Bruno Tertrais: “O único assunto em que a Rússia é razoável hoje em dia é o nuclear”
Inês Pinto Gonçalves/Afterclick

Bruno Tertrais: “O único assunto em que a Rússia é razoável hoje em dia é o nuclear”

Em Lisboa para uma conferência sobre segurança europeia na FLAD, Bruno Tertrais falou ao DN das ameaças à UE e NATO. Diretor da Fondation pour la Recherche Stratégique analisa o novo “Eixo do Mal”.
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Mais de dois anos depois da invasão russa da Ucrânia, que mudou a perspetiva da defesa europeia, diria que a Rússia é hoje a principal ameaça para a Europa?
É claramente a ameaça estratégica mais importante. Não é uma ameaça militar imediata para um país como Portugal, nem mesmo para França. Mas quando olhamos para o cenário de conjunto, no quadro da NATO, é pelo menos o maior desafio estratégico, senão a maior ameaça estratégica. Porquê? Porque tudo o que se passa hoje terá impacto no conjunto da União Europeia e sobre a totalidade da relação que vamos ter com esta Rússia que, parece-me, estará cada vez menos ligada à Europa. Enquanto durante três séculos tivemos uma Rússia que considerávamos metade europeia. Por isso é o principal desafio e a principal ameaça estratégica. E um dia talvez volte mesmo a ser uma ameaça militar para a Europa central, como acontecia durante a Guerra Fria.

Ouvimos Vladimir Putin fazer ameaças, inclusive nucleares. Acha que é mais uma forma de dissuasão ou devem ser levadas a sério?
Em primeiro lugar vou voltar só à questão da ameaça militar. Penso que há duas teses em confronto: uma que consiste em dizer que, do ponto de vista da ameaça militar, a Ucrânia é especial, e que nunca Putin irá atacar os países Bálticos ou a Polónia ou a Finlândia. É verdade que a Ucrânia é especial no espírito, na cultura, na história russa, e é especial para Putin. A outra tese consiste em dizer que um imperialista, por natureza, é alguém que vai pensar ‘porquê ficar por aqui’? Dito de outra forma, se vencer na Ucrânia, Putin não teria motivos para pensar em parar por aqui. 

Mas há uma diferença entre a Ucrânia, que não está na NATO, e países que estão…
Sim, e podemos pensar que os cálculos de Putin são afetados pelo facto de um país pertencer ou não à NATO. Até agora, apenas atacou militarmente países que não estão cobertos por uma garantia de segurança comum. E um último ponto: há a ameaça militar mas também há outras formas de ameaças. E eu acredito que, infelizmente, a Rússia é uma ameaça para o conjunto dos países europeus pelas suas operações de desinformação, pelos seus ciberataques, pelas suas tentativas de afetar as comunicações submarinas e a circulação de gás. Se me perguntar se a Rússia é uma ameaça para Portugal, diria que estamos hoje tão interdependentes na Europa que o que é uma ameaça para a Polónia interessa também a Portugal. Quanto ao nuclear, tenho uma posição que era minoritária em 2022, mas que hoje já não é tanto. Considero que o único assunto em que a Rússia é razoável hoje em dia é o nuclear. Nós ocidentais temos tendência para ver os discursos russos como ameaças nesta área, enquanto que se os analisarmos de forma fria e objetiva, veremos que são essencialmente proclamações de dissuasão e não tentativas de chantagem nuclear. Por outro lado, não houve qualquer gesto provocador ou fora do padrão no domínio nuclear. Isto confirma a minha tese. Mas não podemos esquecer que a Rússia, sobretudo a Rússia de Putin, é um Estado paranóico. A Rússia é paranóica, Putin é paranóico. Mas devíamos lembrar-nos do que se passava ma época da Guerra Fria quando nós, ocidentais, pensávamos que a União Soviética podia atacar-nos, mas a União Soviética pensava que a NATO ia atacá-la. Portanto, na questão nuclear julgo que temos todos de ser razoáveis. 

A guerra na Ucrânia revelou uma rara união dentro da UE. Mas dois anos depois vemos fissuras cada vez maiores, também entre França e Alemanha. Divergências no eixo franco-alemão podem ser perigosas para a segurança europeia?
Em primeiro lugar, uma palavra sobre a unidade europeia. Acho que temos de ver o copo meio cheio. Se nos tivessem dito que dois anos depois da invasão russa, a solidariedade europeia com a Ucrânia ainda existiria, que as sanções se mantinham, que a oposição da Hungria ou Eslováquia não impediria tomadas de posição comuns europeias, teríamos ficado agradavelmente surpreendidos. Quanto ao par franco-alemão, temos uma verdadeira divergência neste momento, de pessoas, de sistemas, de políticas e que levou o presidente Emmanuel Macron a decidir tomar a iniciativa um pouco sozinho, acreditando não poder contar com a Alemanha, e tentando arrastar os outros países, uma vez que ele está sinceramente convencido que as coisas são muito graves. Mas não devemos subestimar a solidez dos fundamentos do par franco-alemão. Há muitas vezes divergências de políticas, por vezes não há um entendimento extraordinário entre os líderes, mas não devemos subestimar a solidez dos alicerces. Estamos talvez menos unidos e sem dúvida menos eficazes para a Europa do que há 20 anos. A Alemanha regressou a uma forma de defesa dos seus interesses nacionais, o que é normal.

O que também foi uma surpresa para muitos foi a forma como esta guerra na Ucrânia veio dar uma nova vida à NATO. Ainda antes disso o presidente Macron dizia que a NATO estava “em morte cerebral”...
Sobre isso… quando Macron falou da “morte cerebral” da NATO estava sobretudo a falar da aliança. Porque foi num momento em que EUA e Turquia estavam a agir na Síria de uma forma que a França considerava contrária à solidariedade. Mas é verdade que Macron nunca teve um prisma transatlântico muito forte. Enfim, a NATO não estava morta e não renasceu agora. Simplesmente reconectou-se com a sua missão tradicional. E reorientou o seu objetivo e as suas missões para o que era a sua missão principal durante a Guerra Fria. É verdade que é uma aliança bastante excecional quando a comparamos com outras. O facto de ser constituída por democracias, mesmo que imperfeitas, contribui para a sua longevidade. 

As palavras do presidente Macron sobre o envio de tropas da NATO para a Ucrânia geraram alguma polémica…
Eu penso que Macron quis fazer um golpe político - no bom sentido do termo. Virar a mesa, quebrar os tabus. E foi uma mensagem ao mesmo tempo para os outros europeus, para a Ucrânia, para a Rússia e para os Estados Unidos. Aos outros europeus, quis dizer: “o momento é grave”. À Ucrânia, quis dizer que talvez não sejamos o país que envia mais material, mas queremos estar entre os líderes em termos de apoio global. À Rússia, quis dizer que não pensasse que somos fracos e desesperados ou que vamos abandonar o combate. E à América, quis dizer que os europeus estão aqui quando eles parecem hesitar, por causa do seu Congresso, em continuar a enviar assistência militar maciça. E acho que no final de contas as reações até foram bastante positivas, sobretudo da parte dos nossos aliados polacos e bálticos. E nunca foi questão de enviar forças de combate. Mas acho que ele assumiu um risco porque não é uma ideia muito popular. As opiniões públicas vão ver isto como ‘vão ser os meus filhos a  ir combater para a Ucrânia’. Depois estava a discutir com peritos europeus que se questionavam se ele teria feito aquilo por questões de política interna. Mas eu digo que não. Pelo contrário, pode ter custos elevados para ele a nível interno.

Um dos momentos de viragem pode acontecer já em novembro com a possível eleição de Donald Trump. Se ele vencer é de esperar uma saída dos EUA da NATO?
O problema com Trump é que nunca sabemos o que esperar e temos de estar preparados para tudo. Mas, tendo em conta a personagem e perante o que se passou no seu primeiro mandato, os europeus seriam completamente irresponsáveis se não refletissem sobre um cenário Trump. Durante meses foi algo que muitos europeus não quiseram abordar. Mas depois aconteceram duas coisas no início do ano: primeiro a sua candidatura tornou-se praticamente uma certeza, e depois algumas das suas declarações, como as de 11 de fevereiro [quando Trump admitiu encorajar a Rússia a invadir os países devedores à NATO] provocaram ondas de choque, Por isso temos de ter em conta a hipótese de uma quebra do contrato de segurança transatlântico. Quer seja uma retirada formal da NATO, que pode não ser possível juridicamente, quer se trate da redução da presença militar americana ou simplesmente declarações que enfraqueçam a NATO aos olhos da Rússia. Portanto, há vários cenários, mas são todos muito preocupantes. E não é tarde demais para pensarmos no que vamos fazer.

Uma hipótese seria apostar numa defesa europeia, como o presidente Macron tem defendido…
Deixe-me só interrompê-la. Há uma expressão de que não gosto mas que se impôs no debate em França e que é “a Europa da Defesa”. E a Europa da Defesa não é a defesa da Europa. Do que se trata aqui é de fazer algo que nenhum presidente, nem mesmo Macron, propôs até agora, ou seja, que a Europa se defenda sozinha. Porquê? Porque há um consenso entre nós, mesmo em França, mesmo em Portugal, em todo o lado, sobre o facto de a defesa europeia ser assegurada pela NATO. Logo, não se trata de implementar um projeto francês. Seja como for, tudo depende da forma como as coisas se passarem com os EUA. Se a América sair, será que podemos resgatar a NATO? Estou pessimista a curto prazo, porque vai ser um choque terrível para todos os países europeus. E os choques provocam vulnerabilidades e divergências. A médio prazo, penso que a Europa tem perfeita capacidade para, com um custo razoável, ter meios de dissuasão e defesa contra a Rússia. Para além disso, se dentro de dez anos a Rússia tiver voltado a ser uma grande ameaça militar, outros presidentes, depois de Trump, poderão fazer escolhas diferentes. 

Quando falamos de uma defesa europeia, do que falamos exatamente? De um exército europeu? Complementar ou concorrente com a NATO?
Enquanto a NATO existir os europeus não vão criar uma nova instituição. Quanto a um exército europeu, é uma péssima expressão uma vez que quem a usa, geralmente responsáveis políticos, usa-a de forma desapropriada uma vez que não pode haver um exército europeu no sentido estrito do termo porque somos todos Estados independentes. Será sempre o presidente francês, ou o presidente português, quem pode decidir enviar tropas para combater. Portanto, quando falamos destes assuntos, importa  distinguir Europa da Defesa, exército europeu e defesa da Europa. Esta última continua a ser assegurada pela NATO, mas um dia, se os EUA assim o decidirem, pode ser garantida de forma diferente. Mas há um último fator de que não falámos, é que para além de Trump há o interesse americano pela Ásia, que é cada vez maior.

Já voltamos à Ásia, mas ainda sobre a Europa, além da guerra na Ucrânia, temos agora a guerra entre Israel e o Hamas que é ainda mais divisiva entre os europeus?
Sim, não há verdadeiramente uma posição europeia sobre esse conflito. Não só devido às divergências entre países, mas também dentro de cada país. 

Entre esquerda e direita?
Até mais do que isso. E é uma grande diferença em relação à Ucrânia. Esta guerra [no Médio Oriente] é importante política e culturalmente para os europeus, mas é muito menos central militar e economicamente do que a guerra na Ucrânia. Mas é verdade que veio acrescentar a um cenário de uma Europa que hoje tem quatro zonas de crise que lhe interessam diretamente. A Ucrânia, claro. O Cáucaso, não o podemos esquecer, porque é muito próximo da Europa central. Obviamente o Médio Oriente. E o Sahel, que também não está muito estável e que nos interessa. Mais do que a expressão “regresso da guerra”, de que não gosto, é mais uma situação que não é nova para a Europa, porque está rodeada de zonas de crise.

Outra expressão que também regressou nos últimos tempos foi “Eixo do Mal”, já não o de George W. Bush mas agora Rússia, China, Irão e Coreia do Norte…
O que é interessante para mim aqui é que há uma realidade de cooperação entre estes países. A expressão de Bush era para referir todos os “bad guys”. Mas aqui temos uma proximidade geográfica e uma conivência de interesses muito fortes. Portanto eu não sei se podemos falar num novo “Eixo do Mal”, mas há pelo menos um pacto dos autoritários contra o Ocidente.

E que posição é que a Europa deve tomar perante esse pacto, face também às pressões dos EUA?
Eu penso que o problema da Europa é que enfrenta as pressões de adversários e de aliados e o seu grande desafio é encontrar a sua própria voz sem ser engolida pelos grandes. Em relação a estes países, a Europa tem de perceber que eles nos veem como fracos e que por isso temos de ter uma política de firmeza em relação a eles. Uma das dificuldades dos europeus é resistir à China sem entrar numa relação de animosidade ou numa campanha contra Pequim que pode não nos favorecer, uma vez que não temos os mesmos interesses dos americanos. Mas os americanos pressionam, e é uma pressão que vai para além de Biden, que é muito consensual, logo é um caminho difícil de encontrar. E acho que até agora as instituições europeias têm jogado bem o jogo. Estamos inundados de painéis solares e de baterias de automóveis chineses porque são baratos. Portanto, fazer a transição energética e a transição geopolítica não é fácil para a Europa. 

Vemos cada vez mais divisões entre o Ocidente e o Sul Global. Que papel pode um país como Portugal ter para ultrapassar essas divisões?
A história e o conhecimento que Portugal tem de um certo número de países de África e da América Latina, que reivindicam fazer parte do Sul Global, pode ser interessante nos debates europeus. Mas é preciso desconstruir o Sul Global porque não é uma instituição, não é um conjunto coerente. Portanto o conhecimento e as relações que Portugal tem, por exemplo, com o Brasil, são uma mais-valia extremamente importante. No conjunto europeu todos temos a nossa história, as nossas ligações culturais e comerciais, perceções que são interessantes de partilhar para percebermos a complexidade deste conjunto que não se pode resumir na expressão Sul Global. Ainda voltando a Portugal, a vossa posição geográfica mantém-vos afastados do desfecho ucraniano, mas como disse este interessa a toda a Europa. Mas não é bom a Europa ter um único foco estratégico. Neste momento o foco está todo na Ucrânia. A vossa posição, a vossa história e a vossa geografia lembra-nos que a Europa também tem interesses atlânticos, interesses em África. E é importante recordar isso à mesa do Conselho Europeu ou do Conselho Atlântico.

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