre o bacalhau. “Se perguntarmos na rua na Finlândia às pessoas o que elas conhecem de Portugal, primeiro vem logo Cristiano Ronaldo e depois o bacalhau”, garante a embaixadora Lamilla. E em Portugal, o que sabem os portugueses da Finlândia? Um dos motivos pelos quais se fala da Finlândia todos os anos é por liderar o ranking dos países mais felizes do mundo. Lamilla reconhece que há razões para o seu país liderar aquela classificação há oito anos consecutivos. “Quem vive na Finlândia sente-se seguro, sabe que se algo de mau acontecer, o Estado está lá para apoiar. Mesmo se gostamos de nos queixarmos dos serviços públicos!” Ora se essa propensão para a queixa une finlandeses e portugueses, a Finlândia tem de lidar nos últimos anos - desde a invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 - com a ameaça da vizinha Rússia, com a qual partilha 1300 quilómetros de fronteira. Uma preocupação que levou os finlandeses a rapidamente abandonarem a sua tradicional neutralidade militar para aderirem à NATO logo em 2023. “Sim, para nós é uma ameaça real, porque nós sabemos, nós ainda temos correspondentes em Moscovo, então sabemos o que está acontecendo na Rússia. É a nossa vizinha, há muito tempo que seguimos o que lá se passa, temos muitos peritos que tentam acompanhar o pensamos [do presidente Vladimir ] Putin”, explica a embaixadora, que foi cônsul-geral da Finlândia em São Petersburgo entre 2017 e 2020. “Quando estive em São Petersburgo pude constatar que, por exemplo, os livros escolares apresentam Estaline como um bom líder, quando milhões de pessoas morreram sob a sua liderança. E quando perguntei ao meu motorista russo o que achava de Estaline, ele respondeu que era um bom líder e que no seu tempo a vida era tranquila”. Para os finlandeses, aliás um ataque russo não é apenas uma ameaça teórica. “Sabemos muito bem que eles podem atacar, já aconteceu. Duas vezes durante a Segunda Guerra Mundial, mas antes disso pelo menos umas 30 vezes”, recorda a embaixadora Lammila. E já no seu discurso do Dia Nacional, a 6 de dezembro, a diplomata fizera questão de recordar a história conturbada entre os dois vizinhos, com a Finlândia, depois de ter feito parte do Reino da Suécia durante séculos a tornar-se, em 1809 um Grão-Ducado autónomo dentro do império russo, antes de garantir a sua independência em 1917. Mas independência não significou paz. Primeiro o país enfrentou uma guerra civil entre Vermelhos, defensores da união com a União Soviética, e Brancos, que defendiam a independência com o apoio da Alemanha. E, mais tarde, a Finlândia lutaria novamente pela sua liberdade contra a União Soviética na Guerra de Inverno de 1939-40 e na Guerra de Continuação, de 1941 a 1944. A própria embaixadora perdeu três tios na guerra, como lembrou no Dia Nacional, recordando que para os finlandeses estes conflitos com a vizinha Rússia não são umas páginas nos livros de História, são feridas nas suas famílias. Os amigos Blasco e Rui Jorge.Quem assistiu a esse discurso do Dia Nacional foi Blasco e Rui Jorge, os velhos amigos da embaixadora Lammila, que esta conheceu no tal acampamento de escuteiros. Mas como é que tudo começou? “Eu e a minha amiga escuteira queríamos fazer alguma coisa diferente e descobrimos o anúncio de um acampamento de escuteiros em Leiria. Então, viemos. Apanhámos o comboio. Naquele tempo o interrail era muito barato. Fomos primeiro para Paris e depois fomos descendo até Lisboa”, recorda. Foi no acampamento que conheceram Blasco e Rui Jorge, tudo porque os dois setubalenses já tinham uns amigos finlandeses. “Conhecemos Blasco e Rui Jorge porque em Setúbal, onde eles viviam, havia dois irmãos finlandeses cujo pai trabalhava para uma empresa papeleira na Finlândia e tinha sido mandado para Portugal, de quem eles eram amigos. Eles comentaram isso e assim ficámos amigos.”Claro que na altura, sem telemóveis, nem redes sociais, o contacto acabou por se perder quando Anne Lammila e a amiga regressaram à Finlândia, mas anos mais tarde Blasco encontrou a embaixadora no Facebook e voltaram a falar. “Podemos dizer muitas coisas de Facebook, mas tem esta vantagem de permitir reencontrar pessoas”, admite. Se nessa vinda a Portugal, Anne Lammila apenas conheceu Leiria e Setúbal, onde vieram com os amigos, durante o estágio na Redoviária Nacional, teve oportunidade não só se conhecer Lisboa - ainda se lembra de uma Casa do Porto, onde se podia beber toda a espécie de vinho do Porto, perto do quarto onde ficou na casa de uma casal de madeirenses, mas que entretanto fechou -, mas também Almada e Faro. E nem faltou uma ida a Fátima. “Fomos jogar vólei, com uma equipa da Rodoviária. Mas também nos mostraram o Santuário”, lembra a embaixadora. Mais de quatro décadas de carreira diplomática Entrada no Ministério dos Negócios Estrangeiros em 1983, Anne Lammila passou por vários postos em muitos países ao longo da sua carreira, do México - de onde, como embaixadora, cobria também Cuba, Haiti e Belize. “E quando fecharam a nossa embaixada em Caracas, passei também a cobrir Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Honduras, Costa Rica e Panamá” - aos EUA, passando pela Rússia, Espanha ou a África do Sul. Mas o seu primeiro posto foi no Brasil. “O primeiro posto marca sempre um diplomata”, admite Lammila, que garante, contudo, não ter sentido qualquer choque cultural. “Gostei muito. E tive de aprender português à séria porque toda a vida diplomática era em português.”Foi também no Brasil que conheceu o seu futuro marido, o jornalista finlandês Markku Saksa, que era na altura correspondente em Buenos Aires para uma revista finlandesa. “Ele veio ao Brasil porque queria fazer um artigo sobre os mineiros de ouro na Serra Pelada. E como eu conheci o diretor da Companhia Vale do Rio Doce, arranjei a permissão em um dia”, recorda. “Depois, foi tudo muito rápido”.Foi precisamente a profissão do marido que fez com que nunca se candidatasse a Portugal, dando prioridade a destinos com mais oportunidade de trabalho para ele como correspondente. Agora, já viúva, teve a oportunidade de vir terminar a carreira a Lisboa, num outono que só confirmou o seu amor por Portugal..“Depois da Ucrânia, finlandeses perceberam que já não precisavam da neutralidade. Mudou tudo numa noite”