Célula jihadista de Aveiro acusada em França por ligação ao Daesh
Abdesselam Tazi e Hicham El Hanafi, dois marroquinos que receberam estatuto de refugiados políticos em Portugal, foram investigados pelas autoridades francesas e alvo de uma acusação, concluída neste mês, que os dá como operacionais ativos ao serviço do estado islâmico.
Tazi, 65 anos, e Hanafi, 29, foram investigados e vigiados pela Polícia Judiciária (PJ) desde 2014 por suspeitas de terrorismo. Entraram em Portugal em 2013, com documentos falsos, e pediram asilo político, que lhes foi concedido. Residiam num centro da segurança social na cidade de Aveiro - daí a designação Célula de Aveiro - e tinham apoio financeiro do Estado português. Era aqui a sua base de recrutamento jihadista.
Viajaram por toda a Europa e foram detidos por fraude na Alemanha, em junho de 2016. Hanafi foi libertado, mas Abdesselam Tazi ficou preso até ser extraditado para Portugal, em março de 2017. Foi entregue à PJ e detido. Hicham El Hanafi acabou por ser detido em França, a 20 de novembro de 2016, juntamente com outras sete pessoas, de nacionalidades marroquina, francesa e afegã, por envolvimento na preparação de um atentado coordenado a vários locais simbólicos naquele país.
A acusação agora deduzida - a que o DN teve acesso - partiu deste processo, mas as ligações a Portugal e as informações partilhadas pelas autoridades portuguesas estão em destaque no despacho assinado pelos magistrados da secção antiterrorista do Tribunal de Grande Instância de Paris.
Não só todo o trajeto desde Marrocos e a passagem por Portugal são descritos, como Abdesselam Tazi é apontado pelos franceses como o mentor e radicalizador de Hanafi e cabecilha de uma rede de recrutamento jihadista em toda a Europa. Tazi esteve quase a ser libertado depois de o juiz Ivo Rosa, do Tribunal Central de Instrução Criminal, o ter despronunciado de todos os crimes de terrorismo de que estava acusado pelo Ministério Público (MP).
Tazi começou por ser julgado apenas por crimes comuns - falsificação de documentos e cartões de crédito -, mas a uma semana de ouvir a sentença, que certamente seria uma pena suspensa, tendo em conta os crimes em causa, o Tribunal de Relação concordou com um recurso do MP, o julgamento foi anulado e o caso voltou à estaca zero.
O marroquino foi julgado de novo, desta vez por todos os crimes que lhe estavam imputados pelo MP - adesão a organização terrorista internacional, falsificação com vista ao terrorismo, recrutamento para o terrorismo, financiamento do terrorismo e crimes de uso de documento falso com vista ao financiamento do terrorismo. Tazi negou sempre todas as acusações, mas as provas apresentadas em tribunal levaram a que fosse condenado a 12 anos de prisão. Mesmo assim, os juízes deixaram de fora da sentença o crime de adesão a organização internacional terrorista.
Para os franceses - e na linha do MP português - não há dúvidas de que todas as provas recolhidas indicam a "adesão", tanto de Hanafi como de Tazi, ao "islão radical". Ambos negam, mas "foram desacreditados pelas muitas mentiras dos seus testemunhos".
A investigação da secção terrorista deste tribunal superior francês sublinha que "quando chegaram a solo português, em setembro de 2013, os dois começaram a recrutar candidatos à jihad e conseguiram enviar, pelo menos, dois indivíduos para a Síria ". Para financiar esta atividade, incluindo as próprias viagens pela Europa, "cometeram golpes", como a falsificação de identidades e de cartões de crédito - Tazi teve, pelo menos, 17 identidades falsas e Hanafi, 13.
Segundo a acusação francesa, Abdesselam Razi e Hicham El Hanachi "receberam fundos de jihadistas na Síria, que utilizavam para a sua causa", e "usavam documentos de identidade falsos, não apenas como parte de seus golpes mas também para ocultar algumas de suas viagens".
Tal como já tinha sido referido no processo português, França confirma que Hanachi esteve "algumas semanas" na Síria, tempo durante o qual recebeu "um treino militar rápido - o que Abdesselam Tazi não poderia desconhecer, tendo em conta a proximidade dos dois homens e o facto de estar claramente por trás da radicalização de Hicham El Hanafi".
A vigilância intensa que as autoridades francesas fazem na internet, principalmente nas redes de comunicação mais utilizadas para atividades criminosas, que envolve "ciber-infiltrados" da polícia, conduziu-os até Hanafi. Sem saber, o marroquino negociou a compra de quatro Kalashnikovs com um destes infiltrados e ficou sob constante vigilância até ser apanhado em flagrante quando as foi levantar a um local combinado com o alegado vendedor, na floresta de Montmorency.
A investigação assinala que a célula a que pertencia Hanafi - da qual são acusados outros dois suspeitos, um de nacionalidade francesa e argelina, outro francês de origem árabe - utilizava técnicas de comunicação "muito sofisticadas". "Não há dúvida sobre o objetivo da operação, que era cometer um massacre em um ou mais locais simbólicos de Paris, como fica claro nas mensagens deixadas, (...) para vingar os órfãos de Mossul e Raqqah ", é sublinhado.
O Tribunal de Grande Instância acusa Hanafi de, "em Paris, Montmorency, Trappes e Marselha", território francês, "e de forma relacionada em muitos países europeus, na Turquia e na Síria, entre 23 de setembro de 2013 e 20 de novembro de 2016", "ter participado numa organização ou num acordo estabelecido para a preparação de atos de terrorismo, seguindo as seguintes orientações jihadistas: permanecer nas fileiras do Estado Islâmico na zona sírio-iraquiana; recrutar e organizar o transporte de candidatos à jihad armada e membros de sua família para a zona sírio-iraquiana; usar documentos de identidade falsos; receber e enviar dinheiro para promover atos de terrorismo; manter contactos com membros do Estado Islâmico na zona; planear uma ação violenta no território nacional em conexão com membros do Estado Islâmico na zona".
Os franceses decidiram aguardar pelo trânsito em julgado do processo de Abdesselam Tazi em Portugal, para tomar uma decisão definitiva quanto aos crimes de que o vão acusar.
Um deles pode ser o de adesão a organização terrorista, uma vez que o tribunal português, apesar de o ter condenado por todos os outros crimes que tinham com objetivo o financiamento e o recrutamento para o Daesh, entendeu que Tazi não tinha aderido a esta organização terrorista. Assim, França, que mantém ativo um mandado de captura contra Tazi, separou este processo, justificando pela regra internacional non bis in idem, que proíbe uma pessoa de ser condenada duas vezes pelos mesmos atos - parte dos crimes que lhe são imputados fazem parte do processo português, mas a sua ligação a Hanafi, principalmente o facto de ter financiado a sua ida para França, pode fazê-lo cúmplice da tentativa dos ataques terroristas.
Quando foi detido em Paris, em novembro de 2016, Hicham El Hanafi tinha 26 anos. Saiu de Marrocos em 2013, onde chegou a frequentar a universidade e trabalhou durante dois anos como garçon num restaurante italiano em Fez. Os pais separaram-se quando tinha 20 anos e tinha oito irmãos. Segundo disseram às autoridades alguns amigos da juventude, nunca mostrou sinais de radicalização. Isto até conhecer Abdesselam Tazi, a quem o pai de Hanafi culpa pela viragem do filho. "Abdesselam Tazi estabeleceu laços de amizade com o meu filho e foi ele quem o recrutou e lhe meteu na cabeça as ideias terroristas, e é ele o responsável pela sua radicalização", contou às autoridades francesas. Veio para Portugal no mesmo voo que Tazi e, seguindo as instruções deste, pediu asilo político. Tentou comprar metralhadoras Kalashnikovs em França e foi detido pelas autoridades.
Abdesselam Tazi, ex-polícia, atualmente com 65 anos, condenado em Portugal, em julho passado, a 12 anos de cadeia, chegou a Aveiro, com Hicham El Hanafi, em 2013. Alegando perseguição política em Marrocos, pediu asilo político, que lhe foi concedido. Mas antes já tinha estado no radar das autoridades europeias. Saiu de Marrocos em 1982 para estudar em França, segui para a Suécia, onde se casou com uma enfermeira. Tirou um curso de psicoterapeuta e acabou expulso do país, depois de ter incendiado a casa em circunstâncias nunca esclarecidas. Rumou depois ao Canadá, onde se casou novamente, e dali para a Irlanda, onde voltou a ser expulso por imigração ilegal. A sua radicalização religiosa foi pela primeira vez referenciada em 2015, pelas autoridades portuguesas. Um seu amigo contou que Abdesselam Tazi tinha um "ódio inexplicável" pelos europeus.