As mortes por AVC estavam a diminuir em Portugal. A pandemia veio estragar tudo
Um inquérito da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (SPAVC) em 32 hospitais portugueses mostrou que metade viu o número de doentes com AVC reduzir-se entre 25% e 50%. Num país em que esta continua a ser a principal causa de morte, o medo da covid-19 poderá ser um dos motivos para não chamar o 112 quando surgem os sinais de alerta. "Uma análise risco-benefício que, neste caso, pode ser fatal", avisa o neurologista Vítor Tedim Cruz.

Dia Mundial do AVC, em 2019, daí a ausência de máscaras.
© André Rolo/Global Imagens
Em 2018, morreram 11 235 pessoas em Portugal por acidente vascular cerebral (AVC), um número menor do que em anos anteriores (a taxa de mortalidade desta doença tem vindo a diminuir na última década), mas ainda assim suficiente para esta ser a principal causa de morte no nosso país.
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Num comunicado de imprensa a propósito do Dia Mundial do AVC, que se assinala hoje, 29 de outubro, a Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (SPAVC) dá conta de que esta é "também a principal causa de morbilidade e de potenciais anos de vida perdidos. Os números são reais e podemos mesmo referir que, por hora, três portugueses sofrem um AVC, sendo que um destes não sobrevive e um ficará com sequelas incapacitantes", diz José Castro Lopes, presidente da direção da SPAVC.
No entanto, o AVC parece não provocar tanto medo aos portugueses como a covid-19, um dos motivos, pensam os especialistas, para que, sobretudo nos primeiros meses da pandemia, os casos que chegaram aos hospitais tenham sido menos 25% a 50% do que o habitual.
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A estimativa decorre de um inquérito realizado pela SPAVC em 32 hospitais portugueses e que o neurologista Vítor Tedim Cruz, diretor do serviço de neurologia do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, e membro da direção da SPAVC, confirma.

Vítor Tedim Cruz é neurologista, diretor do Serviço de Neurologia do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, investigador do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e membro da direção da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral.
© André Gouveia/Global Imagens
"Notou-se, de facto, durante a primeira vaga da pandemia, uma redução significativa no número de AVC a chegar às urgências e uma menor ativação da Via Verde do AVC. É provável que muitas pessoas, instalado o pânico da pandemia, mesmo com sinais de alerta, tenham feito uma análise risco-benefício e decidido esperar. Mas, nestes casos, atrasar a ida para o hospital pode ser fatal", diz o médico, que explica que cada 15 minutos agravam o prognóstico.
"Cada 15 minutos mais cedo representam mais 4% de probabilidade de voltar para casa sem grandes sequelas e sem necessidade de reabilitação", diz Vítor Tedim Cruz, acrescentando que esta e os enfartes agudos do miocárdio foram das primeiras áreas em que se sentiram as consequências "de ter o Serviço Nacional de Saúde concentrado na resposta a uma pandemia. O barco ficou desequilibrado."
Após o primeiro impacto, não tardaram os alertas. "Reagimos sensibilizando as pessoas para o problema [a campanha O AVC Não Fica em Casa foi um dos exemplos disso] e a partir de maio a situação regularizou-se, mas agora, com o aumento de casos de covid-19, a questão volta a colocar-se".
E, mais uma vez, é essencial gerir o medo com racionalidade e usá-lo quando é de facto útil e necessário.
"Após o início dos sintomas, as primeiras horas são cruciais, uma vez que a janela temporal que garante a eficácia dos principais tratamentos dura apenas algumas horas. Se as pessoas souberem reconhecer os sinais de alerta do AVC, os chamados 3 F (falta de Força num braço, desvio da Face e dificuldade na Fala) e, perante o aparecimento de um deles, acionarem de imediato o 112, será possível encaminhar os doentes rapidamente para os hospitais capazes de administrar os tratamentos adequados", alerta o neurologista José Castro Lopes.
"Nesta altura, a nossa preocupação é garantir que o AVC, sendo a principal doença aguda não covid e que compete pelos mesmos recursos que a covid, nomeadamente camas em cuidados intensivos, se mantenha prioritário."
"Há AVC em que os sinais são mais exuberantes, com paralisação de um lado do corpo, e há aqueles que dão sinais clínicos mais ligeiros - que serão um terço -, mas que também são graves, podem querer dizer que o pior está a caminho, daí ser tão importante agir de imediato, não esperar, não ir pelos seus meios para o hospital e chamar o 112", reforça o também dirigente da SPAVC, que esclarece que os hospitais com serviço de urgência e unidades de AVC estão ligados à Via Verde do AVC e "têm sempre a resposta montada para receber os doentes nas urgências para internamento e tratamento do episódio agudo".
"Nesta altura, a nossa preocupação é garantir que o AVC, sendo uma das principais doenças agudas não covid e que compete pelos mesmos recursos que a covid, nomeadamente camas em unidade de AVC e cuidados intermédios, se mantenha prioritário", diz o especialista.
"Um doente de AVC depois da fase aguda tem de fazer reabilitação diariamente e esta resposta ainda está por reorganizar e isso tem de ser outra prioridade porque a pandemia não vai desaparecer e a reabilitação é muito importante."
Só assim Portugal poderá manter a evolução positiva que alcançou nos últimos anos, mas também é fundamental que o medo da pandemia não leve a melhor.
"Apesar de ainda ser o país campeão de AVC, nos últimos anos aumentámos o número de tratamentos de casos agudos e diminuímos o número de mortes, fazendo de Portugal um exemplo na Europa. Não vamos estragar os resultados que custaram tanto a atingir", diz Vítor Tedim Cruz.
Para isso, "é importante que as pessoas saibam que, mesmo em alturas de grande congestionamento, os doentes são encaminhados para onde a resposta for mais célere e dizer-lhes que não tenham medo de ir ao hospital porque este está preparado para as receber em segurança, com circuitos covid e não covid preparados e definidos. Esta é uma das grandes diferenças entre o início da primeira vaga e esta segunda vaga: os serviços reorganizaram-se e estão melhor preparados para responder a todas as situações".
O que tem demorado mais a reorganizar-se e estabilizar é a fase que se segue à resposta à doença aguda e essa é uma preocupação de todos os que trabalham com sobreviventes de AVC: a reabilitação.
"Um doente de AVC depois da fase aguda tem de fazer reabilitação diariamente e esta resposta ainda está por reorganizar e isso tem de ser outra prioridade porque a pandemia não vai desaparecer e a reabilitação é muito importante para o resultado final", diz Vítor Tedim Cruz.

No âmbito do Dia Mundial do AVC, a Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral associa-se à campanha internacional da Organização Mundial do AVC Junte-se ao Movimento para Prevenir o AVC e alerta que uma em cada quatro pessoas irá sofrer um AVC ao longo da vida e que a adoção de medidas de prevenção pode contribuir para diminuir o risco e o número de vidas perdidas todos os anos devido ao AVC.
A campanha Junte-se ao Movimento para Prevenir o AVC representa uma chamada de atenção que múltiplas sociedades e associações ligadas ao AVC dirigem a toda a população neste dia.
O principal objetivo é reforçar o papel de cada indivíduo e passar a mensagem de que é possível prevenir a ocorrência de AVC, na maior parte dos casos, através da adoção de algumas medidas simples.
"A prática de exercício físico é a atividade mais simples e de eficácia comprovada na prevenção do aparecimento dos fatores de risco cerebral, no seu controlo e na prevenção primária e secundária do AVC, daí a sua relevância para comemorar esta data. Além disso, é importante vigiar os valores da tensão arterial e do ritmo cardíaco, não fumar e adotar uma alimentação saudável", explica o neurologista JoséCastro Lopes.
Para instituir processos sobre a educação relativa ao AVC nas comunidades, a SPAVC estabeleceu ainda uma parceria com a campanha FAST Heroes 112, um projeto da Iniciativa Angels destinado a educar crianças dos 5 aos 9 anos de idade sobre como reconhecer os sintomas de AVC e como contactar corretamente uma ambulância.
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