As mortes por AVC estavam a diminuir em Portugal. A pandemia veio estragar tudo

Um inquérito da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (SPAVC) em 32 hospitais portugueses mostrou que metade viu o número de doentes com AVC reduzir-se entre 25% e 50%. Num país em que esta continua a ser a principal causa de morte, o medo da covid-19 poderá ser um dos motivos para não chamar o 112 quando surgem os sinais de alerta. "Uma análise risco-benefício que, neste caso, pode ser fatal", avisa o neurologista Vítor Tedim Cruz.
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Em 2018, morreram 11 235 pessoas em Portugal por acidente vascular cerebral (AVC), um número menor do que em anos anteriores (a taxa de mortalidade desta doença tem vindo a diminuir na última década), mas ainda assim suficiente para esta ser a principal causa de morte no nosso país.

Num comunicado de imprensa a propósito do Dia Mundial do AVC, que se assinala hoje, 29 de outubro, a Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (SPAVC) dá conta de que esta é "também a principal causa de morbilidade e de potenciais anos de vida perdidos. Os números são reais e podemos mesmo referir que, por hora, três portugueses sofrem um AVC, sendo que um destes não sobrevive e um ficará com sequelas incapacitantes", diz José Castro Lopes, presidente da direção da SPAVC.

No entanto, o AVC parece não provocar tanto medo aos portugueses como a covid-19, um dos motivos, pensam os especialistas, para que, sobretudo nos primeiros meses da pandemia, os casos que chegaram aos hospitais tenham sido menos 25% a 50% do que o habitual.

A estimativa decorre de um inquérito realizado pela SPAVC em 32 hospitais portugueses e que o neurologista Vítor Tedim Cruz, diretor do serviço de neurologia do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, e membro da direção da SPAVC, confirma.

"Notou-se, de facto, durante a primeira vaga da pandemia, uma redução significativa no número de AVC a chegar às urgências e uma menor ativação da Via Verde do AVC. É provável que muitas pessoas, instalado o pânico da pandemia, mesmo com sinais de alerta, tenham feito uma análise risco-benefício e decidido esperar. Mas, nestes casos, atrasar a ida para o hospital pode ser fatal", diz o médico, que explica que cada 15 minutos agravam o prognóstico.

"Cada 15 minutos mais cedo representam mais 4% de probabilidade de voltar para casa sem grandes sequelas e sem necessidade de reabilitação", diz Vítor Tedim Cruz, acrescentando que esta e os enfartes agudos do miocárdio foram das primeiras áreas em que se sentiram as consequências "de ter o Serviço Nacional de Saúde concentrado na resposta a uma pandemia. O barco ficou desequilibrado."

Após o primeiro impacto, não tardaram os alertas. "Reagimos sensibilizando as pessoas para o problema [a campanha O AVC Não Fica em Casa foi um dos exemplos disso] e a partir de maio a situação regularizou-se, mas agora, com o aumento de casos de covid-19, a questão volta a colocar-se".

E, mais uma vez, é essencial gerir o medo com racionalidade e usá-lo quando é de facto útil e necessário.

"Após o início dos sintomas, as primeiras horas são cruciais, uma vez que a janela temporal que garante a eficácia dos principais tratamentos dura apenas algumas horas. Se as pessoas souberem reconhecer os sinais de alerta do AVC, os chamados 3 F (falta de Força num braço, desvio da Face e dificuldade na Fala) e, perante o aparecimento de um deles, acionarem de imediato o 112, será possível encaminhar os doentes rapidamente para os hospitais capazes de administrar os tratamentos adequados", alerta o neurologista José Castro Lopes.

Destaquedestaque"Nesta altura, a nossa preocupação é garantir que o AVC, sendo a principal doença aguda não covid e que compete pelos mesmos recursos que a covid, nomeadamente camas em cuidados intensivos, se mantenha prioritário."

"Há AVC em que os sinais são mais exuberantes, com paralisação de um lado do corpo, e há aqueles que dão sinais clínicos mais ligeiros - que serão um terço -, mas que também são graves, podem querer dizer que o pior está a caminho, daí ser tão importante agir de imediato, não esperar, não ir pelos seus meios para o hospital e chamar o 112", reforça o também dirigente da SPAVC, que esclarece que os hospitais com serviço de urgência e unidades de AVC estão ligados à Via Verde do AVC e "têm sempre a resposta montada para receber os doentes nas urgências para internamento e tratamento do episódio agudo".

"Nesta altura, a nossa preocupação é garantir que o AVC, sendo uma das principais doenças agudas não covid e que compete pelos mesmos recursos que a covid, nomeadamente camas em unidade de AVC e cuidados intermédios, se mantenha prioritário", diz o especialista.

Destaquedestaque"Um doente de AVC depois da fase aguda tem de fazer reabilitação diariamente e esta resposta ainda está por reorganizar e isso tem de ser outra prioridade porque a pandemia não vai desaparecer e a reabilitação é muito importante."

Só assim Portugal poderá manter a evolução positiva que alcançou nos últimos anos, mas também é fundamental que o medo da pandemia não leve a melhor.

"Apesar de ainda ser o país campeão de AVC, nos últimos anos aumentámos o número de tratamentos de casos agudos e diminuímos o número de mortes, fazendo de Portugal um exemplo na Europa. Não vamos estragar os resultados que custaram tanto a atingir", diz Vítor Tedim Cruz.

Para isso, "é importante que as pessoas saibam que, mesmo em alturas de grande congestionamento, os doentes são encaminhados para onde a resposta for mais célere e dizer-lhes que não tenham medo de ir ao hospital porque este está preparado para as receber em segurança, com circuitos covid e não covid preparados e definidos. Esta é uma das grandes diferenças entre o início da primeira vaga e esta segunda vaga: os serviços reorganizaram-se e estão melhor preparados para responder a todas as situações".

O que tem demorado mais a reorganizar-se e estabilizar é a fase que se segue à resposta à doença aguda e essa é uma preocupação de todos os que trabalham com sobreviventes de AVC: a reabilitação.

"Um doente de AVC depois da fase aguda tem de fazer reabilitação diariamente e esta resposta ainda está por reorganizar e isso tem de ser outra prioridade porque a pandemia não vai desaparecer e a reabilitação é muito importante para o resultado final", diz Vítor Tedim Cruz.

No âmbito do Dia Mundial do AVC, a Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral associa-se à campanha internacional da Organização Mundial do AVC Junte-se ao Movimento para Prevenir o AVC e alerta que uma em cada quatro pessoas irá sofrer um AVC ao longo da vida e que a adoção de medidas de prevenção pode contribuir para diminuir o risco e o número de vidas perdidas todos os anos devido ao AVC.

A campanha Junte-se ao Movimento para Prevenir o AVC representa uma chamada de atenção que múltiplas sociedades e associações ligadas ao AVC dirigem a toda a população neste dia.

O principal objetivo é reforçar o papel de cada indivíduo e passar a mensagem de que é possível prevenir a ocorrência de AVC, na maior parte dos casos, através da adoção de algumas medidas simples.

"A prática de exercício físico é a atividade mais simples e de eficácia comprovada na prevenção do aparecimento dos fatores de risco cerebral, no seu controlo e na prevenção primária e secundária do AVC, daí a sua relevância para comemorar esta data. Além disso, é importante vigiar os valores da tensão arterial e do ritmo cardíaco, não fumar e adotar uma alimentação saudável", explica o neurologista JoséCastro Lopes.

Para instituir processos sobre a educação relativa ao AVC nas comunidades, a SPAVC estabeleceu ainda uma parceria com a campanha FAST Heroes 112, um projeto da Iniciativa Angels destinado a educar crianças dos 5 aos 9 anos de idade sobre como reconhecer os sintomas de AVC e como contactar corretamente uma ambulância.

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