Foi apelidado de "herói" pelo Presidente da República por tudo o que fez no combate à pandemia em Ovar. Sente-se assim? Não. Essa questão de ser considerado herói foi toda esta comunidade do concelho de Ovar, as mais de 55 mil pessoas que, perante uma situação muito complicada, tiveram um comportamento exemplar, desde logo cumprindo exemplarmente todas as regras. E naturalmente esse cartão de herói tem de ser para todos, designadamente para os que fizeram parte de um gabinete de crise que foi constituído desde a primeira hora, com todas as forças vivas do município, os agentes da proteção civil, que arriscaram a sua própria vida, estando 24 sobre 24 horas focados neste trabalho, abdicando das suas famílias..O cerco sanitário a Ovar e esse pico da pandemia no concelho foi o pior momento que viveu enquanto autarca? Sem sombra de dúvida que este foi o desafio da minha vida. Foi o momento mais complicado de longe enquanto autarca. Eu já tinha tido dois ou três momentos complicados, designadamente quando fomos assolados por fenómenos de erosão costeira muito graves, nomeadamente na praia do Furadouro, também tivemos aqui alguns incêndios florestais graves durante estes sete anos de exercício de presidente da Câmara de Ovar. Pensei que já tinha vivido tudo, mas quando sou confrontado, no dia 17 de março pela autoridade regional de saúde, com o facto de Ovar ter de implementar muito rapidamente uma quarentena geográfica, porque já cá se verificava uma contaminação comunitária, e depois de eu ter interagido com alguns profissionais de saúde que me disseram que o que poderia estar em causa era 80% de infetados, ou seja 40 mil, e mais de mil mortos, a partir desse momento o meu chip mudou completamente. Este passou a ser o desafio da minha vida, foi o momento mais crítico de longe e que espero nunca mais viver porque nos sentimos muito, muito pequenos, muito impotentes, cheios de medo. Coloquei o objetivo de tentar salvar o máximo de vidas possível, descurando tudo o resto..A Câmara preparou-se logo para agir? A nossa câmara já estava fechada, porque tínhamos tido sinais de que a situação era muito complicada, mas passou a funcionar como um gabinete de crise, com planos de guerra literalmente para tentar fazer tudo o que estivesse ao nosso alcance para salvar o máximo de pessoas possível. Adotámos imediatamente uma estratégia de antecipação, não nos limitamos a reagir, prevendo sempre um cenário muito complicado. Percebemos que perante as inúmeras solicitações que existiam pelo país todo não podíamos estar à espera de ninguém..Na altura do cerco manifestou-se desiludido com a resposta do poder central. O que falhou? Isso ainda foi numa fase embrionária e quando as pessoas ainda nem falavam da necessidade da existência de material para a recolha de amostras e fazer testes, nem se falava de zaragatoas, percebi que, por falta de articulação, e por ser algo de novo e por haver muitas solicitações pelo país todo, que não podíamos ter aqui um tratamento discriminado pela positiva. E aí avançámos nós. Não quero com isto estar a criticar ninguém, porque me consigo colocar também do outro lado. Temos 304 municípios, surtos a acontecerem em muito lado e tínhamos a consciência que cada hora, cada meio-dia de espera podia traduzir-se em mortes e replicação de infetados. E avancei, medindo o risco, mas avancei na aquisição de material para recolha de testes, contratualizando com uma série de laboratórios públicos e privados, porque percebi que tínhamos de testar a sério para separar os infetados dos não infetados. Percebemos que tínhamos uma resposta de saúde muito fraca no município de Ovar perante esse cenário dantesco que foi pintado e percebemos logo que tínhamos de fazer algo ao nível das infraestruturas. Criámos imediatamente uma infraestrutura para receber infetados que não precisassem de cuidados hospitalares, mas que não tinham condições de recuperação nas suas casas, e começámos a preparar uma extensão do nosso hospital, que não tem nada que ver com hospitais de campanha, e conseguirmos montá-la em tempo recorde, em 10 ou 12 dias, e que foi um marco muito importante. Tivemos momentos mais complicados, sobretudo quando tínhamos informação sobre o número de mortes. Era o que me afetava mais e nesses momentos em que nos vamos um pouco mais abaixo não tínhamos aqui o carinho, o conforto e a ajuda do governo central. E foi isso que justificou as minhas declarações. Não faltaram momentos em que nos sentimos sozinhos em Ovar. A verdade tem de ser dita. Quando tivemos conhecimento de um surto grande na Santa Casa da Misericórdia e não tínhamos médicos....Que episódios, como esse da Santa Casa, o marcaram mais neste período? O momento mais complicado era sempre quando tinha a informação de mortes. O município de Ovar é de média dimensão, com 55 mil habitantes, mas temos uma gestão muito baseada na proximidade e conhecemos muito, muito bem, a nossa comunidade e, portanto, cada pessoa que infelizmente morria nós conhecíamos, se não diretamente pelo menos indiretamente. Isso mexeu comigo a sério. Depois tive também algum receio quando a Santa Casa da Misericórdia, num rastreio que foi feito, em que começam a aparecer muitos casos e em pessoas muito idosas, e também constatando que não havia ali muita organização, tentámos ajudar a instituição não só com a realização de testes mas no acompanhamento. E depois três ou quatro dias em que tinha acesso à informação em tempo real e via a multiplicação de casos de infetados. Era impressionante, famílias inteiras afetadas e tínhamos conhecimento que essas famílias tinham estado em contacto com dezenas e dezenas de pessoas..Nestes dias complicados, como geriu a sua vida pessoal? Desde o dia 17 de março que mudei totalmente a minha vida pessoal. Saía de casa às primeiras horas do dia e chegava depois da meia-noite. Tínhamos o tal gabinete de crise instalado na câmara e fazíamos briefings bidiários e depois estava muito no terreno a acompanhar as coisas, em bairros sociais onde tínhamos muito receio que houvesse grande contaminação, nas desinfeções, dando conforto às pessoas, mas também tentando dar alguma proteção e tentando convencê-las que valia a pena o esforço que estavam a fazer. Chegava a casa ao fim do dia, tarde, e ia com algum medo e a minha família também por ter estado em contacto com infetados. Mas tinha um ritual, chegava a casa e despia-me todo, ia tomar um banho, e só depois é que ia para a beira deles, quando não estavam ainda a dormir. Durante mês e meio foi uma mudança completa e eu estava só focado nisto. Sinto que arrisquei a vida e a possibilidade de infeção. Durante todo esse período cheguei a fazer um teste porque quase me obrigaram a fazê-lo e de forma incógnita, mas deu negativo..Se tivesse alguns conselhos a dar aos autarcas na Grande Lisboa, onde o número de casos está a subir durante esta fase de desconfinamento, quais seriam? Quem sou eu para estar a dar conselhos, ainda por cima a autarcas com muita experiência e extremamente competentes..Porque já teve uma experiência que eles não tiveram, de um pico na pandemia... Mas diria que se algum ensinamento tirei disto foi, em primeiro lugar, tentar criar um espírito de cooperação na nossa comunidade, do cidadão anónimo, instituições, gente com responsabilidade, criando um verdadeiro espírito de equipa que se fomenta com a disponibilização de informação verdadeira e correta. A segunda questão é não estar à espera de ninguém, tem de haver uma estratégia de antecipação. Os autarcas têm de conhecer os números reais - neste gabinete de crise aqui em Ovar eu exigia por parte das autoridades de saúde, mediante o esforço tão grande que estávamos a fazer, os dados quase ao minuto. E é decisivo ter-se esse conhecimento, quer no tempo quer no espaço. Não podemos ter dados com 15 dias sob pena de chegarmos às pessoas e elas já terem falecido ou já estarem recuperadas. A questão do espaço é decisiva porque todos nós temos territórios que não são uniformes, temos zonas mais vulneráveis, temos conjuntos habitacionais que pertencem a bairros sociais onde moram comunidades socialmente desfavorecidas, e temos outros locais mais novos com moradias isoladas. Portanto, é decisivo para quem está à frente de uma guerra como esta, e nós autarcas é que somos os chefes da proteção civil, e temos de exigir que esses dados nos sejam fornecidos para implementar estratégias para mitigar tudo isto. E depois sensibilizar as pessoas ao mais alto nível, usando todos os instrumentos existentes, para que cumpram as regras, designadamente a proteção individual e a proteção dos outros, que respeitem muito este vírus, que saibam conviver com ele. E depois deixando três ou quatro mensagens de que não há economia, nem a sua retoma, sem pessoas saudáveis, que a saúde pública tem de estar na primeira linha das nossas prioridades porque não há dinheiro nenhum do mundo que pague uma vida humana.. Para encararmos uma crise social, e que sabemos que vai acontecer, temos de primeiro resolver a crise sanitária. A grande questão é a antecipação e não a reação. Não ter medo de avançar com recursos próprios. Aqui, no município de Ovar, não recebemos um único equipamento de proteção individual e comprámos de imediato e distribuímos pelas nossas instituições quando ainda não se falava disso. Se fosse hoje teria feito tudo igual. Compramos uma série de equipamentos para o nosso hospital, monitores, garrafas de oxigénio. É uma competência que não está nas câmaras municipais, mas não podemos ficar com o sentimento de não ter feito algo porque não era da nossa competência e ter como consequência até mortes. E depois é extremamente gratificante ver que o esforço que a comunidade cá fez valeu a pena. Hoje em Ovar todos têm a consciência que o cerco sanitário afetou muitíssimo os nossos empresários e os nossos cidadãos mas valeu a pena..Já há um balanço das perdas económicas e sociais deste confinamento extremo em Ovar? Estivemos sujeitos aqui a condições que já não eram impostas a qualquer município ou no território há mais de cem anos. A última vez que houve uma cidade cercada foi no Porto há mais de cem anos e onde, por sinal, deu muita complicação social. E é muito ingrato termos empresas cá que foram obrigadas a encerrar e ver cem metros ao lado, no município vizinho, os seus concorrentes a produzirem o mesmo produto e ter pessoas cá dentro que não podiam ir visitar os seus familiares porque moravam no município ao lado. Foi muito duro para esta gente toda! Muito duro! E tivemos aqui toda uma gestão deste processo que foi fatigante e que criou um estado de exaustão em todos nós. Não imaginam a quantidade de pessoas que nos abordavam porque implementamos a quarentena geográfica, o cerco, e fomos nós que tivemos de dar a cara por isto. Foi uma decisão do governo, do Ministério da Administração Interna, das autoridades de saúde, mas depois fomos nós que tivemos de impedir que as pessoas saíssem e explicar que valia a pena. Mas, indo às perdas, temos um tecido empresarial vasto no município de Ovar, muito resiliente, com um nível de faturação enorme, temos empresas a faturar centenas de milhões de euros e que não posso dar esses prejuízos. Estamos a falar seguramente de dezenas de milhões de euros. Mas foi esta estratégia de antecipação que permitiu também, uma vez controlada a crise sanitária, que as nossas empresas agora encarassem os enormes desafios e as enormes oportunidades que são criadas na esteira de uma enorme crise de uma outra forma. Hoje temos um município extremamente seguro, temos um nível de recuperados enorme, há duas semanas um quarto dos recuperados do país estavam em Ovar. O que permite dar lastro à retoma da nossa economia..E desempregados, têm a noção se o número subiu muito no concelho? Não sei dizer. Tivemos muitas empresas que entraram em lay-off, todos os colaboradores de Ovar que foram impedidos de trabalhar por causa do cerco receberam ou estarão a receber integralmente por parte da Segurança Social..Que medidas concretas estão a ser adotadas para recuperar a economia local e responder à crise social? Temos a consciência de que na esteira desta crise sanitária vão surgir uma crise económica e social muito fortes. Tendo aqui grandes multinacionais instaladas, como a Bosh e a Salvador Caetano, não cabe à câmara proceder à implementação de grandes medidas que permitam aliviar a tesouraria das empresas, Nós temos um orçamento na ordem dos 35 milhões de euros e temos empresas que faturam dez vezes mais do que isso. Em termos de economia nacional cabe ao governo apresentar planos estruturais que permitam dar algum apoio às empresas. Coisa diferente é a crise social e aí sim, apesar desta competência estar na Segurança Social, a dimensão do problema pode ser enquadrado na nossa ação. E nesse contexto temos vindo a implementar várias medidas. Mesmo ao nível económico, para tentar ajudar o nosso comércio local, isentámos toda a gente que tivesse taxas de ocupação do espaço público, as taxas urbanísticas foram claramente reduzidas e, nalguns casos, mesmo eliminadas. Implementámos mais de 20 medidas, mas que estão à nossa escala. Os conjuntos habitacionais da câmara deixaram de pagar renda, as nossas empresas que estão sediadas nas nossas incubadoras deixaram de pagar renda, aumentámos muito a área para que os nossos comerciantes possam usar as suas esplanadas. Mas nossa aposta vai ser no desenvolvimento social. Aqui ninguém vai passar fome, ninguém vai estar privado dos bens essenciais. Já tínhamos um fundo de emergência social para fazer face a situações pontuais mais críticas e vamos reforçar essa rubrica e, sobretudo, usando a nossa rede social para tentar pelo menos neste momento acudir a quem mais precisa..Enquanto autarca, mas também como dirigente do PSD, concordou sempre com o apoio que Rui Rio deu ao governo nesta fase de pandemia? Apoiei e apoio a mil por cento. Porque acho que perante a situação é momento de congregarmos esforços e todos somos poucos para ajudar naquilo que podia ter sido catastrófico para o país. E fico satisfeito que haja sucesso parcial de tudo isto..Por que diz que há um "sucesso parcial"? Falhou alguma coisa? Temos de falar de sucesso parcial porque ninguém sabe o dia de amanhã e todos nós já percebemos que vamos ter de conviver com o vírus e poderá surgir, apesar de todas as ações de sensibilização, um novo surto, uma nova vaga. É só por isso. Eu próprio disse a vários membros do governo que me abordaram que faria exatamente o mesmo, nem mais nem menos se tivesse lá um governo do PSD. Coloquei claramente o que seria a estratégia político-partidária de lado pelo interesse do país e a melhor forma de o fazer é defendendo as nossas pessoas com todas as armas que temos na mão. Acho que o dr. Rui Rio deu um sinal extraordinário para toda a comunidade e eu sou apologista que nos dias de hoje é assim que a política deve ser feita. Saber discernir aquilo que é acessório do que é decisivo e crítico e nunca ousar colocar o interesse do país num nível secundário. Revejo-me completamente na forma como o PSD geriu todo este dossier e acho que assim deve continuar até ao limite. É isso que eu vou fazer no município de Ovar, como se fosse uma extensão do governo..Numa entrevista admitiu puder vir a integrar um governo mais alargado... Não, foi uma ideia adulterada quando fui abordado sobre o futuro. Eu vejo a atividade política como passageira, ninguém deve fazer dela uma profissão, e eu não encontro na política nada mais dignificante do que ser presidente da sua terra e das suas gentes e gosto muito de ser presidente de câmara. E serei candidato à Câmara de Ovar nas próximas eleições autárquicas e é isso que me move.