Inspetores do SEF acusados de homicídio querem ir já para julgamento
"Não gosto de requerer diligências inúteis que adiam problemas e não permitem que se faça justiça em tempo razoável. Este é um processo para deslindar em julgamento."
É assim que o advogado Ricardo Sá Fernandes, representante legal de Bruno Sousa, um dos três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) acusados do homicídio do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk a 12 de março no aeroporto de Lisboa, justifica o não requerimento de abertura de instrução. Uma opção comum aos outros dois arguidos, Luís Silva e Duarte Laja.
Esta opção foi também a dos outros dois arguidos, Luís Silva e Duarte Laja, que como Bruno Sousa estão em prisão domiciliária desde 30 de março.
Ainda mais lacónico, Ricardo Serrano Vieira, advogado de Duarte Laja - o inspetor que nas imagens das câmaras de vigilância do Centro de Instalação Temporária do aeroporto surge a encaminhar-se para a sala onde Ihor morreu empunhando um bastão extensível (arma de classe A, para a qual não tinha licença e que lhe vale também, como a Luís Silva, a acusação de "posse de arma proibida"), e que a acusação considera ter sido usada para o agredir - responde apenas que "não foi requerida abertura de instrução por questões de estratégia processual."
Já Maria Manuel Candal, que patrocina Luís Silva, opta por explicar um pouco melhor a decisão. "Penso que todos nós entendemos que o local certo para apresentar a nossa defesa seria a audiência de julgamento, pois é em audiência de julgamento que melhor fica assegurado o contraditório".
DestaquedestaqueA defesa não está apenas a "lutar " contra uma acusação deduzida pelo MP contra um arguido, mas também contra uma "opinião pública"
E acrescenta: "É por demais evidente que neste caso a defesa tem um papel particularmente difícil, pois não está apenas a "lutar " contra uma acusação deduzida pelo MP contra um arguido, mas também contra uma "opinião pública", que se foi cristalizando ao longo deste período, quanto àquilo que terá acontecido no aeroporto. Como sempre, porém, reafirmo a minha total confiança na justiça, nos tribunais e nos nossos juízes, que - tenho a certeza - julgarão este processo despidos se quaisquer preconceitos."
Também Oksana Homeniuk, viúva da vítima, optou por seguir diretamente para o julgamento, que já foi distribuído ao Juiz 10 do Tribunal Central Criminal de Lisboa e que, estando os arguidos presos, deverá ser marcado com celeridade..
No entanto, o seu advogado, José Schwalbach, considera que o facto de a diretora nacional do SEF ter assumido em declarações à RTP que Ihor foi torturado - nas palavras exatas usadas por Cristina Gatões, houve uma "situação de tortura evidente" - deveria implicar a extração de certidão para investigação autónoma desse crime, e de outros que possam estar indiciados no relatório da Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI).
Neste relatório, que foi conhecido já após a acusação, são propostos processos disciplinares a 12 inspetores e a uma funcionária administrativa do SEF, indiciando-se igualmente atos ilegais de vigilantes da empresa Prestibel, contratada pelo SEF para fazer a segurança do CIT - o local onde são detidos os cidadãos estrangeiros a quem é recusada entrada em território nacional (como aconteceu com Ihor).
"O facto de serem hoje assumidos crimes diversos dos que constam de uma acusação poderá justificar-se com o surgimento de novas provas que tenham chegado após a dedução da mesma", diz Schwalbach.
"A solução para isso passa pela extração da certidão desses elementos de prova - nomeadamente o relatório da IGAI - para que os mesmos possam ser investigados num processo autónomo, o que já aconteceu aliás com os indícios de tentativa de encobrimento: o MP extraiu certidão e a investigação corre em processo autónomo de falsificação de documentos, para o qual também pedimos a constituição de assistente."
É aliás a existência desse outro processo uma das razões pelas quais, explica o causídico, Oksana Homeniuk não pediu a instrução. A outra é que "quanto a estes específicos inspetores a assistente não tem dúvidas sobre os crimes em causa. Cremos é que existirão outros crimes e outros responsáveis - mas isso ainda está em investigação."
Podem os arguidos neste processo ser ainda acusados do crime de tortura? A penalista Inês Ferreira Leite é taxativa: "Neste processo que corre, o de homicídio, já não se pode acrescentar qualquer crime."
Quanto à abertura de outro processo, esta professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa tem dúvidas: "Pode haver um problema de ne bis in idem [a proibição de alguém ser julgado duas vezes pelo mesmo crime], uma vez que os factos relativos à tortura estão descritos no processo existente, não podem ser conhecidos noutro."
Ressalvando não conhecer a acusação, inclina-se para o facto de a "ausência de imputação do crime de tortura ter sido uma opção do Ministério Público."
Uma magistrada ouvida pelo DN tem opinião diferente. "Os factos da tortura são diferentes dos de homicídio, portanto não estamos perante uma violação do ne bis in idem."
O crime de tortura ou tratamento desumano ou degradante tem pena de um a cinco anos e é descrito no artigo 243º do CP: "Considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o ato que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave (...) com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima").
Na acusação aos três inspetores lê-se: "Aos arguidos (...) foi ministrada a disciplina de aspetos práticos de controlo de fronteiras, que inclui entre outros, o módulo de aplicação de algemas, bem sabendo os mesmos que ao algemarem o ofendido com os braços atrás das costas e deitado em posição de decúbito ventral provocaram naquele dores físicas e elevado sofrimento psicológico e dificuldades respiratórias, como aconteceu e que por essa razão poderiam causar-lhe a morte"; "agiram os arguidos (...) no exercício de funções policiais, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito de causarem graves lesões corporais no ofendido (...), sujeitando-o a um tratamento desumano (...)".
"Mesmo estando descritos esses factos na acusação", prossegue a magistrada citada, "continua a ser admissível uma nova acusação por tortura, embora sendo mais duvidosa. Não me choca porém: as circunstâncias dos factos são as mesmas, mas os factos rigorosamente não são. A tortura é censurável independentemente do homicídio."
Acresce que há a possibilidade de outras pessoas além dos atuais arguidos serem acusadas desse mesmo crime.
Quer do processo criminal quer do relatório da IGAI resulta que Ihor foi manietado com fita adesiva, o que é proibido pelas normas policiais e pode ser considerado, como afirmou à IGAI um instrutor do SEF, "tratamento desumano e degradante", além de não lhe ter sido dada oportunidade, uma vez que estava manietado, de urinar e defecar (quando morreu, de acordo com testemunhos, exalava um forte cheiro a urina).
Mais um motivo, crê esta magistrada, para que faça todo o sentido avançar com uma acusação autónoma pelo crime de tortura - que no seu entender deveria ser ainda junta, se possível, ao processo de homicídio.
Também o advogado Paulo Saragoça da Matta crê que pode ser extraída certidão do processo atual para serem investigados outros crimes.
"Pode ser o MP a fazê-lo ou o juiz durante o julgamento, se considerar estar perante indícios de outros crimes", diz o causídico, que foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados no triénio 2017/19.
Citaçãocitacao"Quem agrida alguém a ponto de lhe causar a morte horas depois, podendo esse resultado ser evitado caso a pessoa fosse socorrida, deve ser também acusado de omissão de auxílio"
E exemplifica: quem agrida alguém a ponto de lhe causar a morte horas depois, podendo esse resultado ser evitado caso a pessoa fosse socorrida, deve ser também acusado de omissão de auxílio.
O mesmo se aplica, aduz, a toda e qualquer pessoa que se tivesse dado conta do estado da vítima e não a tivesse auxiliado.
O que não deve acontecer, considera, é que os arguidos por homicídio sejam também acusados de tortura: "A ilicitude do ato de tortura já está consumida na qualificação do homicídio. Faz sentido que o MP não tenha acusado de tortura porque os atos a ela relativos e que estão descritos na acusação qualificam o homicídio, pela sua especial perversidade."
Já a alteração da qualificação jurídica dos atos imputados a arguidos durante um julgamento é possível, explica ainda Saragoça da Matta, mas com uma condição: que os crimes em causa não tenham uma sanção superior à dos crimes nos quais vêm acusados.
Na sequência das notícias do DN, esta semana, o Grupo Parlamentar do PSD requereu uma audição urgente do ministro da Administração Interna, para ser ouvido na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. O mesmo fez a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira.
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Em causa está apurar a fundo quais foram as diligências feitas pela Direção Nacional do SEF, encabeçada por Cristina Gatões, em relação à morte de Ihor. Até agora, recorde-se, a diretora nacional não disse quando, como e por quem soube da morte de Homeniuk.
O SEF, recorde-se, informou o MP que Ihor tinha morrido "acometido de doença súbita". Mas a IGAI não tem dúvida que no SEF houve encobrimento do crime e por isso propôs processos disciplinares a mais nove inspetores (além dos três acusados por homicídio) que "por ação ou omissão" contribuíram para esta morte.
Saber qual foi a ação ou omissão da direção do SEF é essencial para esclarecer até que nível na hierarquia pode ter chegado esse encobrimento, uma vez que até agora, apenas foram demitidos o diretor e subdiretor da Direção Geral de Fronteiras, mas só depois da operação da PJ em que foram detidos os três inspetores suspeitos de serem autores do homicídio.
Em abril, numa audição pedida pelo BE, Eduardo Cabrita dissera aos deputados que o SEF tinha instaurado "de imediato, no dia seguinte, uma averiguação interna" à morte do cidadão ucraniano - ou seja no dia 13 de março.
No entanto, no seu relatório a IGAI não faz qualquer referência a este procedimento, que deve ser obrigatoriamente instaurado sempre que há uma morte ou outra situação grave sob custódia policial.
O DN pediu à IGAI que esclarecesse a diferença entre a data do seu relatório e a que foi veiculada pelo Ministro. Solicitou ainda informações sobre o dito processo de averiguações: "A IGAI tem conhecimento desta averiguação? Porque não faz referência à mesma no relatório? Quais as suas conclusões? Como explicam que o SEF só tenha comunicado a morte à IGAI dia 18 de março?", foram as questões colocadas.
A Inspetora-Geral, juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira não responde a estas perguntas, mas a sua declaração não sustenta as palavras de Cabrita: "A IGAI confirma todas as menções que constam no relatório do inquérito. Sem dúvida que é objetivo da IGAI, no cumprimento da sua missão, apurar todos os factos relevantes para a descoberta da verdade, neste como em todos os outros casos que se encontrem no âmbito da sua competência", diz a magistrada.
Esta semana, quando questionado pelo DN sobre esta contradição de datas, o Gabinete do Ministro da Administração Interna optou por não clarificar. Negou que tivesse mentido ao parlamento, reagindo a essa acusação do PSD e reafirmou o que tinha dito aos deputados.
Citaçãocitacao "A dimensão e a gravidade desta situação, em que estão em causa contradições nas declarações por parte do Governo, nomeadamente no que respeita ao exercício das competências do SEF ao nível disciplinar, tem de ser cabalmente esclarecido"
Para os social-democratas, "a dimensão e a gravidade desta situação, em que estão em causa contradições nas declarações por parte do Governo, nomeadamente no que respeita ao exercício das competências do SEF ao nível disciplinar, tem de ser cabalmente esclarecido".
Mesmo que se venha a provar que a diretora do SEF cumpriu esta obrigação de abrir uma averiguação interna, a verdade é que até agora não se conhecem resultados da mesma.
Sendo assim, deverá ser também apurada a responsabilidade de quem executou (Gabinete de Inspeção do SEF?) e acompanhou (diretora nacional?) esta ordem, uma vez que não terá visto nada suspeito: quando, finalmente, o SEF comunicou à IGAI a morte de Ihor, a 17 de março (seis dias depois), já sabendo da investigação da PJ, não faz nenhuma menção a indícios de crime.