Como um cantil militar inspirou o criador do Mateus Rosé

A história deste vinho - e da sua garrafa inspirada num cantil dos soldados na Primeira Guerra Mundial - já foi contada e recontada mil vezes, e o mérito vai sempre parar a Fernando Van Zeller Guedes, um homem do Porto, nascido em 1903, e que em 1942, estava o mundo de novo em guerra, lançou o Mateus Rosé.

As duas garrafas de tinto Cabernet Sauvignon - Merlot com o rótulo a dizer "Ilha Formosa" não passavam de uma jogada de marketing de uma empresa de Taiwan para associar o nome que os portugueses da era das Descobertas deram à ilha (ainda de belas paisagens). Mas junto a elas, no supermercado em Taipé, estava num dos formatos pequenos (25 cl) uma garrafa de Mateus Rosé, esse sim, vinho verdadeiramente nacional, uma das marcas portuguesas - há quem lhe chame até embaixador - mais globais.

A história deste vinho - e da sua garrafa inspirada num cantil dos soldados na Primeira Guerra Mundial - já foi contada e recontada mil vezes, e o mérito vai sempre parar a Fernando Van Zeller Guedes, um homem do Porto, nascido em 1903, e que em 1942, estava o mundo de novo em guerra, lançou o Mateus Rosé.

Sobre o empresário, figura ligada à história dos vinhos em Portugal e falecido em 1987, diz Fernando da Cunha Guedes, um dos netos: "Se tivesse de definir o meu avô numa só palavra, diria afetivo. Naturalmente, foi muito mais do que isso. O meu avô era uma pessoa com uma capacidade extraordinária para se relacionar e fazer amizades (o facto de ser um comunicador nato ajudava bastante). O seu lema é intemporal: primeiro fazemos amigos e depois fazemos negócios. A amizade e as suas relações - com a família, com os amigos e até profissionalmente - vinham antes de tudo. Na empresa, conhecia todos os empregados pelo nome, era atencioso e atento aos detalhes da vida de cada um, sendo generoso e demonstrando sempre uma grande preocupação pelo bem-estar de todos. Acima de tudo, era uma pessoa com um respeito enorme pelos outros. Todas estas características refletiam-se na sua forma de ser e de estar na vida e na Sogrape, no negócio. E aqui, impossível não fazer referência à sua vertente visionária. O meu avô sonhou, acreditou e concretizou. Foi uma pessoa à frente do seu tempo, alguém que à custa de muito trabalho teve a ousadia de, em pleno cenário da Segunda Guerra Mundial, criar um vinho assente num conceito diferente e inovador para a época, um vinho rosé, numa garrafa icónica, capaz de levar a qualidade dos vinhos portugueses além-fronteiras."

O neto Fernando, atual presidente da Sogrape, acrescenta: "Nos dias de hoje, em que cada vez mais a emoção conduz à ação e o seu efeito combinado é determinante para o sucesso, revejo o exemplo do meu avô. Reconheço que já no seu tempo pensava e agia seguindo esta premissa. Era um avô diferente! Sempre descontraído, com uma simpatia e uma alegria contagiantes, de que não me canso de falar e de recordar com muita saudade. Uma pessoa leve, divertida, sempre de sorriso rasgado e sempre desejoso de ter a família à sua volta. Recordo-me muito bem de que tinha sempre uma palavra amiga para partilhar, em todo e qualquer momento, e estava sempre disponível para ouvir. Como seria de esperar, teve um importante papel na minha chegada, e dos meus irmãos, ao mundo dos vinhos. Desde cedo (4 ou 5 anos de idade), e no final das refeições em sua casa, deixava-nos molhar o dedo no seu copo e provar o vinho. Era um ritual e um momento de diversão máxima!. Foi, sem dúvida, um homem intrinsecamente simpático, muito cativante e com um sentido de humor oportuno e inteligente. Na Sogrape de hoje, o nosso espírito é também de amizade e felicidade - Sograpiness -, mantendo, assim, o seu lema vivo."

Houve um outro Fernando entre estes dois, Fernando Guedes, filho de um deles e pai do outro, e que morreu há dois anos, deixando também grande marca na empresa familiar. Numa entrevista em 2014 ao DN, em que relatou como viu os olhos do pai brilhar com a ideia da garrafa inspirada no cantil e o rótulo a reproduzir o famoso palácio de Vila Real, contou também um episódio muito revelador da forte personalidade de Fernando Van Zeller Guedes: "Há uma história em Paris, um encontro com um senhor chamado Michel Dreyfus, num hotel. Ele chegou e apresentou-se: 'Senhor Dreyfus, sou Fernando Guedes', e o outro respondeu: 'Tenho cinco minutos para si.' 'Ah, cinco minutos? Goodbye sir, it was a pleasure to meet you.' Cinco minutos? Ele tinha uma história para lhe contar, a de um produto único, o primeiro rosé, que o outro, agente de vinhos do mundo inteiro, não sabia nem nunca tinha visto! Por isso, o meu pai achou aquilo uma má-criação. Mas o outro voltou atrás e a conversa acabou quatro horas depois. Ficaram amigos. Era assim o meu pai. Todos gostavam dele."

Amália foi embaixadora do Mateus Rosé, Jimmi Hendrix também, havendo uma célebre fotografia do músico americano a beber diretamente do cantil. E num artigo recente do jornal O Globo, em que se contava o sucesso da marca no Brasil, é referido que noutros países da América Latina também o Mateus Rosé tinha grandes consumidores, o líder revolucionário cubano Fidel Castro sendo um deles.

Ao enólogo António Braga cabe manter a tradição do vinho idealizado por Fernando Van Zeller Guedes há quase 80 anos, mas ao mesmo tempo fazer que permaneça atual. Sobre o segredo da longevidade diz: "Consistência, inovação e resiliência. Estas são as bases que trouxeram o Mateus até aos dias de hoje. Com uma história de mais de 75 anos de sucessos, esta marca especialista em rosés soube sempre desafiar o tempo, evoluindo e acompanhando tendências, mantendo o seu carácter leve, fresco e jovem. Com uma consistência de qualidade inigualável, daqui para a frente o objetivo do Mateus passa por estar cada vez mais perto do consumidor, adaptando-se, e continuar a reinventar-se numa categoria altamente dinâmica e na moda, prosseguindo o seu caminho enquanto líder na inovação e na qualidade.".

Seja em Taiwan, ilha que desde 1949 a China vê como uma província rebelde, seja na mais de centena de países onde o vinho é vendido, a garrafa continua a distinguir o Mateus Rosé tal como pensou o seu criador. O último redesign deixou a garrafa baixa como sempre mas menos bojuda, perfeitamente reconhecível mesmo assim pelo fundador se ainda andasse por cá. Um brinde a esta genialidade.

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