Fake news. Foi em 2016 que a expressão entrou no léxico, quando nas campanhas para o referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE e para as presidenciais americanas se multiplicaram as "notícias falsificadas", condicionando os respetivos resultados. Nas eleições presidenciais no Brasil, a coisa foi elevada a um novo expoente..Depois de o DN revelar que um empresário português criou um site para difundir falsidades direcionadas contra a esquerda, soube-se que as autoridades estão a preparar medidas já para as europeias de 2019. Em França, está em debate uma lei que, em período eleitoral, permita aos tribunais remover falsidades de imediato e obrigue plataformas online a revelar quem paga difusão de conteúdos..Duas conclusões, pois: a difusão de mentiras politicamente direcionadas perverte a democracia e os mecanismos legais existentes não são eficazes. Difamação é crime na maioria das jurisdições, mas em campanha eleitoral uma mentira pode mudar o sentido de voto em horas ou dias e quando a justiça intervém é tarde de mais..Estas conclusões são tanto mais curiosas quando, na Europa, a jurisprudência tem vindo a descriminalizar, na prática, a difamação, e mais ainda quando os alvos são políticos (ou "figuras públicas"), criando-se a ideia de que tal implica suportar tudo. Se de cada vez que se recorre aos tribunais a propósito de acusações graves e não fundamentadas estes despedem o assunto como "liberdade de expressão", qual a surpresa de termos chegado aqui?.Exemplo: se disser que X participa ou participou em furtos públicos, estou a acusar X de ter tomado parte nesses furtos, certo? De se ter apoderado de, sonegado, algo que lhe não pertence - e tê-lo feito em relação a coisa pública ou publicamente. De ter sido consciente nesse ato, como coautor ou cúmplice..É uma acusação muito grave. Acusações assim, se publicamente proferidas, têm de ser fundamentadas, ou seja, consubstanciadas, explicadas, justificadas. A mim, nunca me passaria pela cabeça acusar alguém de ser cúmplice de "furtos públicos" sem explicar como, porquê, quando, onde, apresentando disso evidência. Não o fazendo, estaria eu própria a cometer um crime: o de fazer uma acusação que ofende a honra, a dignidade e a reputação, portanto a infligir um dano noutra pessoa, sem sequer fundamentar o que digo. É essa a definição do crime de difamação..Descobri, porém, e de fonte segura, que estou enganada: explicou-mo a juíza Margarida Gaspar, no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. Sei agora que dizer que alguém participou em furtos públicos é dizer, "de forma óbvia mas não explícita", que alguém "pode ter conhecimento de factos que levaram a uma investigação criminal quando diz que deles não se teve conhecimento", o que "põe em causa a sua idoneidade", e é "uma crítica veemente", mas "não extravasa os limites permitidos à liberdade de imprensa"..E assim é sobretudo tendo em conta, argumenta a magistrada, que a publicação em que tal é escrito nos habituou a "um jornalismo de menor qualidade, que se afasta do discurso acerca dos factos". E prossegue: "Julgamos também que tal conduta é característica de um estilo que esta publicação adotou como sendo dela e faz disso uso corrente. (...) Também não nos parece que tenha publicado um artigo num tom diferente do que correntemente usa. (...) Em nosso entender caberá aos leitores a escolha.".Se não se obnubilar com o paradoxo de "um jornalismo que se afasta dos factos" ou com a lógica de algo "não extravasar os limites da liberdade de imprensa por ser corrente", quem leu até aqui terá já identificado a publicação assim caracterizada. "Podemos não gostar do estilo", conclui a juíza, "mas o escolhido pelo Correio da Manhã neste caso concreto não é insuportável e intolerável para todos nós enquanto comunidade.".Serei lírica, mas quando me sento num tribunal não estou à espera de ouvir preleções de juízes sobre estilos jornalísticos, ou sobre se numa dada publicação "o afastamento dos factos" se tornou "tolerável" por repetição e - a sério? - ausência de consequências. Espero uma aplicação da lei ao caso concreto. Assistir ao cotejamento, no escrito em análise, do direito à liberdade de expressão com o direito à dignidade e ao bom nome; de que as frases nele contidas sejam escrutinadas. Ou seja, espero assistir ao exercício de um juízo sobre se o que é ali dito pode ser crime e portanto se o autor deve ir a julgamento; que a julgadora se concentre no que está no texto em vez de elucubrar sobre teorias gerais..Estou à espera de ouvir por exemplo citar o penalista e atual presidente do Tribunal Constitucional, Costa Andrade, quando diz que "críticas caluniosas, bem como outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar", não devem ser protegidas pelo chapéu da "liberdade de expressão"..Estava à espera de justiça. Não de complacência, conformismo, falta de rigor, "azar o teu". Não devo e não posso estar à espera de ver uma juíza participar, publicamente, num furto público -- o do direito ao bom nome; o do direito da comunidade a não se viciar na impunidade. Não estou à espera de assistir à legalização das fake news.