Cristina Tardáguila é brasileira e diretora adjunta do International Fact-Checking Network do famoso Instituto Poynter de investigação e formação em jornalismo, na Florida, EUA. A chamada verificação de dados é uma das áreas mais dinâmicas do jornalismo da atualidade - e, por causa do covid-19, tem estado ainda mais ativa na desmontagem de fake-news, desinformação, narrativas incorretas. Desta vez, é a doer, e nunca como agora a verificação de factos foi tão importante: "Pode salvar vidas", explica Cristina..A aliança #CoronaVirusFacts reúne 3.500 fact chekers em 70 países e mais de 40 línguas. A página da iniciativa reúne toda a espécie de verificações realizadas - desde o desmantelar de mentiras simples sobre a ligação entre o 5G e o vírus, até coisas tão complexas como a questão da cloroquina..Cristina Tardáguila está no meio desta operação e é uma das suas almas. Aos 40 anos, ela é uma das referências do jornalismo de verificação de factos, tendo começado no blog "Preto no branco", no jornal O Globo, no Rio de Janeiro, e fundado a famosa Agência Lupa - isto depois de uma carreira no jornalismo de investigação na Folha de São Paulo e revista Piaui. Cristina nasceu em Belo Horizonte e viveu praticamente a sua vida toda no Rio de Janeiro - estudou na Universidade Rey Juan Carlos, em Madrid, e tem um MBA da Fundação Getulio Vargas. Escreveu um livro sobre o roubo ao Museu da Chácara do Céu. e outro sobre as mentiras que os presidentes brasileiros contaram ao povo. .Estamos no segundo mês de crise de coronavírus. A saúde sempre foi uma área tradicional do aparecimento de muitas notícias falsas e desinformação. Com a covid-19 esta tendência acentuou-se? As notícias falsas sobre o coronavirus são universais. Rapidamente traduzidas de uma língua para outra e também transferidas de uma plataforma para a outra. No meio da pandemia da covid-19, aparentemente não há qualquer barreira capaz de segurar a expansão e o compartilhamento delas. O fato de sabermos muito pouco sobre o vírus e de estarmos em casa, de quarentena, altamente conectados às redes sociais colabora muito para que as notícias falsas ganhem força..Quais são os países/regiões mais afetados? Isso mudou em relação à tendência normal? Não é possível dizer, com base no trabalho dos checadores, qual o país ou região mais afetada por notícias falsas. A base de dados da aliança CoronaVirusFacts é atualizada diariamente e o volume de informação se altera minuto a minuto. Ao computar o volume de checagens, também temos que levar em conta a capacidade das unidades de verificação. Há países que são mais desenvolvidos nesse sentido e logo produzem mais checagens. Isso não quer dizer, no entanto, que eles têm mais notícias falsas..De onde vêm as notícias falsas do covid-19? Não dos locais habituais (politicamente, tipo Rússia e assim...) ou sim dos habituais? A aliança CoronaVirusFacts vai, em breve, lançar uma convocatória para que académicos de todo o mundo possam nos ajudar a responder esta pergunta. Neste momento, estamos mais focados em esclarecer o que é verdadeiro e o que é falso. Mas é curioso ver que todas as vezes que tentamos investigar a origem encontramos mais desinformação. Há correntes que garantem que as notícias falsas sobre a covid-19 foram produzidas pela China para encerrar os protestos de Hong Kong. Há outras que dizem o contrário. Que são criadas contra a China para fazer com que o país pareça incapaz de conter uma doença. Ainda há a disputa entre Rússia e EUA, fora aqueles que acreditam em teorias da conspiração sobre a indústria farmacêutica..Acha sérios os esforços do Facebook e das outras plataformas contra as notícias falsas? Não acha que esses esforços acabam por ficar muito resumidos ao mundo que fala inglês? As plataformas sempre podem fazer mais. No entanto, gostaria de pontuar que elas não seriam nada, não teriam impacto algum, se não houvesse pessoas utilizando os seus sistemas. Com isso quero dizer que é importante pressionar as plataformas para que se pensem em formas amplas de combater a desinformação, mas também que os cidadãos avaliam a forma como se comportam dentro das redes sociais. É urgente rever o comportamento do cidadão digital na internet. Estamos mesmo sendo responsáveis? Estamos mesmo compartilhando apenas aquilo que temos certeza de que é verdadeiro - baseado em fatos?Em que medida é que os órgãos de comunicação social estão a passar essas notícias falsas? Há muitas que entram no mainstream das notícias? Os meios de comunicação precisam ter muito cuidado neste momento. Precisam primeiro lembrar que todas as bases de dados sobre o coronavirus têm - no máximo - 3 meses de vida e que qualquer dado estatístico ou conclusão baseada nelas pode ser transitória. Segundo, é importante ter o senso ético muito aguçado num momento de pandemia. Não devemos expor pessoas nem famílias já que não sabemos o que o futuro guarda para esses indivíduos e, na internet, nada é realmente apagado. Também não devemos atuar como meros taquígrafos, reproduzindo discursos de autoridades. Se elas estiverem passando informações erradas, é hora de apontar o erro. Nada mais grave nesse instante do que deixar que nossos microfones sejam usados para dar voz a desinformadores..E fazer fact checking não é pior do que ignorar - porque atrai atenção sobre elas? Já foram feitos dezenas de estudo sobre isso e se comprovou que esse efeito não existe. O que não exige o fact-checker de escolher corretamente aquilo que deve verificar. As plataformas que são membros da International Fact-Checking Network são orientadas a utilizar metodologias que tem por princípio não dar oxigénio a notícias falsas que têm baixo grau de viralização. Todos os dias, os fact-checkers profissionais têm em seus computadores centenas de boatos para verificar. Priorizam aqueles que afetam mais pessoas e que estão circulando em mais plataformas. Ignorar esses conteúdos - ainda mais no caso do coronavirus - pode, aí sim - significar um risco muito alto. Inclusive de vida..Acha que os jornais tradicionais não fazem um suficiente trabalho de fact-checking? Não devia ser o processo de fact-checking parte do trabalho normal das redações - sem ser preciso haver entidades que o façam autonomamente? Trabalhei muitos anos em redações de jornais e revistas e posso responder com muita honestidade: fact-checking exige tempo, atenção e recursos humanos. As redações de grandes jornais não têm isso hoje em dia. É claro que há repórteres e editores cuidadosos, mas o serviço de checagem precisa ser sistemático e constante. Não deve existir apenas durante uma campanha eleitoral ou uma crise de saúde como a que estamos vendo agora. Aposto com veemência na criação de uma unidade de checagem dedicada (interna ou terceirizada) para atender aos jornais e garantir que eles realmente tenham esse serviço feito de forma séria e continuada..O que é preciso fazer para que as pessoas deixem de acreditar, basicamente, nessas tonterias? Veja bem: o objetivo do fact-checking não é mudar a opinião de ninguém. É simplesmente levar até elas os fatos. Queremos - primeiro - que as pessoas LEIAM/ESCUTEM/VEJAM os fatos. Se elas, depois, quiserem mudar de opinião, será uma segunda vitória. É muito importante que isso fique claro. O checador não trabalha para converter ninguém. O checador trabalha para apresentar informações baseadas nos melhores dados públicos possíveis de forma a melhorar o debate sobre determinado assunto. Acreditamos que a construção de uma sociedade passa pelo acesso a dados corretos. A informação é a unidade básica de toda decisão. Se você tem informação errada, possivelmente tomará uma decisão errada. Acho que o primeiro passo para avançarmos na luta contra a desinformação é termos as pessoas dispostas a ler, ver, ouvir os dados aportados pelos fact-checkers..Onde começa a literacia mediática - onde é melhor feita e com que resultados? Há excelentes exemplos pelo mundo. Nos EUA, MediaWise já treinou mais de 5 milhoes de jovens universitários. No Brasil, Agência Lupa está treinando - veja só - a Justiça Eleitoral e as comunidades carentes do Rio de Janeiro. Na Argentina, o Chequeado leva às escolas uma simulação de encontros da ONU para ensinar os jovens como checar discursos de políticos. A International Fact-Checking Network mantem um banco de dados mundial com cententas de iniciativas de media literacy pelo mundo. Chama-se EduCheckMap. Há conteúdo em diversas línguas - em diversos países..Três conselhos práticos para as pessoas se defenderem desse outro vírus da desinformação nesta altura? O conselho mais importante é duvidar sempre - de forma saudável. Isso quer dizer o seguinte: não importa de onde vem a informação, se do amigo, da mãe ou do namorado. É preciso verificar. Depois saber que nas redes sociais, todos somos repórteres. Se numa notícia não somos capazes de localizar informações básicas como: quem manda isso? de onde isso vem? quando foi escrito/gravado? por que agora? e qual a fonte citada? é melhor não repassar adiante. Por último, vale lembrar que a aliança CoronaVirusFacts já colocou na internet sua base de dados com mais de 1.500 checagens feitas. É muito provavel que uma notícia falsa sobre o coronavirus que você receba já esteja lá. Vale visitar o site: https://poy.nu/alliance.É brasileira. A resposta à covid-19 no Brasil tem levantado muitas dúvidas, e são sobretudo no campo da desinformação. Será que Bolsonaro - um produto e um criador de fake news - vai sair fragilizado dessa situação? Ao que tudo indica, Bolsonaro se isola no mundo como o único covid-denier. Até mesmo Donald Trump estendeu para 30 de abril o prazo de quarentena nos Estados Unidos. Ao que parece, ao defender a saúde económica do Brasil, o presidente Bolsonaro se esquece da saúde dos cidadãos... O que é uma pena. Tenho lido uma frase nas redes sociais que me parece coerente: "Falidos podem se recuperar. Finados, não". Nos últimos dias, muitas vozes que o ajudaram a se eleger criticaram seus insistentes passeios públicos e o discurso contra o isolamento. Há vozes dissonantes até mesmo dentro do governo. Vamos continuar observando..Como tem observado as últimas boutades dele? Ir contra tudo que a OMS, o CDC americano e todos os governos sérios do mundo sugerem num momento como este mostra indícios de burrice. Nós, fact-checkers, estamos acostumados com grupos que negam fatos. Os que dizem que a terra é plana, os que negam a importância das vacinas... Mas, neste momento de pandemia, ver um político incitar o fim do isolamento é algo que vai além. É um movimento irresponsável..Como é que ele é igual/ diferente de Trump durante esta epidemia? Há uma diferença importantíssima. Trump está em campanha. Precisa tomar cuidado com o que fala e com o que decide. Bolsonaro não. Nesse sentido, vemos o presidente brasileiro mais livre, correndo menos riscos..Como é que o jornalismo vai sair desta epidemia - em cacos, ou reforçado? O coronavirus deu ao jornalismo uma chance de ouro. E é preciso saber usá-la. É hora de os jornalistas reverem os seus processos, analisarem a forma como produzem notícias, ajustarem seus graus de transparência, apostarem em checagem para, de uma vez por todas, recuperarem a credibilidade que estavam perdendo. Temos o mundo parado, dentro de casa, disposto a consumir notícia de qualidade. Temos cidadãos temendo notícias falsas. Então juntemos as nossas forças para entregar conteúdos robustos. Vamos mostrar que somos indispensáveis ao bom funcionamento do planeta. Que os jornalistas são profissionais importantíssimos - assim como médicos e enfermeiros. Que sem nosso trabalho, o mundo não saberia o que está acontecendo lá fora. Não podemos perder esta chance de retomar leitores, de mostrar que o jornalismo é peça fundamental do dia a dia do cidadão..Há muitos órgãos pequenos já em grandes dificuldades - isso vai ser mais um caso de "winner takes all"? Acho que ainda é muito cedo para fazermos essas previsões. Vamos aguardar um pouco mais?Muitos dos projetos de fact-checking não têm fins lucrativos. Esse será um modelo a vingar no futuro - ou a crise vai afetar também essa área de investimento? Na verdade, esse cenário está mudando. A última pesquisa feita com os membros da IFCN mostra que já quase 50% dos fact-checkers são for-profit. Ou seja, há dinheiro entrando (e bastante) no mundo da checagem. Estou nesse universo desde 2013 e posso dizer que não vi nenhuma plataforma de verificação fechar por problemas financeiros - o que é ótimo. Acho que 2021 será um ano muito dificil, de recessão, para todos. Mas vejo um colchão bem razoável para os fact-checkers.Qual foi a mentira mais estúpida que leu sobre o coronavírus? Nossa! Várias! Li coisas muito perigosas: beber água sanitária cura coronavirus (EUA), tomar banho de urina de vaca (Índia), helicópteros militares estão desinfetando cidades de noite (Itália), chineses em quarentena estão comendo bebês (Espanha), sangue da raça negra não se contamina (Nigéria), quem se converte ao Islã não pega covid (Indonésia).... Fica o convite para dar uma olhada na base de dados da CoronaVirusFacts Alliance- https://poy.nu/alliance