Um biomarcador para antever que doentes terão infeção grave de covid-19

Equipa do Porto coordenada pela investigadora Salomé Pinho quer criar uma forma rápida de perceber, no próprio momento do diagnóstico, como evoluirá a infeção pelo SARS-Cov-2 em cada doente. A ideia é poder intervir precocemente, e a expectativa é ter resultados já no fim de julho. <em>Este texto foi publicado originalmente no dia 24 de maio e faz parte de um lote de trabalhos relacionados com a covid-19 que o DN está a republicar.</em>
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Com a pandemia sem fim à vista - nesta altura ninguém sabe exatamente quando isso acontecerá, ou como - são muitas as frentes de batalha contra a covid-19. Cientistas de todo o mundo procuram perceber melhor o vírus e a infeção, e estudar novas formas de os combater e de tratar os doentes, e a portuguesa Salomé Pinho, que lidera um grupo de investigação no instituto i3S, na Universidade do Porto, é uma delas. O seu objetivo: desenvolver uma forma rápida de perceber, no momento do diagnóstico, como evoluirá a infeção para cada doente.

"Queremos responder a uma pergunta muito concreta: face à infeção, quem vai evoluir para uma forma mais grave da doença?", explica a investigadora ao DN. E sublinha: "O nosso objetivo é identificar um biomarcador que permita fazer, a partir de uma simples análise de sangue, um prognóstico precoce da evolução da covid-19."

As vantagens são evidentes. "Sabendo à partida que uma pessoa infetada acabará por ter uma forma mais grave da doença, é possível tomar decisões mais cedo, optando pelo internamento hospitalar para fazer a sua monitorização precoce e por uma terapia mais dirigida, com maior eficácia para o doente mas também para a gestão dos próprios recursos de saúde", sublinha a líder do grupo de investigação Immunology, Cancer and Glycomedicine do i3S.

O projeto, que já está a decorrer, e cuja conclusão está prevista para o fim de julho, foi um dos 66 que receberam financiamento - no valor de 30 mil euros - do programa especial da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) para investigação sobre a covid-19.

"O nosso parceiro é o Hospital de Santo António, no Porto, e estamos agora a recrutar os doentes, com a colaboração do professor Rui Sarmento, que dirige ali o serviço de infecciologia. Nesta altura já temos mais de uma dezena de doentes", adianta Salomé Pinho.

No total, os investigadores pretendem ter uma amostra de cem doentes, cujos dados compararão com os de outras cem pessoas saudáveis, para tirar conclusões robustas.

Salomé Pinho sabe bem o que procura - afinal é nessa área que trabalha há quase duas décadas. O objetivo é identificar os perfis específicos de glicanos, ou açúcares, que estão associados aos anticorpos - imunoglobulinas, na designação científica - produzidos pelo organismo em resposta à infeção. Neste caso, as imunoglobulinas produzidas no contexto da infeção pelo SARS-Cov-2.

"Sabemos de outras doenças inflamatórias que há perfis específicos destes glicanos associados às imunoglobulinas que indiciam uma evolução para estados mais graves das respetivas doenças. Para a covid-19 esses perfis ainda não se conhecem e nós queremos verificar quais são, para poderem ser usados como biomarcador", resume Salomé Pinho.

A ideia para esta investigação acabou por surgir naturalmente. "Há muito que trabalhamos nesta área. Tínhamos o conhecimento, os parceiros certos e as ferramentas necessárias, e face a um agente patogénico novo a questão colocou-se de imediato", conta Salomé Pinho.

Afinal é essa "a missão do cientista", reflete a investigadora. "Naquela altura estávamos em confinamento e fez-nos todo o sentido contribuir com conhecimentos que pudessem gerar novas terapias ou novas ferramentas para cuidar dos doentes."

Desbravar caminho

Tal como acontece noutras doenças inflamatórias, também para a covid-19 a resposta do sistema imunitário determina em grande parte a forma como a infeção acabará por evoluir.

"Nas outras doenças inflamatórias, a forma como estes anticorpos estão modificados por glicanos define a sua ação e determina se eles terão uma atividade mais neutralizante ou mais inflamatória em relação à doença. No caso da covid-19 esses perfis ainda não se conhecem e nós queremos perceber quais são", resume a investigadora.

"Se no momento do diagnóstico o médico tiver um biomarcador que consiga dizer que aquele doente vai ter um percurso mais grave de doença, isso permitirá uma melhor gestão da sua situação. Este dado contribuirá para melhorar um algoritmo de apoio à decisão clínica e terapêutica", esclarece.

Os investigadores farão uma colheita de sangue para cada doente para poderem determinar os perfis dos açúcares associados aos anticorpos identificados no plasma. Esse estudo, que será feito de uma só vez para o conjunto da amostra de cem doentes, estará a cargo de um grupo de investigação croata especializado nessa técnica, com o qual a equipa de Salomé Pinho colabora há anos.

Os doentes serão, entretanto, avaliados clinicamente em detalhe em dois momentos precisos: aos sete e aos 14 dias da infeção e, com base em toda essa informação, a equipa de Salomé Pinho fará no seu laboratório o estudo para relacionar todos os dados, de forma a determinar que assinaturas moleculares correspondem aos diferentes graus de gravidade da infeção pelo SARS-Cov-2.

"Do nosso trabalho com outras doenças, sabemos que esta é uma ferramenta clínica muito útil para a estratificação de risco", diz a investigadora do i3S.

Um biomarcador para uma doença nova

É muito ainda o que não se sabe sobre o SARS-Cov-2 e a covid-19. Afinal este é um vírus muito recente no convívio com os seres humanos. Foi apenas há pouco mais de cinco meses que o novo coronavírus saltou a barreira de espécies, a partir do seu reservatório natural, uma espécie de morcego - o processo não está ainda completamente esclarecido -, e passou a infetar humanos, mostrando-se invulgarmente eficaz na sua transmissão entre hospedeiros.

O desconhecimento sobre o novo vírus é grande, mas ele não abrange apenas o vírus. A sua interação com o organismo humano está igualmente cheia de zonas cinzentas, e o que determina a resposta de cada pessoa à infeção também tem a sua dose de mistério.

São muitas incógnitas. Quase meio ano depois de o novo coronavírus ter surgido na China, no entanto, há algumas coisas que os cientistas sabem. Uma delas é que a grande maioria das pessoas infetadas (cerca de 95%) tem apenas uma infeção ligeira, que pode até ser assintomática, embora não se saiba porquê.

Outro dado assente é este: 5% a 10% dos infetados desenvolvem formas mais graves da doença, que exigem hospitalização, muitas vezes nos cuidados intensivos, com necessidade de respiração assistida. E uma parte destes morre - a taxa de letalidade da doença ainda não está fechada, uma vez que se desconhecem os números reais de pessoas infetadas.

Sabe-se também que as vítimas mortais são na maioria pessoas com mais de 70 ou 80 anos, frequentemente com doenças crónicas. Aliás, abaixo dessas idades, quem sofre das mesmas patologias, como diabetes, problemas cardiovasculares e respiratórios, hipertensão ou obesidade, tem igualmente um risco acrescido de infeção mais grave de covid-19.

Mas depois há pessoas mais jovens e sem fatores de risco conhecidos que ficam gravemente doentes com este coronavírus, a maioria não por causa da infeção em si, mas devido a uma resposta exacerbada do seu próprio sistema imunitário, que danifica o organismo e pode conduzir à morte. Porque é que isso acontece?

Não existe ainda uma resposta, mas há várias hipóteses em cima da mesa. Isso poderá dever-se, por exemplo, a fragilidades metabólicas ou a vulnerabilidades genéticas, e há diferentes grupos que estão a estudar essas questões, incluindo em Portugal, como o DN já noticiou.

É o caso da professora e investigadora da Nova Medical School, da Universidade Nova de Lisboa, Conceição Calhau, que está a analisar o papel que os níveis baixos de vitamina D e as alterações na flora intestinal podem desempenhar no contexto desta pandemia, contribuindo para o agravamento da doença.

No Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), um grupo liderado por por Carlos Penha Gonçalves e Jocelyne Demengeot estão, por seu turno, a explorar a hipótese de existirem fatores genéticos que conduzem a uma doença mais severa ou, pelo contrário, assintomática, tanto na suscetibilidade individual à doença como na resposta imunológica do doentes.

Salomé Pinho pretende perceber como uma maior vulnerabilidade ao SARS-Cov-2 se manifesta na assinatura de açúcares associada aos anticorpos produzidos pelo organismo e, com isso, tenciona estabelecer uma forma expedita de identificar à partida os doentes em risco de infeção grave, para possibilitar uma intervenção médica mais precoce.

Do seu trabalho anterior para outras doenças, a equipa sabe que há assinaturas destes açúcares associados às imunoglobulinas que permitem prever uma maior gravidade das doenças, mas para a covid-19 isso é ainda uma incógnita.

"Há perfis que são mais expectáveis, mas não sabemos o que poderemos encontrar. Pode ser até que identifiquemos novos perfis nunca antes observados, que sejam específicos para esta doença, uma vez que ela é nova", estima Salomé Pinho. "Há aqui um potencial grande de descoberta, uma vez que estamos a lidar com mecanismos e uma patogénese que são recentes e ainda estão por compreender."

No final de julho se saberá. Deste estudo, o resultado mais imediato há de materializar-se num novo biomarcador que a curto prazo poderá fazer a diferença para os doentes. Mas, como sempre acontece na ciência, os dados hão de gerar novas perguntas e novas ideias para trabalho futuro. É isso, também, que a investigadora Salomé Pinho e a sua equipa esperam.

Este artigo faz parte de uma série dedicada aos investigadores portugueses e apoiada por: AbbVie

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