No discurso de posse, Donald Trump fez duras críticas ao legado de Joe Biden, sem preferir o nome do antecessor. Foi uma espécie de ajuste de contas?Eu não diria um ajuste de contas, diria que Trump foi igual a si próprio e que, nessa medida, o discurso de tomada de posse é um discurso atípico para aquilo que é a norma destes discursos. O que ele fez pareceu mais um comício do que uma ocasião solene de tomada de posse. À semelhança do que foi fazendo durante a campanha, ele atacou o que identifica como as causas do problema - desde logo a Administração Biden, os wokistas, etc., e depois apresenta algumas soluções. Nessa perspetiva não é um ajuste de contas, é Trump a ser igual a si próprio e a dar continuidade àquilo que iniciou há oito anos. Houve o parêntesis Biden, que ele desmonta. E é por isso que neste discurso ele faz o anúncio de uma série de medidas que vai tomar desde logo através de ações executivas e diretivas presidenciais. E vai certamente bater o recorde, que era de Biden. Porque Biden também tentou desconstruir muito do que fez Trump. Mas é interessante como houve aspetos de que Trump não falou -por exemplo os aliados, os parceiros, a NATO, a ONU,....Também não o ouvi falar na Ucrânia…Não disse rigorosamente nada sobre a Ucrânia. Apenas se coloca como pacificador e unificador. E deu o exemplo dos reféns [israelitas em Gaza], também ele a puxar para si próprio o sucesso da libertação destes reféns e do cessar-fogo [entre Israel e o Hamas]. Mas ao mesmo tempo fala em querer o Exército dos EUA capaz de dissuadir os inimigos de sequer ousarem desafiar os EUA. Assume um tom belicista…Ele é um pacificador e unificador, mas tem um tom belicista, de desafio, embora os inimigos que ele identifica sejam os cartéis, que ele vai designar como organizações terroristas estrangeiras, e depois os gangues de criminosos nos EUA. Trump nada fala dos tradicionais adversários da América no mundo. A única referência que faz à China é porque esta controla o Canal do Panamá, que ele quer recuperar. E já está a legitimar seja qual for a forma de os EUA recuperarem o Canal do Panamá. É por isso que eu dizia que, em larga medida, o discurso de Trump de tomada de posse é um misto de Xi Jinping a referir-se ao sonho de rejuvenescimento chinês e de Doutrina Putin, para o qual não existem regras em nome de uma autoproclamada legitimidade de expansionismo. Trump está claramente a pôr um ponto final na ordem mundial liberal, no que significa de multilateralismo, de comércio livre, de certo tipo de regras, de instituições, e está a alinhar com os revisionistas Putin e Xi Jinping a recriar uma coisa que ninguém sabe o que será, mas que é uma ordem mundial totalmente nova. Porque o garante da ordem que temos conhecido, não o quer ser. Trump não tem a intenção de gerir o mundo, já deixou claro que o que ele quer gerir é o interesse americano. Os outros atores internacionais só são relevantes naquilo em que afetam positiva ou negativamente o interesse superior da América. E nessa medida ele não faz distinção entre aliados e rivais. O que é normal nos presidentes dos EUA é fazerem um sistema de diferenciação entre aliados e parceiros com quem a América quer liderar o mundo, um mundo melhor, democrático, com respeito por certos princípios e valores e regras, e os outros que estão contra isso. Ora, Trump não faz essa distinção. Na verdade, pareceu mais um discurso de um ainda candidato do que propriamente de alguém que está a tomar posse depois de ganhar as eleições. Aliás, ele refere como tem a legitimidade resultante do voto e, no fundo, é um pouco o “sonho, quero e mando.” Ainda por cima predestinado, porque foi escolhido por Deus, foi salvo por Deus. A certa altura é um discurso quase messiânico em que Trump diz que foi salvo por Deus para salvar a América. É um corte radical com os últimos quatro anos…Mas é igual a ele próprio! Parece que está em campanha. Se fosse um comício de campanha, diríamos que ele não ganhou, nem perdeu nenhum voto. Os que estavam contra ele, continuam contra ele. Os que gostam e são simpatizantes, continuam com ele. Desse ponto de vista, ele não tentou ser conciliador, apesar de se dizer unificador. Mas isso ele já tinha feito depois da tentativa de assassinato. Na altura também se apresentou como unificador, mas continuou a polarizar. Portanto, temos de reconhecer que é coerente. Não é nada de novo nem de estranho, face àquilo que ele já tem dito noutras ocasiões enquanto candidato e presidente-eleito. Mas agora, como presidente empossado dos EUA pela segunda vez, é evidente que para um europeu e para os outros aliados espalhados pelo mundo, este é um discurso desconcertante. Porque fomos completamente postos de parte. Os valores, os princípios que partilhamos, nada disso foi invocado, nem dentro da América, nem fora. O que ele diz é que, agora, quer tornar a Justiça imparcial, que esta deixe de perseguir os inimigos políticos como ele próprio sofreu. Mas foi ele que ameaçou usar a justiça para perseguir e se vingar dos seus opositores políticos.Biden tentou usar as suas últimas horas como presidente dos EUA para blindar alguns dos alvos dessas ameaças de Trump, emitindo uma série de perdões preventivos.Sim, tal como tentou dar o máximo de auxílio possível à Ucrânia para se aguentar durante algum tempo, mas a realidade é que Trump pode e vai desfazer muito daquilo que Biden tentou construir e blindar, da mesma maneira que Biden tentou desconstruir muito daquilo que era o legado de Trump. E Trump fez o mesmo em relação a Obama. Os EUA têm este drama, que é que cada Administração que vem tem como primeiro objetivo alterar aquilo que a antecessora fez. Ao contrário de uma China ou de uma Rússia, que têm uma linha de rumo coerente durante muitos anos, os EUA não. Mudam. E mudam substancialmente quando mudam as Administrações. O mesmo acontece aliás com alguns países europeus, mas sem o impacto dos EUA. Mais uma vez digo que não devemos utilizar a desculpa Trump para tudo o que devemos fazer e não fazemos enquanto europeus, mas temos de perceber que, do lado lá do Atlântico, mora na Casa Branca alguém que tem um pensamento sobre o mundo que é muito mais distante de nós e mais próximo daqueles que nós víamos como os agentes disruptivos, subversivos, revisionistas do sistema internacional.Os europeus vão ter de se habituar porque vão ser mais quatro anos de Trump…Ou pelo menos dois. Trump tem a maioria nas duas câmaras do Congresso e vai tentar fazer o máximo nestes dois anos [até às Eleições Intercalares]. Talvez ande mais distraído da política externa porque esta só lhe interessa se interferir diretamente com o interesse americano. Mas para nós, europeus, não se adivinham tempos nada fáceis. Ainda por cima já percebemos que Trump e os seus amigos de alta tecnologia, como Elon Musk, não se importarão nada de interferir nos assuntos internos dos países aliados. Isso é algo bastante perturbador, porque já não é só a China a tentar dividir-nos, não é só a Rússia a tentar interferir, são os EUA a fazê-lo, e se os EUA o fazem, há sempre muitos europeus que de imediato aderem. São como um Cavalo de Tróia e ainda por cima impedem-nos de falar a uma só voz. Portanto, para nós o cenário é, eu não quero dizer dramático, mas muito desafiante. Ou os líderes europeus estão minimamente à altura ou estamos condenados a viver num mundo construído à moda de Trump em função dos interesses exclusivamente americanos em articulação com Putin e Xi Jinping. E nós temos de nos adaptar a essas regras, a esses princípios que nos são completamente estranhos.