Cientistas em modo covid-19 nas várias frentes da luta contra a pandemia
O Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (IMM), da Universidade de Lisboa, fechou há pouco mais de um mês - como quase tudo no resto no país. Os laboratórios estão encerrados, as experiências pararam e os investigadores estão em casa, em teletrabalho. Muitos telefonemas, muita internet, muitas ideias a fervilhar e muitas reuniões a desoras nas plataformas virtuais são agora o dia-a-dia da maior parte dos 400 investigadores do instituto. Mas no edifício, mesmo fechado, a azáfama não abrandou.
As experiências, os muitos projetos, as reuniões ou as simples trocas de ideias que marcavam a vida nesta casa de ciência cessaram abruptamente a 14 de março - mas o trabalho acabou por se reconverter. Em tempo de pandemia e de incertezas, de quarentena apertada e de isolamento social forçado, o IMM entrou em modo covid-19 e está a trabalhar em várias frentes para ajudar a encontrar soluções para a crise de saúde.
São coisas muito concretas as que estão ali a acontecer. Por exemplo, nos testes de diagnóstico da doença. Há já cerca de três semanas que o IMM está a fazer uma média diária de 200 testes de covid-19 - num dos dias chegou aos 375 -, depois de se ter organizado em tempo recorde para montar os procedimentos que agora são a rotina.
Já seria muito, mas a participação dos investigadores do IMM no esforço anti-pandemia é mais vasto, e está a intensificar-se e a ganhar novos rumos, que poderão fazer a diferença no que vai seguir-se nos próximos tempos no país.
É o caso dos testes serológicos para o novo coronavírus, que vão ser imprescindíveis para se avaliar a imunidade da população ao Sars-cov-2 e definir estratégias para a população poder sair gradualmente da quarentena.
A ideia surgiu entre vários grupos, o trabalho está a decorrer em colaboração com outras instituições científicas de Lisboa, no âmbito do consórcio Serology4COVID, que reúne, além do IMM, o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), o IBET- Instituto de Biologia Celular e Tecnológica, o Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Faculdade da Nova Medical School (CEDOC-NMS) e o ITQB Nova, ambos da Universidade Nova de Lisboa, e que já está a dar frutos, com um primeiro protótipo de teste serológico, que em breve começará a ser testado.
Mas há outros projetos a ganhar forma no IMM, para estudar o vírus e encontrar formas de o neutralizar.
Um deles é o biobanco para a covid-19, uma coleção de amostras biológicas de doentes portugueses de covid-19 que já arrancou, e que vai ser essencial para a comunidade científica investigar os contornos da própria pandemia em Portugal. Estudar o vírus, perceber como funciona, descobrir-lhe vulnerabilidades, e tentar identificar moléculas que o neutralizem são as linhas de força do trabalho.
"Num momento como este, redefinimos a nossa missão, e estamos a fazer a nossa parte como cientistas e como cidadãos para ajudar a resolver esta crise de saúde", diz Maria Mota, a premiada diretora-executiva do IMM, resumindo o estado de espírito dos investigadores do instituto.
Foi tudo muito rápido. Quando agora olha para trás - e foi só há pouco mais de um mês que tudo se precipitou -, Vanessa Luís quase se surpreende com a velocidade dos acontecimentos.
Em conversa com outros colegas, investigadores e médicos, Maria Mota tinha-se apercebido de que a escassez de testes de diagnóstico para a covid-19 ia ser um problema. "Fiquei a pensar nisso", conta ao DN. Mas não precisou de muito tempo para tomar a decisão que deu um novo rumo temporário ao trabalho no IMM.
A 12 de março, com o número de doentes já a aumentar a bom ritmo no país - o primeiro caso de covid-19 em Portugal tinha sido confirmado no dia 2 desse mês -, a diretora do IMM telefonou a Vanessa Luís, investigadora do seu próprio grupo, e pediu-lhe que coordenasse a participação do instituto no esforço dos testes para a covid-19. Bastou semana e meia para tudo ficar operacional.
"Falámos com os colegas do Hospital de Santa Maria, estamos no mesmo campus, e percebemos que tínhamos tudo o que era necessário no laboratório", lembra Vanessa Luís.
Em dia e meio, ela e outros dois investigadores, Miguel Prudêncio e Judite Costa, definiram em detalhe todos os passos e procedimentos, fizeram o primeiro teste, e acertaram em cheio - "pusemos o documento na nossa página na Internet para outros poderem usar, e agora já há mais institutos de investigação no país a fazer testes de diagnóstico à covid-19 com base no nosso protocolo", conta a investigadora.
Depois, sempre em ritmo acelerado, foi preciso montar tudo: validar o teste junto do Instituto Ricardo Jorge, adaptar o espaço no IMM, estabelecer as estações de trabalho e garantir a segurança máxima em todos os momentos, comprar os materiais e os reagentes, chamar voluntários para a "linha de montagem" - "as pessoas ofereceram-se de imediato", lembra a investigadora -, criar as equipas e os turnos, estabelecer as escalas e os horários, e ter refeições prontas para distribuir aos cerca de cem voluntários que diariamente se revezam ali desde há uma semana, para garantir uma média diária de duas centenas de testes.
As equipas que analisam os dados no computador e produzem o resultado estão em teletrabalho, a partir das suas casas.
Ao contrário dos kits comerciais, aqui o processo é todo manual. "É quase uma linha de montagem", assegura Vanessa Luís.
Há uma equipa que recebe as amostras e descontamina os contentores, outra que inativa o vírus, enquanto uma outra faz o registo da amostra, e nas estações seguintes é feita sucessivamente a extração de RNA (o material genético do vírus), a sua ampliação e a análise PCR, relativa a uma proteína específica, para se verificar (ou não) a presença do Sars-cov-2. O resultado fica pronto em menos de 24 horas.
"A 31 de março já estávamos a fazer as primeiras análises para o Hospital da Cruz Vermelha e para os lares, através de um protocolo que estabelecemos com o ministério do Trabalho e da Segurança Social, e isto durará o tempo que for necessário. Já fizemos até agora mais de quatro mil testes e podemos fazer mais de 300 por dia sem problema", garante a investigadora.
"Estou no grupo da Maria Mota, na área da malária, nunca tinha feito este tipo de trabalho, e de repente vi-me a coordenar 99 pessoas", reflete. Conseguimos fazer tudo de forma muito rápida, infelizmente pelas piores razões, mas isto mostra como a ciência e nós, cientistas, funcionamos e podemos intervir, encontrando soluções para os problemas que surgem. Afinal é para isso que somos treinados".
A maior dificuldade, reconhece, poderá ser, a prazo, a aquisição de reagentes ou dos materiais, como as zaragatoas, máscaras, óculos, luvas, batas ou outro equipamento de proteção para quem lida diretamente com as amostras. "Preparámos um bom stock, mas já estamos a fazer as encomendas com mais antecedência para não termos nenhuma falha. Não sabemos quanto tempo isto vai durar".
O virologista Pedro Simas, coordenador no IMM do laboratório que estuda os mecanismos de doença viral e a relação entre os vírus e os seus hospedeiros, tornou-se nas últimas semanas uma cara conhecida dos portugueses.
Nos jornais, nas televisões, em webinars, a par de outros cientistas do IMM e de outros centros de investigação, tem sido incansável a explicar o que a ciência já sabe (e ainda desconhece) sobre o novo vírus e a doença que em poucas semanas alastrou aos quatro cantos do mundo, causando dezenas de milhares de mortos.
"Uma função essencial dos cientistas é dar à sociedade e aos decisores o conhecimento necessário para que todos possam agir e decidir com a informação certa, para resolver os problemas da melhor maneira", diz Pedro Simas.
É isso que tem feito, respondendo nas suas intervenções públicas a dúvidas e explicando a ciência do vírus e da pandemia. Em Portugal, garante, fez-se o que era necessário: a quarentena e o isolamento social, que estão agora a dar frutos no abrandamento dos novos casos de covid-19.
"Portugal está de parabéns, e os cientistas também, estamos todos a fazer a nossa parte", garante. Mas não esconde a preocupação sobre uma eventual segunda vaga de infeção se as medidas de contenção forem afrouxadas antes de tempo ou de forma menos refletida."É preciso pensar no que segue", defende. "Temos de perceber como poderemos voltar a uma certa normalidade".
Ele próprio está a trabalhar para isso juntamente com a equipa alargada do consórcio Serology4COVID, na criação do teste serológico para o Sars-cov-2, que já há um primeiro protótipo.
A ideia, diz Pedro Simas, "é ter uma ferramenta que nos vai permitir saber quem já foi infetado e se tornou imune à doença, para se desenhar uma estratégia de libertação progressiva da população do isolamento social generalizado".
Passada esta primeira vaga, algures num futuro ainda incerto, "temos de garantir que não deixamos completamente de ter medidas de contenção, porque o risco é termos uma segunda vaga gigantesca, como a da Nazaré", alerta.
"O potencial pandémico do vírus mantém-se idêntico. Como estamos quase todos confinados, a maioria da população não foi infetada, e por isso não está imunizada".
É exatamente para saber quem já foi infetado e pode deixar o isolamento, garantindo ao mesmo tempo a proteção de todos os grupos de risco, que servirá o teste serológico desenvolvido pelo consórcio Serology4COVID.
"Começámos a trabalhar nisto ainda no início de março, aqui no IMM o projeto é coordenado pelo Marc Veldhoen, e o princípio base do teste está desenvolvido. Depois é preciso amplificá-lo e passar à fase de produção. Dentro de uma semana já poderão estar a ser testados alguns grupos prioritários, como profissionais de saúde, bombeiros ou funcionários de lares", admite Pedro Simas.
Essa, acredita o investigador, será a porta para uma nova fase de quarentenas intermitentes e seletivas, combinando o conhecimento sobre quem está imune com a proteção dos grupos de risco, na qual "toda a sociedade, a começar na família, passando por autarquias e outras instituições, terá de se envolver", sublinha.
"Não podemos estar à espera que os outros países resolvam o problema. Temos em Portugal a capacidade para o fazer e os cientistas estão a dar o seu contributo para isso".
Outra frente de combate, essa de mais longo prazo, que vai permitir conhecer a fundo o novo coronavírus, já está também em marcha no IMM, com várias estratégias, diferentes grupos e colaborações com outros centros de investigação.
Enquanto virologista, Pedro Simas faz questão de estar também presente nesta linha do combate. "O que faço no meu laboratório é estudar os mecanismos de doença viral e a relação entre os vírus e os hospedeiros, e vamos começar em breve a fazer esse trabalho em relação ao Sars-cov-2".
O programa de financiamento no valor de 1,5 milhões de euros, que a FCT, a Fundação para a Ciência e Tecnologia, disponibilizou para a investigação sobre o novo coronavírus e a covid-19, é uma boa oportunidade para pensar também em possíveis formas de neutralizar o vírus.
"Desenhámos um projeto em colaboração com o ITQB Nova para identificar e desenvolver fármacos que possam inibir a infeção por Sars-cov-2", explica Pedro Simas, sublinhando que existe no IMM "todo um trabalho e expertise anteriores que permitem avançar por aí".
Um dos investigadores que vai coordenar essa frente no IMM é o bioquímico Miguel Castanho que ali lidera o laboratório de Bioquímica do Desenvolvimento de Fármacos e Alvos Terapêuticos.
Na verdade isso já está a decorrer, através da colaboração que Miguel Castanho mantém com Diana Lousa, do ITQB Nova. A investigadora está a estudar a proteína S do vírus SARS-CoV-2 - a que lhe serve para infetar as células humanas -, recorrendo à microscopia eletrónica e à bioinformática, para simular em computador os efeitos que diferentes moléculas poderão ter sobre essa proteína, como o DN noticiou em março.
"O trabalho já se iniciou no ITQB, para se determinar a estrutura daquela proteína e das suas diferentes regiões, para se perceber como se move e funciona, para em seguida tentarmos conceber moléculas capazes de se ligarem a essa proteína, de forma a inibir a sua ação e impedir a infeção", explica Miguel Castanho.
Enquanto as simulações computacionais decorrem, o cientista prepara a fase seguinte: as condições de culturas celulares in vitro para poder testar os efeitos das moléculas que forem apontadas como eventuais inibidoras da proteína S do Sars-cov-2.
"Vamos usar vírus isolados a partir de doentes portugueses. Já temos amostras, é uma questão de semanas para termos o vírus isolado".
Depois é necessário ainda multiplicar os vírus para fazer as experiências com as moléculas. "Já trabalhamos com vírus que usam o mesmo tipo de proteína por isso temos razões para acreditar que algumas moléculas podem ser ativas em relação ao Sars-cov-2, mas só depois se verá, em ciência há sempre incerteza, às vezes as coisas não correm como esperamos", diz Miguel Castanho.
A par deste trabalho de mais longo prazo, a ideia é testar igualmente moléculas aprovadas para outras doenças, como o cancro, cujas dosagens e toxicologia já estão determinadas e validadas.
"Esperamos ver aí algum efeito, dadas as semelhanças de natureza química, mas vamos ver. Muito frequentemente as doses aprovadas para um determinado medicamento não são suficientes para se obter efeito noutras patologias, e pode ser esse o caso com o Sars-cov-2".
Fundamental para todo este trabalho que deverá estender-se pelos próximos meses e anos no Instituto de Medicina Molecular, e certamente noutros laboratórios e centros de investigação do país, vai ser o banco de amostras biológicas de covid-19 que há duas semanas arrancou no IMM, a partir de amostras de sangue dos doentes portugueses com covid-19 atendidos no Hospital de Santa Maria.
A coleção será integrada no Biobanco do IMM, que há oito anos recolhe e conserva amostras biológicas de diferentes patologias, no que é um precioso repositório para a investigação científica. E para a covid-19 a ideia de base é a mesma. O coordenador do biobanco, o também investigador Sérgio Dias, espera assim reunir pelo menos 200 amostras de sangue de doentes de covid-19.
"Esta é uma oportunidade única do ponto de vista médico e científico, e com base nesta coleção, com amostras de quem ficou infetado, e teve uma determinada resposta imunológica e um determinado desenvolvimento da doença, vamos poder fazer várias perguntas para perceber os mecanismos envolvidos na infeção", explica Sérgio Dias.
"A resposta imunológica que está subjacente a cada caso, com doentes que têm sintomas, outros que não têm e outros que morrem, ainda não é conhecida. Com esta coleção estamos a criar um recurso para que estas perguntas possam ser respondidas, não só por investigadores do IMM, mas por toda a comunidade científica", adianta Sérgio Dias, que faz questão de sublinhar que o projeto não seria possível sem o contributo "de muitas pessoas, incluindo as duas médicas, Catarina Mota e Susana Fernandes, que estão a coordenar no Hospital de Santa Maria a recolha das amostras dos doentes de covid-19".
Algumas destas investigações poderão ter os primeiros resultados dentro de semanas, ou meses. Mas outras vão estender-se no tempo e hão de com certeza continuar enquanto houver perguntas sem respostas acerca do novo coronavírus e da covid-19. Será assim, mesmo depois de controlada a pandemia, algures num futuro ainda incerto, quando tudo regressar à normalidade e no IMM a ciência puder voltar à diversidade que foi sempre a sua marca.
Nessa altura, o Sars-cov-2 e a covid-19 acabarão por tornar-se ali em mais uma área científica, a juntar a todas as outras. E isso será um bom sinal.