A unidade de cuidados intensivos (UCI) do Hospital Garcia de Orta tem recebido doentes de 22, 35, 47 e 49 anos - este último acabou por falecer. A UCI do Hospital de Santa Maria tem um doente de 22 anos, mas tem recebido "doentes de todas as idades", confirma João Ribeiro, diretor da unidade. A UCI do Hospital de São José, que foi o centro de referência para toda a zona sul na primeira fase da pandemia, tem recebido doentes entre os 29 e os 47. Não são muitos os casos nas faixas etárias mais jovens, mas são em número suficiente para os médicos lançaram também um alerta:"É preciso que as pessoas tenham a noção de que a população mais jovem infetada também desenvolve formas de doença grave.".Os casos que nos contam são de uma faixa etária que inicialmente até se pensava que iria ser a menos atingida pela doença, e que quando o fosse seria de forma ligeira. Mas afinal não. Há casos que do ponto de vista clínico surpreendem, pelas complicações que acarretam e pelos cuidados que exigem. Os doentes recebidos nestas três unidades da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo tiveram necessidade de cuidados de fim de linha, dos cuidados da medicina intensiva, e como eles outros irão necessitar também. Para os médicos é claro como a água, e está definido na literatura da medicina intensiva, que quantos mais casos de infeção na comunidade, maior é a probabilidade de mais doentes chegarem às UCI.."A probabilidade é de 0,5% em relação à população infetada", explicam-nos. Por isto, sabem também que a pressão sentida desde há duas semanas na região norte, com alguns dos serviços em capacidade máxima, vai chegar ao sul, "é uma questão de tempo", dizem. E hoje, de acordo com o boletim epidemiológico diário, o país chegou aos 4656 novos casos de infeção em 24 horas, aos 275 internamentos em cuidados intensivos e às 40 mortes. Novos máximos históricos desde o início da pandemia..Neste momento, há já unidades em grande pressão assistencial, não só no norte, mas também no sul, outras ainda em nível 2 nos seus planos de contingência, mas a maioria já entre os 85% e os 100%, o que "não é uma margem confortável para se trabalhar", argumentam. Foi assim na primeira vaga, está a ser assim na segunda, e, sublinham alguns, "já era assim antes da pandemia". "O importante na medicina intensiva é podermos ter a capacidade de poder tratar todos os doentes de igual forma", respondem-nos, argumentando que no intensivismo há uma máxima: "O doente crítico não tem idade nem área.".A questão agora, e como foi previsto por alguns especialistas, é que a segunda vaga está a ser mais forte em número de infeções e com formas graves da doença. "Vemos isso todos os dias nas UCI", admitem os médicos intensivistas com quem o DN falou. E, para estes, a chegada de doentes cada vez mais jovens e até saudáveis é uma preocupação.."O vírus não atinge só os pulmões, atinge outros órgãos e desenvolve outras formas de doença, como enfartes ou encefalites, quando se aloja no coração ou no cérebro", sublinha o médico Antero Fernandes, diretor da unidade do Hospital Garcia de Orta. Mas a verdade é que também atinge os pulmões de forma grave, havendo doentes que estão a chegar aos hospitais com covid e infeções bacterianas graves, como "pneumonia pneumocócica, o que não se via há algum tempo"..Foi isto mesmo que o DN pretendeu saber neste trabalho, que doentes estão a chegar aos cuidados intensivos? O que está a diferenciar esta fase da pandemia em relação à primeira, o que preocupa os especialistas e como se sentem para reagir. As preocupações são idênticas, conseguir tratar todos os doentes, e os sentires também, "somos médicos"..Sabem que vão ter de lutar contra a doença que também afeta o resto do mundo, mas admitem que o farão com "menos medo" do que na primeira vaga, quando se sabia muito pouco. Pelo menos, nesta segunda fase, embora o impacto da doença possa ser mais forte, "já tratamos os doentes com mais confiança". Hoje, já sabem que quanto mais cedo um doente com necessidade de cuidados intensivos entrar na unidade melhores serão os resultados em termos da sua recuperação", apenas esperam ter capacidade para o fazer a todos os que necessitem da medicina intensiva..No final, a mensagem de uns e de outros também não difere: "É absolutamente errada a ideia de que aos cuidados intensivos só chegam os doentes mais idosos e com mais fragilidades." Isto, por um lado, por outro, é essencial que no combate à doença passe a mensagem correta, porque "um cidadão não informado é um cidadão desprotegido. E, neste momento, os portugueses estão profundamente desprotegidos, não têm informação que é crucial", argumenta o diretor da UCI de Santa Maria..O médico intensivista Philip Fortuna, do Hospital de São José, não receia confessar que a pandemia, apesar de os médicos terem perdido o medo, continua a ser assustadora, "não pelos doentes", mas "pela pressão nas unidades em relação à falta de recursos humanos". De qualquer forma, para todos é fundamental a responsabilidade de cada um no combate à doença..A unidade de cuidados intensivos do Hospital Garcia de Orta (HGO), que está no nível 2 de contingência, entre os 85% e os 100% de ocupação, mas já teve picos de ocupação total, admite o diretor. Do ponto de vista clínico, Antero Fernandes, médico intensivista há mais de 30 anos, conta que tem "recebido doentes de todas as idades, que variam dos 21 aos 82 anos", sublinhando haver uma grande " heterogeneidade demográfica da doença"..O médico explica que o que se nota nesta segunda vaga na sua unidade, referência para todos o hospitais da sub-região de Setúbal, é a entrada de doentes jovens e adultos jovens com situações particularmente graves. "A grande maioria dos doentes internados têm patologia covid grave, quer formas graves de pneumonia quer de outras doenças. Os que chegaram com patologia pulmonar tiveram necessidade de suporte respiratório, que pode ir desde o oxigénio por alto fluxo à ventilação mecânica ou invasiva.".Antero Fernandes, que também já foi presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Intensiva, dá como exemplo dois doentes ainda internados. "Um de 22 anos e outro de 35, sem grandes comorbilidades, e que desenvolveram formas graves da doença", o que o faz reforçar a mensagem deixada por todos: "A ideia de que a covid-19 tem particular expressão de gravidade na população mais idosa tem de ser desmistificada, porque podem aparecer formas graves em jovens e sem comorbilidades.".O médico refere ao DN um outro caso, registado na semana passada, o de um doente infetado com uma complicação neurológica grave, síndrome Guillain-Barré. "É raro, mas pode acontecer." Ao hospital da margem sul do Tejo têm chegado também casos de "apresentação de covid por encefalite", em que o vírus infetou o cérebro, também rara, mas que pode acontecer. "As pessoas têm de perceber que a doença é multissistémica e que não afeta só o pulmão. Pode ter expressão em outros órgãos, o que está a acontecer e a tornar as situações clínicas com prognóstico mais reservado." A mesma situação está a afetar doentes que nunca tiveram situações cardiovasculares, e que acabam por chegar aos hospitais com enfarte, mas infetados com covid-19. "O diagnóstico da covid não é primário, mas desencadeia o enfarte.".Na semana passada, a unidade perdeu um doente na casa dos 50 anos. "Entrou com uma pneumonia covid grave, com necessidade de suporte respiratório, ventilação mecânica agressiva, mas ao fim de alguns dias conseguimos reverter a situação pulmonar. Quando apresentava melhoras teve uma complicação vascular e acabou por falecer." A morte não chegou pela covid-19, mas por uma complicação cardiovascular, a qual pode acontecer..A unidade do HGO, que tem recebido doentes dos hospitais de Setúbal, Barreiro e Montijo, tem oito camas base de cuidados intensivos para tratar a covid-19, mais oito para tratar doentes não covid - com quartos de isolamento, sendo que metade destes tem estado ocupada com doentes infetados - que deve ser alargada nos próximos dias com mais duas camas. Ao todo, quando tiver de acionar o nível máximo do plano de contingência, o HGO terá capacidade para 13 camas, o que, mesmo assim, refere Antero Fernandes, "é um número de camas insuficiente, estando nós a responder com alguma dificuldade a estes doentes e com o esforço enorme dos profissionais. A análise da disponibilidade das camas tem de ser feita dia a dia e de acordo com a necessidade de reposta à covid e à não covid".É claro que em "função da situação poderemos ter mais camas, mas tal pode levar à cessação da atividade programada"..Em Lisboa, na unidade de cuidados intensivos referência para toda a zona sul, Philip Fortuna, também coordenador do programa ECMO - uma técnica de suporte de vida que permite oxigenar doentes com falência cardiovascular ou pulmonar -, diz que a maioria dos doentes que ali têm chegado estão dentro do padrão já definido internacionalmente: "Têm obesidade, diabetes e hipertensão e a média de idades está nos 65 anos.".No entanto, alerta também que por ali já passaram dois casos dramáticos, de um doente com 29 anos e outro com 47, bem como outros que acabam por ficar internados até 38 dias, "como já aconteceu". E conta: "Tivemos um caso de uma doente que esteve 38 dias internada, mas foi na primeira fase.".Agora, nesta semana, deu entrada um doente com necessidade de ser ventilado pela técnica ECMO, e que a equipa deste médico foi buscar a outra região do país. "O senhor tem 50 anos, é um adulto jovem, vivia no Reino Unido, assustado com a situação, quis voltar a Portugal e dias mais tarde estava a ter sinais da doença. Esta desenvolveu-se rapidamente e numa forma grave, sem o senhor ter outras patologias que levassem a complicações. A única situação é que era fumador." .A equipa da UCI de São José aguarda a recuperação de mais um doente, explicando Philip Fortuna que pela UCI do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central (CHULC), já passaram mais de 200 doentes desde o início da pandemia, e destes mais de 20 tiveram necessidade de oxigenação por ECMO..Apesar de tudo, nesta segunda fase e até agora a situação parece estar mais calma. "Tivemos aqueles dois casos mais dramáticos, com muitas complicações, mas no geral temos tido casos mais ou menos semelhantes."O que não quer dizer menos graves, até porque se trata de uma unidade de fim de linha e ali também chegaram situações de doentes particularmente graves, "quase invariavelmente doentes com obesidade, diabetes e hipertensos mal controlados". Doentes que, confessa, "em relação à primeira fase nos deixavam algo confusos quanto à ventilação, porque pareciam ter pulmões normais, mas que afinal não oxigenavam" e, começávamos logo a ligá-los ao ventilador"..Agora, diz, "é diferente, já sabemos que, por vezes, não é necessário, porque usamos outras tecnologias que temos para dar mais oxigénio e que até permitem que o doente esteja menos tempo nos cuidados intensivos, menos sedado e entubado. Os resultados em termos de recuperação acabam por ser melhores e os internamentos mais curtos"..A unidade de São José, que tem recebido doentes de Cascais, Setúbal, Loures, Vila Franca de Xira, Lisboa Ocidental e do Amadora-Sintra, já consegue atingir nesta fase da pandemia uma média de nove dias de internamento, o que "é muito bom", diz, justificando que "quanto mais cedo o doente entra nos cuidados intensivos, melhor é para ele, senão arriscamo-nos a que fique muito tempo ligado ao ventilador, deitado numa cama e a perder massa muscular, o que atrasa a sua recuperação"..Philip Fortuna assinala que o facto de terem menos dias de internamento e mais vagas tem permitido que "estejamos a conseguir internar doentes mais cedo. Obviamente se tivermos muito poucas vagas, o que vai acontecer é que não se consegue receber um doente que não esteja já entubado ou longe de o ser, e isso vai começar a prejudicar o tratamento dos doentes". Aliás, sublinha, "esta é a grande importância de uma UCI a nível nacional, quando temos poucas vagas temos de ser mais seletivos e, nestes últimos dias, estamos perto de atingir a capacidade máxima"..Para este médico, a grande diferença entre a fase que agora estamos a viver e a primeira é que "antes todos nós tínhamos medo do que aí vinha, agora, que já tratámos mais de 200 doentes, temos algum conhecimento e um certo à-vontade e confiança no tratamento da doença". Nesta semana, refere ao DN, "a maioria dos casos que recebemos têm sido relativamente simples", o mais complicado foi o do senhor de 50 anos, mas não esquece que por ali também já passaram casos idênticos aos registados no HGO, "pessoas com enfarte que depois pela testagem à entrada percebemos que tinham covid e que terá sido o vírus a desenvolver esta situação"..Para Philip Fortuna a fase que aí vem "vai ser mais complicada do que a primeira, temos o efeito da sazonalidade e qualquer doença respiratória é pior no inverno, por todas as contingências - no verão estamos mais ao ar livre e no inverno em espaços fechados. E, na primeira fase, apanhámos o vírus no final do nosso inverno e tivemos o confinamento, o que nos trouxe algum benefício"..Se continua a ser assustador? Não duvida: "Continua. É sempre um peso muito grande sobre as equipas", "não pelos doentes, mas pela falta de recursos. "O nosso receio é ficarmos com profissionais infetados e com as equipas reduzidas.".João Ribeiro, diretor da UCI do Hospital de Santa Maria, assume, na conversa com o DN, estar muito preocupado em relação à falta de perceção que ainda existe na comunidade em relação ao impacto forte da doença. E, numa só frase, resume o que pensa: "Este é o vírus que veio expor as nossas ignorâncias e fragilidades na globalidade.".Ou seja, tanto na ciência, embora esta funcione com um método científico, que a faz avançar, e que está isento da ação de agentes políticos, como na comunidade, e aqui argumenta com a falha na comunicação institucional que diz existir desde o início da pandemia. "É compreensível que andemos há oito meses a misturar mensagens de conteúdo técnico e político? Não faz sentido", defende. Uma situação que, na sua opinião, só tem feito que a população ainda não tenha interiorizado o impacto da covid..Para chegarmos ao controlo da propagação da doença, o médico diz ser necessária "uma estratégia de comunicação eficaz, com conteúdos que promovam a informação, e diferentes do que os que têm sido divulgados. Só assim conseguiremos combater a situação. Senão o resultado final será o mesmo da primeira fase", alerta, enumerando: "Estado de emergência e confinamento generalizado", e como consequência "a suspensão das atividades económica, social, religiosa e desportiva". Teremos "a rutura de todos os setores da comunidade e não gostava de ver isso acontecer"..O médico, que dirige uma unidade com 18 camas na ala covid e 21 na ala não covid, diz que "a mensagem essencial tem que ver com a perceção de que a doença grave provocada pela infeção não afeta só as pessoas muito idosas e já muito doentes", sublinha, afirmando, no entanto, não ter qualquer intenção de "condicionar receios ou medo epidémico". A sua intenção é "clarificar conceitos que devem ser interiorizados por todos", pois "todos somos, de certa maneira, responsáveis pela assimilação deste conceito, para podermos "modelar os nossos comportamentos e a nossa visão sobre a pandemia"..João Ribeiro, que é médico há 28 anos, considera que foi projetada a ideia de que "o risco era para os muitos idosos e muito doentes", ficando na comunidade "a ideia de que a maioria da população está imune". E exemplifica: "Uma coisa é a probabilidade de 0,5% de entrar num a UCI em relação a uma população de cem jovens infetados, outra é quando esta população de infetados passa para um milhão.".Por isso, alerta: "Temos de saber quais os riscos que, quer sejamos jovens ou adultos saudáveis, corremos em apanhar a infeção de uma forma grave. A probabilidade pode ser baixa, se estivermos a falar na totalidade da expressão comunitária da infeção, mas existe.".À UCI de Santa Maria, o maior hospital do país, estão a chegar pessoas de todas as idades. "Tivemos agora um padrão que tem uma distribuição de idades que vai dos 22 aos 81 anos", sublinha, embora reafirme que a maioria dos doentes está no padrão da média de idades, os 65 anos, e no de patologias de maior risco, obesidade, diabetes e hipertensão. "Os doentes continuam a ter a mesma distribuição etária, a maioria está na faixa dos 50 aos 60 anos e dos 60 aos 70 anos. Estamos a falar de pessoas relativamente jovens, não de uma população idosa e já profundamente condicionada por doenças preexistentes.".Mas dentro dos mais jovens "todos tiveram necessidade de tratamento ECMO, não foi sequer possível tratá-los só com ventilador mecânico, porque apresentavam formas extraordinariamente graves da doença", que a maioria da população parece desconhecer, mas que "afeta pessoas jovens e sem qualquer tipo de patologia. É muito importante que os cidadãos percebam isto". Quanto à realidade geográfica, o médico argumenta que "a expressão regional nunca é simétrica e Lisboa e vale do Tejo vai ter um grau de expressão da doença proporcional à sua comunidade", o que irá refletir-se igualmente "numa pressão assistencial forte. Foi o que aconteceu na primeira vaga e agora será semelhante"..Neste momento, "temos já no horizonte um acréscimo de contaminação, que, obviamente, vai colocar todo o sistema a funcionar no seu limite". "Há hospitais a atingir a sua lotação máxima", aliás, "surpreende-me que haja a perceção de que antes da pandemia estava tudo bem. É uma ideia errada, muitos serviços de medicina intensiva, nomeadamente os mais diferenciados, estavam quase sempre na lotação máxima". Por isso, "é impossível alguém achar que estamos numa situação confortável, porque nunca estivemos". E reforça a diferença entre a primeira e a segunda fases, "são os casos que nos chegam, tem de haver uma estratégia de comunicação que leve a população a interiorizar que tem de se comportar de outra forma".