Revogada decisão judicial: chamar "filho da puta" a polícia é crime e não "grito de revolta"

O MP acabou por acusar dois homens que tinham chamado "filho da puta" a um polícia e que tinham sido ilibados por uma procuradora que arquivara o processo por considerar que isso era um "grito de revolta".
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Chamar "filho da puta" a um agente da autoridade pode ser considerado um "grito de revolta"? Desferir um murro num polícia pode ser uma forma de "defesa da força física exercida pelo agente policial"? Estas foram as conclusões escritas pela procuradora Carmen Andrade, do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) da Amadora, num despacho que determinou o arquivamento de uma queixa de agressões contra agentes da PSP, conforme o DN noticiou em janeiro passado.

A decisão e os argumentos da magistrada desagradaram não só aos polícias mas também aos sindicatos, e à própria hierarquia da PSP e do Ministério Público (MP). O caso incendiou as redes sociais, principalmente as páginas ligadas às forças de segurança. Os polícias requereram a indicação de novos meios de prova e o inquérito acabou por ser reaberto por ordem do coordenador do DIAP daquela Comarca, Helder Cordeiro, o mesmo magistrado que acusou os 18 polícias da esquadra de Alfragide - julgados neste ano, tendo sido oito condenados.

E foi este mesmo procurador quem agora veio corrigir a decisão de Carmen Andrade - entretanto transferida para outro tribunal - e acusar os dois homens, um português e outro russo, pelos crimes de resistência e coação sobre funcionário e de injúria agravada.

Num despacho datado de 10 de dezembro, a que o DN teve acesso, o magistrado ignora todas as considerações anteriores da procuradora e sublinha que "os arguidos agiram por meio de violência constrangendo agentes das forças públicas de segurança no desempenho das suas funções a uma ação e a suportar uma atividade desenvolvida pelos arguidos contra si. Os arguidos sabiam que ao dirigirem aquelas expressões a um agente da PSP, no exercício de funções e por causa delas, ofendia a honra e consideração pessoal que lhe era devida".

Agressão, injúria e ameaça

O caso que deu origem ao processo teve lugar no Bingo da Amadora, no dia 12 de maio de 2018. Segundo vinha descrito no despacho, Orlando Yuryevna, de nacionalidade russa, e Pedro Pereira, português, ambos de 45 anos, envolveram-se em desacatos no interior daquele estabelecimento, tendo sido advertidos por agentes da PSP para sair da sala. Estariam ambos alcoolizados, "a falar alto e de ânimos exaltados", situação que se agravou quando um jogador que estava presente os mandou calar.

Quando estavam já no exterior, "o arguido Orlando dirigiu-se ao agente da PSP (...) uniformizado e no exercício de funções, e desferiu-lhe um soco no peito, causando-lhe dor, ao mesmo tempo que proferia para aquele agente e ofendido a expressão 'és um filho da puta'". O agente deu-lhe voz de detenção e o russo "reagiu de forma violenta à tentativa de colocação das algemas" tentando evitar que lhe fossem colocadas.

Nesta altura, narra ainda o MP, Pedro Pereira "agarrou o agente (...) pelo braço esquerdo, puxou-o, procurando impedir a consumação da algemagem ao arguido Orlando, ao mesmo tempo que dizia para aquele agente 'filho da puta, não faças isso'". Já dentro da esquadra, Orlando terá ameaçado o agente, dizendo-lhe "vamo-nos encontrar noutras alturas e sem farda".

Sem ofensa, nem para magoar

Para a procuradora que tinha arquivado a queixa da PSP, estes comportamentos tinham de ser avaliados dentro de um contexto próprio. "Estas palavras só por si e no exato contexto factual em que foram proferidas, não têm o animus de ofender quem quer que seja, funcionando antes como um 'grito de revolta', uma manifestação de exaltação e indignação", escreveu no seu despacho a procuradora.

Quanto à agressão de Orlando ao agente, a magistrada entendeu que "atentas às circunstâncias concretas em que o arguido desferiu o murro, fê-lo num contexto em que se queria defender da própria força física exercida pelo agente policial e não com o intuito de lesar o corpo e/ou a saúde deste".

Quanto ao "filho da puta, não faças isso", expressão dita por Pedro Pereira, a procuradora entendeu que "não deve ser aferida por si só, mas no contexto factual em que foi proferida e, in casu, não foi acompanhada de animus ofensivo, funcionando apenas como um 'grito de revolta', uma manifestação de exaltação e indignação relativamente ao facto de ver as autoridades exercerem força física sobre o seu amigo".

No despacho assinado por Helder Cordeiro, é determinada a medida de coação de termo de identidade e residência aos dois arguidos até ao julgamento. No caso do russo, cuja residência está registada em Alicante, Espanha, as autoridades não conseguiram ainda localizá-lo para o notificar da acusação.

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