Do coronavírus à fronteira com a Índia: as frentes de batalha da gigante China
O coronavírus é uma frente de batalha recente para a China, mas a maioria dos combates em que o gigante asiático está hoje envolvido não são novidade. O que é novo é a diplomacia do Lobo Guerreiro (Wolf Warrior) que o presidente Xi Jinping tem defendido, mais assertiva e proativa, preparada para responder agressivamente à mínima crítica nas redes sociais. Conhecida pelo nome dos filmes nacionalistas de sucesso de 2015 e 2017, nos quais um herói militar chinês, ao estilo de Rambo, combate mercenários norte-americanos em África, esta é muito diferente da visão de Deng Xiaoping. "Observe os eventos que se desenrolam com imparcialidade; permaneça seguro na nossa posição; permaneça imperturbável diante dos desafios; esconda nossas capacidades e espere a nossa hora; evite reivindicar liderança enquanto avança na nossa causa", defendia o ex-líder. A nova diplomacia não se limita a palavras mais assertivas, exigindo também ações mais agressivas que deixam a China a combater em diferentes frentes.
O coronavírus foi identificado oficialmente em Wuhan, na China, em dezembro, mas Pequim tem sido acusada por vários países de ter escondido a doença que viria a tornar-se uma epidemia e infetar o mundo inteiro. Mais de 8,5 milhões de pessoas estão ou estiveram infetadas e mais de 450 mil já morreram de covid-19. As autoridades chinesas negam ter escondido a doença, assim como a acusação de que o vírus terá sido fabricado num laboratório, e alegam que informaram a Organização Mundial da Saúde a tempo.
Diante das críticas, a diplomacia do Lobo Guerreiro tem procurado acusar outros países de não terem eles feito o suficiente para travar a pandemia (a China não está no top 20 de contágios e há muito deixou de estar entre os que registam mais mortes). Mas, depois de várias semanas sem casos, um novo surto num mercado em Pequim obrigou a novas medidas de contenção, temendo-se uma segunda vaga de infeções no país. Na sexta-feira, foram detetados mais 25 casos, com o total a ascender a 183 desde a semana passada. O genoma do vírus mostra que a estirpe é semelhante a uma europeia, mas diferente da que está a circular agora, com os especialistas chineses a sugerir que tenha vindo em salmão congelado importado e ficado dormente.
As críticas ao coronavírus são apenas mais uma arma na frente de batalha entre a China e os EUA, cujo ponto mais alto tem sido a guerra comercial que começou em 2018. Alegando que os chineses tinham "práticas comerciais injustas", incluindo o roubo de propriedade intelectual, o presidente norte-americano, Donald Trump, começou a impor tarifas aos produtos importados da China. Pequim retaliou na mesma moeda e a economia mundial sofreu por tabela.
Além da guerra comercial, empresas norte-americanas foram proibidas de fazer negócios com a empresa de telecomunicações chinesa Huawei, foram colocadas novas restrições de vistos para os EUA a estudantes e professores do gigante asiático e a China chegou a ser apelidada pelo Departamento do Tesouro como "manipulador de divisas".
Em janeiro, após dois anos de negociação, foi assinado um acordo preliminar que, mesmo em plena crise do coronavírus, a China estará a cumprir, segundo o representante do Comércio dos EUA, Robert Lighthizer.
Mas Trump ainda na quarta-feira reiterou a ameaça de um corte total de relações. Isto apesar de, segundo as revelações feitas pelo ex-conselheiro de Segurança Nacional John Bolton, num livro que será publicado na terça-feira, o presidente ter pedido a Xi Jinping ajuda para ser reeleito, na cimeira do G20 no Japão, em junho do ano passado. Trump teria pedido à China que aumentasse as compras de produtos agrícolas norte-americanos, alegando que assim seria reeleito em novembro de 2020. As relações com a China prometem ser um dos temas da campanha eleitoral.
Os EUA têm sido também uma das vozes críticas de Pequim no que diz respeito a Hong Kong e à polémica lei de segurança que a China quer introduzir no território. O Governo chinês quer travar a repetição das massivas manifestações e cenas de violência do ano passado, desencadeadas pela tentativa de alterar a lei e tornar legal a extradição de pessoas para a China. Os protestos acabaram por alastrar, transformando-se em manifestações contra a interferência do Governo central na antiga colónia britânica.
A nova lei de segurança, que já foi aprovada pelo Parlamento chinês, prevê a punição de atividades separatistas, "terroristas", subversão ou "interferência" estrangeira em Hong Kong. Para os críticos será uma forma de acabar com as liberdades e os direitos fundamentais dos residentes e de acabar com a ideia de "um país, dois sistemas" que foi aplicada após a passagem da soberania da região do Reino Unido para a China, em 1997.
Para Pequim, a ilha de Taiwan (ou Formosa como os navegadores portugueses a batizaram) faz parte do seu território e um dia será possível recuperar a soberania, nem que seja através da força. No final da II Guerra Mundial, a então República da China assumiu o controlo da ilha, que se tornaria o refúgio do presidente Chiang Kai-shek e restantes nacionalistas do Kuomintang, derrotados em 1949 pelos comunistas de Mao Tsé-Tung. As relações entre ambos os lados tinham vindo a estreitar-se nos últimos anos, mas tudo mudou em 2016 com a eleição da presidente Tsai Ing-wen. Membro do nacionalista Partido Democrático Progressista, Tsai (reeleita já neste ano) opõe-se à ideia de "uma só China" - acordada entre o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang no Consenso de 1992. Desde a sua eleição que a China tem recorrido ao seu poder económico para levar vários países a cortar relações com a ilha (já só restam 14, além do Vaticano).
Nas últimas semanas, contudo, a tensão passou do campo económico para o militar, com aviões chineses a violar em pelo menos seis ocasiões o espaço aéreo de Taiwan - as últimas quatro nesta semana. Antes, estas situações eram raras. As manobras ocorrem depois de um avião militar norte-americano ter sobrevoado a ilha, com Pequim a queixar-se de que não foi pedida a sua autorização. Já em dezembro, antes das eleições, o porta-aviões chinês foi colocado no estreito que separa Taiwan do continente.
Todos os anos, bens no valor de biliões de dólares passam pelo Mar da China do Sul, que tem também escondidos importantes depósitos de petróleo e gás natural sob as suas águas. A região é por isso fonte frequente de tensão entre os vários vizinhos, que disputam a soberania de várias ilhas e ilhéus. A China reclama a maior parte do mar, tendo mesmo construído ilhas artificiais para reforçar o seu poder na região face ao Vietname, a Taiwan, à Malásia, às Filipinas e ao Brunei. Ao mesmo tempo, envia navios militares para a zona e destrói barcos de pesca que acredita estarem nas suas águas (a chamada Linha dos Nove Traços, que estabeleceria as fronteiras, remonta a 1947), irritando os vizinhos.
Navios militares norte-americanos fazem regularmente exercícios na zona, para irritação de Pequim. Os EUA acusaram recentemente os chineses de estarem a aumentar as ações na região, querendo tirar proveito do facto de os outros países estarem "distraídos" com a pandemia de coronavírus.
A fronteira entre a China e a Índia, na região dos Himalaias, nunca foi oficialmente desenhada e em 1962 os dois países estiveram em guerra por causa disso. Apesar do cessar-fogo, a situação nunca ficou totalmente resolvida, com escaramuças entre os dois lados em várias ocasiões. Mas, desde 1975, que não havia mortes a lamentar. Até esta semana, quando, após mais de um mês de tensão e várias brigas, chineses e indianos se envolveram num combate corpo a corpo em Ladhak, que resultou na morte de pelo menos 20 militares da Índia. A China não revelou oficialmente o número de baixas.
Pequim e Nova Deli procuram diminuir a tensão, mantendo abertos os canais militares e diplomáticos, apesar de se culparem mutuamente pelos mais recentes acontecimentos. A China diz que foram os soldados indianos que entraram no seu território, enquanto a Índia alega que foi por os chineses terem montado acampamento do lado indiano que desencadearam os problemas - alegadamente, Pequim não está contente com a construção de uma estrada por parte de Nova Deli junto à fronteira. Em resposta às mortes, há entretanto um boicote aos produtos chineses na Índia.
A Austrália anunciou nesta sexta-feira que foi vítima de um ataque informático realizado por um "ator ligado a um governo" que visou sistemas de computadores governamentais e empresariais ao longo de meses. O primeiro-ministro, Scott Morrison, não apontou o dedo à China, mas os media australianos fizeram-no por ele, já que esta não é a primeira vez que Pequim é tida como responsável de ataques semelhantes no país. O Governo chinês já negou a sua participação.
Os dois países estão envoltos em trocas de acusações depois de a Austrália ter pedido uma investigação internacional independente às origens da pandemia de coronavírus e ter denunciado a diplomacia chinesa por ser agressiva e desonesta. A China respondeu impondo tarifas à importação da cevada australiana (é mercado para mais de metade da produção) e suspendeu as importações de carne. Além disso, aconselhou os seus cidadãos a evitarem a Austrália como destino turístico ou de estudo, ameaçando retaliar ainda mais. Por fim, condenou um australiano à morte por tráfico de drogas.
As relações entre a China e o Canadá não têm sido as melhores desde uma tentativa falhada do primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, de tentar negociar em 2017 um acordo comercial entre os dois países. Mas tudo piorou com a detenção, em dezembro de 2018, da diretora financeira da Huawei e filha do fundador da empresa de tecnologia num aeroporto canadiano, a pedido dos EUA. Washington quer a extradição de Meng Wanzhou, que acusa de fazer negócios com o Irão e violar as sanções norte-americanas. Trudeau argumenta que o sistema de justiça canadiano é independente, mas Pequim acusa-o de colaboração com os EUA.
Nove dias depois (oficialmente não foi em represália), os chineses detiveram Michael Kovrig, um ex-diplomata, e Michael Spavor, um empresário, dois cidadãos canadianos. Ambos foram formalmente acusados nesta sexta-feira de espionagem e divulgação de segredos do Estado. Entretanto, outro canadiano que tinha sido condenado a 15 anos de prisão por tráfico de droga viu a sentença alterada para a pena de morte, com o tribunal de recurso a considerar que a sentença inicial tinha sido demasiado branda. No Canadá, enquanto decorre o processo de extradição, Meng está em liberdade sob fiança e proibida de deixar a sua casa em Vancouver.