"Biden vai trazer luz. E os americanos não quererão voltar à escuridão com Trump"

Professora catedrática jubilada de Estudos Ingleses e Americanos da Universidade Católica Portuguesa e presidente da Fulbrighters Portugal, Laura Pires fala dos desafios do novo presidente, da primeira vice-presidente mestiça e asiática e da imagem da América no mundo.

Ao tomar posse no dia 20, Joe Biden vai tornar-se presidente de uns EUA muito divididos. O que podemos esperar da nova administração norte-americana perante o desafio de unir a América?
O desafio não deve ser unir a América no sentido de todos pensarem da mesma maneira, mas sim - tal como disse Joe Biden em 6 de janeiro - impulsionar a reposição da integridade. O presidente eleito afirmou também que, para preservar a democracia, são necessários políticos corajosos, que não se dediquem à procura do poder e à satisfação do seu interesse pessoal. Afirmou que o ataque ao Capitólio foi uma investida contra um dos mais sagrados empreendimentos americanos, que é a resolução dos problemas dos cidadãos, e encorajou a restituição da decência, declarando que, para manter a democracia, é necessário que os governantes tenham boa vontade e coragem e se dediquem ao "bem comum". Ao contrário do que alguns pensavam, ao resistir à violência e ao caos, a democracia americana provou a sua força e as suas raízes locais, fazendo criar expectativas de que a presidência de Biden venha a florescer com a sua característica inovadora de haver diversidade no governo assim como "lei e ordem". A administração de Biden, com nomeações de mulheres, negros e homossexuais, reflete a demografia da sociedade e começa a parecer-se com a América tal como ela é na realidade.

Os últimos dias de administração Trump fizeram muito para piorar a imagem que o mundo tem da democracia americana. O novo presidente vai conseguir devolver a simpatia pela América que havia com Obama, por exemplo?
Creio que sim porque a forma como decorreu a eleição de 2020 é uma demonstração da resiliência e da força da cultura democrática americana pois, apesar da pandemia e das previsões de condições caóticas para votar, houve um número recorde de votantes e os milhares de funcionários (republicanos, democratas e independentes) consideraram o exercício das suas funções como um dever cívico. Embora, internacionalmente, a atração do "sonho americano" possa ter diminuído, há esperança de haver respeito pela lei e pela organização na América de Biden, tanto mais que ele, ao contrário de Trump, tem longa experiência de política internacional por ter estado durante décadas no Senado e ter sido vice-presidente durante oito anos. Por outro lado, desde que foi eleito, as suas declarações e nomeações têm tido um efeito muito tranquilizador nos aliados.

Uma responsável da administração norte-americana dizia-me recentemente que o soft power americano - os filmes, a música, o desporto - é mais forte do que qualquer líder político, seja de que partido for. Concorda?
Não concordo. Claro que têm influência, mas é a cultura, a história e a crença num país melhor e no progresso racial que levam os americanos a acreditar em Joe Biden, quando ele diz na TV que "a desordem e o caos têm de acabar", ou o The New York Times a publicar um artigo sobre Kamala Harris (uma mulher), dizendo que tem capacidade para ser presidente. Foi o facto de haver um aumento de votantes jovens, negros e hispânicos que fez Ossoff (judeu e filho de um imigrante) e Warnock, que será o primeiro senador afro-americano no Senado, ganharem as eleições contra os republicanos, sendo os primeiros democratas eleitos pela Geórgia em 20 anos.

Os EUA têm pela primeira vez uma mulher vice-presidente. A eleição de Kamala Harris é sinal de esperança para as meninas americanas, como a própria disse?
Kamala Harris é a vice-presidente eleita na 59.ª eleição presidencial, que ocorre de quatro em quatro anos. Vai ser a primeira mulher nomeada para a mais alta posição política na história dos Estados Unidos. É também a primeira vice-presidente americana que é mestiça e asiática, pois a mãe é indiana e o pai da Jamaica. Foi senadora da Califórnia desde 2007, sendo a segunda mulher afro-americana e a primeira asiática a exercer essas funções. Evidenciou-se por defender uma reforma no âmbito da saúde, a remoção da canábis da lei de substâncias controladas, considerando a prisão perpétua, sem liberdade condicional, um castigo melhor e menos dispendioso do que a pena de morte. Em agosto de 2020, foi escolhida por Joe Biden como principal membro do seu governo e, em novembro, derrotaram Trump e Mike Pence. Antes do início da impugnação de Trump, Harris fez comentários no Senado sobre a integridade do sistema judicial americano e mencionou o princípio de que ninguém, nem mesmo o presidente titular, está acima da lei. Neste âmbito do progresso social das mulheres, são de mencionar também os nomes da democrata Nancy Pelosi que é reeleita presidente da Câmara dos Representantes dos EUA e de Jill Biden, que vai ser a first lady dos Estados Unidos em 20 de janeiro de 2021. A esposa de Biden, que decidiu continuar a ser professora e que, tal como relata no livro que escreveu sobre o marido intitulado Joey: The Story of Joe Biden (2020), o acompanhou quando morreu o filho com cancro, a quem Biden tinha prometido que iria lutar para terem um país melhor, como se pode ler no relato que ele próprio faz na sua obra intitulada Promise me, Dad: A Year of Hope, Hardship, and Purpose (2017).

Com Biden a já ter dito que não se candidatará a um segundo mandato, em 2024 Kamala Harris deverá ter a oportunidade de se tornar a primeira mulher presidente dos EUA. Depois da derrota de Hillary Clinton, os americanos estão preparados para pôr uma mulher na Casa Branca?
Creio que houve progresso desde a derrota de Hillary Clinton, pois - embora Biden ainda esteja a organizar o seu governo - basta pensarmos no número de mulheres, algumas negras e latinas, que - além da vice-presidente - vão integrar o novo governo, sobretudo na área da comunicação social ou ao consideramos que, na equipa da economia, que é constituída por seis membros, há apenas um homem branco. Entre os nomes já conhecidos, destacam-se Janet Yellen (secretária do Tesouro), Avril Haines (diretora de National Intelligence), Linda Thomas-Greenfield (embaixadora nas Nações Unidas), Cecilia Rouse ( presidente do Council of Economic Advisers) e Neera Tanden (diretora do Gabinete de Gestão e Orçamento). Verifica-se, por isso, que vai haver grande diferença pois todos sabemos que enquanto os congressistas masculinos consideram o desenvolvimento de uma lei como uma competição, os membros femininos tendem a congregar as suas ideias e a conseguir assim terem uma abordagem conjunta que incorpora o melhor das propostas apresentadas. Uma das provas de que os EUA continuam a ser campeões na defesa da democracia é justamente o facto de Kamala Harris ter sido eleita, apesar de ser de cor. No seu discurso de aceitação, fez crítica às políticas republicanas de Trump, afirmando: "O constante caos deixou-nos à deriva. A incompetência fez que sentíssemos medo. A insensibilidade faz que nos sintamos sozinhos. São muitas coisas problemáticas, e esse é o ponto em que nós podemos fazer melhor e iremos fazer muito mais".

Apesar da derrota, Donald Trump conseguiu 74 milhões de votos. Um capital político que não pode ser ignorado. Ainda pode ter futuro político na América?
Estou certa de que não. Pois para se candidatar de novo, Trump teria de competir com Joe Biden, que já foi considerado como a figura internacional do ano, apesar de ser o mais velho cidadão a "tomar conta" dos Estados Unidos. Não será, decerto, esquecido que Biden ganhou uma das mais polémicas eleições presidenciais da história norte-americana. O democrata bateu o republicano Trump e toma posse em 20 de janeiro, aos 78 anos, sendo o 46.º presidente dos Estados Unidos. Antes de ser eleito presidente, Joe Biden fez parte da história da política norte-americana durante meio século, como senador e vice-presidente, completou, por isso, uma longa escalada até ao topo da montanha institucional dos EUA, que incluiu duas tentativas de chegar à luta pela presidência, acabando por derrotar o polémico chefe de Estado republicano. Demonstrou, portanto, como depois de uma época de inquietude, violência e ódio - que foi o governo de Donald Trump - ele irá trazer uma luz que acaba com a escuridão. E os americanos não quererão, decerto, voltar à escuridão...

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