"Tenho anjos-da-guarda dentro de mim. Anjos-da-guarda quer dizer intuição, feelings... Quando estamos com uma câmara à frente não sabemos para onde vamos, há uma grande interrogação. É por isso que é mesmo necessário saber estar em sintonia com as diversas camadas interiores", começa por nos dizer Juliette Binoche, horas antes de ser homenageada nos Prémios Europeus de Cinema..Foi há duas semanas em Berlim e a atriz francesa não escondia um sorriso de encantamento por este reconhecimento da Academia Europeia, precisamente num ano em que circulou pelos maiores festivais com A Verdade, de Koreeda, e Clara & Claire, de Safy Nebbou, este último nesta semana em estreia. E é precisamente neste drama psicológico que a atriz francesa brilha com uma rara intensidade, neste caso na pele de Claire, uma mulher de cinquenta anos que decide criar um perfil falso nas redes sociais onde dá pelo nome de Clara, uma jovem de vinte e quatro anos. Um perfil que chama a atenção de um jovem que mais tarde se torna a obsessão de Claire. O filme é uma exploração explícita aos perigos da realidade virtual dos nossos dias, criando também um diálogo interessante sobre o jogo social das atrações e preconceitos etários..Clara e Claire foi das boas surpresas do Festival de Berlim deste ano, tendo passado com algum alarido na secção secundária, Panorama. Uma prova de que o cinema do meio (longe de ser um objeto de cinema de autor mas também nos antípodas do blockbuster de indústria) francês ainda tem fôlego para algo fresco e com níveis de entretenimento exemplares. Mas verdade seja dita, todo o filme vive em função da presença tão luminosa como negra de Binoche, atriz sem receios de mostrar as marcas da idade e sempre interessada em ir mais longe nos seus retratos femininos..Talvez seja por isso que faz questão de frisar que, para se superar, o mais importante é estar aberta à vida: "Mais do que tudo, quero ser um ser humano. A Juliette Binoche atriz é coisa secundária na minha vida. Estou cá para viver a minha vida! Quanto mais me envolver na experiência humana e estar aberta à vida, às viagens, melhor para a atriz... Sempre gostei de observar e de saber o que acontece na vida dos outros. É assim que aprendo. Por exemplo, vim agora do Brasil e percebi que lá o povo ainda não perdeu a alegria. Nas favelas, é a alegria que os mantém vivos. Mesmo com todas as dificuldades e pobreza, quando cantam e dançam estão a resistir e a ganhar liberdade.".Na homenagem de Berlim, Binoche fez questão de dizer à imprensa que é partidária da questão do pagamento igual para atores e atrizes, mesmo percebendo que pela lógica da indústria tal é complicado: "O grande problema é o favorecimento dos papéis para os atores. Em Hollywood é tudo à base de heróis machos a disparar, embora também saiba que agora comecem a colocar mulheres como heroínas. Acham que isso torna a coisa mais feminista ou seja lá o que for.".Ao DN, Binoche abordou algumas questões de uma carreira que já lhe deu prémios importantes, como o Óscar em O Paciente Inglês ou o prémio de interpretação em Cannes 2010 por Cópia Certificada. Contou, por exemplo, não ter problemas nenhuns nas sequências de maior intimidade sexual: "Em A Insustentável Leveza do Ser e em Relações Proibidas fui eu a propor a coreografia das cenas eróticas - os homens, nisso, são muito tímidos. Lembro-me de que nem o Philip Kaufman nem o Louis Malle faziam a mínima ideia em como filmar o sexo! Mas as melhores cenas de sexo foram em High Life, de Claire Denis. Aí fomos as duas a criar aquilo tudo, foi tão divertido! O segredo é sempre confiar nos cineastas. Com a Claire sabia que podia expor-me de forma total, que ela nunca me iria deixar ficar mal.".Mas será que alguma vez perdeu a confiança de um cineasta? A resposta vem com um olhar fulminante: "Apenas uma vez, com o André Téchiné, em Alice e Martin. Tratava-se de uma cena em que não gostei nada da maneira como ele a rodou. Disse-lhe isso e ele pediu-me para aceitar e, se depois não gostasse, que a tiraria da montagem final. Pois bem, vi posteriormente uma montagem do filme com essa cena e continuei desconfortável. A verdade é que mesmo assim ele não quis saber. Aí senti-me deveras traída, fiquei muito zangada e liguei ao produtor, Alain Sarde, que depois tranquilizou-me e garantiu-me que o plano iria ser retirado.".Depois disso, Binoche nunca mais voltou a ser dirigida pelo grande Téchiné mas continua a gostar de confiar em realizadores e a querer trabalhar com os cineastas que a impressionam, um pouco como Isabelle Huppert, a rival que escolhe cineastas através de um apetite cinéfilo: "Continuo a ter um desejo de trabalhar com muitos cineastas. Mas no cinema há muito para além da vontade. Há cineastas que chegam até mim de forma misteriosa! Gosto de pensar que muitas vezes cruzo-me com este ou aquele devido a questões de alquimia... Nunca me ofereço a um cineasta, apenas digo que gostava de trabalhar com ele. Nunca forço nada, a coisa é sempre mais subtil....".Nos últimos tempos, a atriz tem apreciado muito os convites para falar com jovens atores em forma de masterclasses. Das recomendações que tem dado há sempre uma palavra que se repete: "Estou sempre a pedir para não deixarem de procurar. Um ator tem de estar sempre à procura... Além do mais, tem de ser implacável no ato de ser e de arriscar. Tudo isto sem nunca esquecer algo fundamental: ter prazer. Digo igualmente para voarem e nunca desistirem.".No fim, confessa-nos que para o futuro tem um desejo: fazer um filme com o tema dos migrantes: "Esse é um tema que me toca bem fundo no coração. Ainda ontem estive a ler dois guiões com essa temática, mas é um assunto muito complicado... O Haneke tem tentado, mas, na minha opinião, não tem sido totalmente bem-sucedido. O Lionel Baier também tem um argumento que aborda este flagelo, mas ainda não está lá. É necessário ser muito subtil. Cada vez que vejo pessoas a dormir na rua fico mesmo mal - o que hoje se passa no mundo é insustentável!