Abril de 2000. Vladimir Putin, presidente interino graças à cedência de poder de Boris Ieltsin, mas que dias antes fora eleito chefe de Estado, viaja até Murmansk. Na cidade portuária situada no círculo polar Ártico Putin vestiu-se de marinheiro e assistiu ao lançamento de um míssil balístico a partir de um submarino nuclear; visitou um navio quebra-gelo; e reuniu-se com líderes locais e empresários. No final, disse que o país ia adotar uma estratégia de navegação e que o transporte marítimo no Ártico era o local para iniciar o plano. Meses depois deu-se a tragédia do submarino Kursk, no mar de Barents, não muito longe de Murmansk. Uma ferida no orgulho russo, ainda na ressaca da derrocada da União Soviética. Vinte anos depois, a mancha do acidente que matou os 118 marinheiros não desapareceu, porém o Kremlin pode dizer que os russos têm motivos para se regozijarem com a política para o Ártico..Tal como foi implacável na Chechénia, a silenciar jornalistas ou a prender oligarcas que não estavam do seu lado, Putin usou a mesma determinação para explorar um vasto território em termos económicos, geopolíticos e até mitológicos, ainda que por força das circunstâncias tenha sido levado a aliar-se à China. No início do mês tomou forma o plano estratégico para o Ártico. Até 2035, 10% do investimento de Moscovo vai para o norte: 220 mil milhões de euros para explorar os recursos naturais e melhorar o transporte marítimo..Do caderno de encargos faz parte a expansão da linha ferroviária e a construção de navios-tanque para transporte de gás natural, bem como de navios quebra-gelo nucleares. A Rússia é o único país com uma frota de navios com estas características e vai alargar o efetivo de quatro navios de propulsão nuclear para um total de nove até 2035. Também tem quatro quebra-gelos não nucleares..Em paralelo, houve uma reabertura de bases militares e a expansão da pista da base mais setentrional, Nagurskoye - ao que se seguiu a criação de uma divisão de defesa aérea e um novo sistema de radares..As empresas de energia russas estarão intimamente ligadas a esta corrida ao Ártico. O objetivo é extrair reservas calculadas em 513 mil milhões de barris de petróleo e o equivalente em gás natural no mar de Barents e no mar de Bering. A petrolífera Rosneft planeia montar um "cluster ártico" de campos de petróleo e de gás para produzir 1,5 mil milhões de toneladas de petróleo. A Rosatom, a agência estatal de energia nuclear, está a desenvolver a passagem nordeste graças à frota de quebra-gelos nucleares. Os navios de transporte de petróleo, gás, carvão ou porta-contentores podem poupar semanas de viagem entre a Ásia e a Europa. .De lixeira a parque nacional.E não é tudo: há ainda a vertente turística. Em 2010, Vladimir Putin visitou o então recém-aberto Parque Nacional do Ártico, onde acompanhou uma missão científica junto de ursos-polares. "Uma gigantesca lixeira", reconheceu na altura. Desde então, foram retiradas 80 mil toneladas de lixo soviético e foi ampliado o espaço da reserva natural, situado no arquipélago Terra de Francisco José. Nem a União Soviética nem a Rússia foram um exemplo no respeito pelo meio ambiente. Agora o discurso é outro: "Alcançar um equilíbrio entre o desenvolvimento económico e a preservação do Ártico é um único desafio", disse Putin há um ano no Fórum Internacional do Ártico, uma organização russa..Na ocasião, Putin estabeleceu uma meta para a quantidade de carga transportada através da rota de navegação: 80 milhões de toneladas até 2025, quatro vezes mais do que em 2018. "Esta é uma missão realista, bem calculada e concreta. Precisamos de tornar a rota do mar do Norte segura e comercialmente viável", disse..Putin aproveitou o fórum, que de alguma forma concorre com o Conselho do Ártico, para convidar empresas estrangeiras a investir nos planos russos para a rota de navegação que se estende de Murmansk até à península de Kamchatka..O Conselho do Ártico nasceu em 1996 e reúne à mesma mesa russos, dinamarqueses, canadianos, norte-americanos, islandeses, suecos, noruegueses e finlandeses. Tem como objetivo a cooperação, proteção ambiental e o desenvolvimento sustentável. Na mais recente reunião do Conselho do Ártico, que se realizou em Rovaniemi, na Finlândia, o secretário de Estado norte-americano causou sensação ao criticar Moscovo e Pequim. Aos russos, Mike Pompeo acusou de militarizarem a região e de empreenderem "ações provocativas", aos chineses de quererem transformar o Ártico num segundo mar do Sul da China, "repleto de militarização e reivindicações territoriais conflituosas"..Não faltam reivindicações territoriais, desde a ilha Hans, 1,3 quilómetros quadrados disputados por canadianos e dinamarqueses, até à soberania de parte do Polo Norte por parte de russos, dinamarqueses e canadianos..Com a invasão da Crimeia, em 2014, e as consequentes sanções económicas de que foi alvo, a Rússia perdeu parceiros e acesso a crédito no Ocidente. Em 2017, a China estendeu o conceito da nova rota da seda à rota do mar do Norte e estabeleceu uma parceria com a Rússia..Ao observar que a ponta mais ao norte da China dista 1450 quilómetros do Ártico, Mike Pompeo arrasou as tentativas de Pequim de se tornar um "Estado próximo do Ártico". "Existem apenas Estados árticos e Estados não árticos. Não existe uma terceira categoria, e afirmar o contrário dá à China exatamente nada", disse, ignorando que o aliado Reino Unido se declarou o vizinho mais próximo do Ártico. "Lá porque o Ártico é um lugar selvagem não significa que deva tornar-se um lugar sem lei", disse Pompeo..Por fim, o norte-americano prometeu contrabalançar a presença sino-russa com mais meios militares na região. Os Estados Unidos não ratificaram a convenção da ONU sobre a lei do mar, pelo que não podem argumentar que a plataforma continental debaixo de água no Polo Norte é a extensão do Alasca. Cabe assim às Nações Unidas decidir que país ou países têm razão na reivindicação de direitos económicos exclusivos..Identidade russa."A identidade de qualquer russo está ligada em definitivo ao Ártico." As palavras são do diretor científico do Instituto de Geografia russo, Vladimir Kotlyakov, ao Financial Times. Vladimir Putin recuperou esse lugar mítico para a identidade russa. O trabalho intelectual deve-se a Aleksandr Dugin, um sociólogo que atualizou o conceito de euroasianismo, nascido nos anos 20 do século passado, e que defendia que a Rússia não partilhava os valores europeus. A visão crítica ao etnocentrismo da Europa propõe a construção de um império euroasiático inspirado na "reserva geopolítica" do extremo norte e numa superioridade dos russos que vai beber a um mito da origem dos russos, numa ilha do Ártico, Hiperbórea. Para Dugin, que já foi chamado de "Rasputine de Putin" e que é um dos indivíduos alvo de sanções pela invasão da Crimeia, o "arcaísmo dos povos do norte" é, na realidade, uma "mais-valia espiritual".