De voluntária nos testes ao estudo dos mistérios moleculares da covid. "Estou feliz por ter ajudado numa fase crítica"

Sílvia Costa, investigadora do Instituto Gulbenkian de Ciência, esteve mais de dois meses como voluntária a trabalhar nos testes de diagnóstico de covid-19 no Hospital Egas Moniz. Agora regressou à base e vai começar a estudar os segredos moleculares do SARS-CoV-2

A realidade estava a mudar todos os dias a uma velocidade incrível e Sílvia Costa não precisou de pensar muito para tomar a decisão que iria mudar radicalmente o seu dia-a-dia, pelo menos durante uns tempos. Face à situação crítica que então se vivia no país, com o número de novos casos de covid-19 praticamente a duplicar todos os dias em meados de março, a jovem investigadora do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) não hesitou.

Tinha o conhecimento e o treino certos, as atividades no IGC, à semelhança do que estava a acontecer por todo o lado, tinham parado, e ela decidiu voluntariar-se para trabalhar nos testes de diagnóstico ao coronavírus no Hospital Egas Moniz.

Esteve lá até ao fim de maio, a vestir a pele de técnica num laboratório com biossegurança de nível 3, o que obriga a usar fatos protetores estanques, máscaras, óculos e luvas durante muitas horas seguidas. Ali integrou uma equipa, fez turnos de 12 horas e só agora, em junho, está de regresso ao IGC.

Foram quase dois meses e meio de trabalho "duro, intenso e cansativo" no Laboratório de Microbiologia Clínica e Biologia Molecular do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, no Hospital Egas Moniz, mas a jovem investigadora, de 35 anos, não podia estar mais satisfeita com a experiência, que não esquecerá tão cedo.

"Estou muito feliz por ter contribuído para os testes de diagnóstico, e por ter ajudado numa fase crítica, e ao mesmo tempo pude testemunhar o esforço dos técnicos que estão na linha da frente, no laboratório, a fazer este trabalho, que ainda não está a abrandar", conta ao DN.

Agora, de volta ao instituto, onde há sete anos faz investigação sobre os mecanismos moleculares da replicação e transmissão do vírus da gripe e sobre os processos que isso desencadeia nas células, no grupo liderado pela investigadora Maria João Amorim, Sílvia Costa prepara-se para mergulhar no estudo dos mistérios moleculares do SARS-CoV-2, que por força das circunstâncias se tornou tão familiar para ela.

"Vamos estudar no coronavírus os mesmos mecanismos que temos estado a investigar no vírus da gripe", explica. "Sendo o nosso um grupo de virologia, temos as ferramentas e o conhecimento necessários, e por isso faz todo o sentido que ajudemos a compreender o que ainda não se sabe sobre este vírus", sublinha a investigadora. "Estamos agora a montar os projetos e deveremos iniciar as experiências dentro de duas semanas", adianta.

Vamos estudar no coronavírus os mesmos mecanismos que temos estado a investigar no vírus da gripe.

É uma preparação morosa e pensada ao pormenor, e não apenas no planeamento do próprio projeto. "Vamos trabalhar com o vírus purificado, na forma contagiosa, temos de garantir a segurança, e estamos a preparar isso."

A ajuda da comunidade científica nos testes de diagnóstico

Em março, quando os primeiros dois casos de covid-19 foram confirmados em Portugal, no dia 2, percebeu-se rapidamente que as coisas iriam complicar-se - o percurso da pandemia, que surgiu na China no final de 2019, e que estava então a alastrar muito depressa em vários países da Europa, como Itália, França ou Espanha, não deixava grandes dúvidas. Responder à necessidade de fazer testes de diagnóstico suficientes para identificar e isolar com rapidez os casos de infeção, de forma a conter o mais possível os contágios, tornou-se um dos grandes desafios, e a comunidade científica percebeu logo que podia dar uma preciosa ajuda.

A diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (IMM) da Universidade de Lisboa, Maria Mota, foi uma das que deram o pontapé de saída. Em conversa com outros colegas, investigadores e médicos, a cientista tinha-se apercebido de que a escassez de testes de diagnóstico no país ia ser um problema e não quis ficar de braços cruzados, como contou ao DN, em abril. Afinal, no seu dia-a-dia de trabalho, os investigadores na área da biomedicina usam as mesmas técnicas e os mesmos reagentes na base dos testes de diagnóstico para o coronavírus. Havia ali uma oportunidade.

Definido, testado e validado um protocolo para a realização dos testes, o IMM foi o primeiro centro de investigação em Lisboa a juntar-se ao esforço de testagem para a covid-19.

No sul do país, na mesma altura, o Algarve Biomedical Center (ABC), uma parceria entre o Centro Hospitalar Universitário do Algarve e a Universidade do Algarve, dirigido pelo médico, professor e investigador Nuno Marques, iniciou também os testes de diagnóstico para a covid-19. Seguiram-se muitos outros, por todo o país.

Neste momento, são 21 os centros de investigação ligados às universidades, institutos politécnicos e fundações que estão a participar neste esforço de testagem, no que se revelou um contributo decisivo para a forma como Portugal conseguiu lidar com este primeiro embate da pandemia - pelo menos para já.

"Conseguimos criar esta rede e até à semana passada, os centros de investigação já tinham feito cerca de cem mil testes de diagnóstico para a covid-19", adianta Nuno Marques, que coordena a informação sobre a testagem para a covid-19 desta rede nacional de centros de investigação. Em Portugal, já se realizaram mais de 900 mil testes de diagnóstico no âmbito da pandemia.

"Esta participação voluntária da comunidade científica, numa situação de crise de saúde como esta, é algo único, que nunca vi antes, e que vai continuar", garante o médico e investigador.

Uma rotina completamente nova

No IGC, um dos 21 centros de investigação que participam nos testes de diagnóstico para a covid-19, a resposta também foi célere. Logo em meados de março, a diretora do instituto, Mónica Bettencourt-Dias, mobilizou um debate sobre o contributo do instituto no contexto da pandemia. E dali nasceram uma série de ideias para estudar o coronavírus como o DN já noticiou.

Além dos testes de diagnóstico, surgiu a hipótese de sequenciação de genomas do SARS-CoV-2 para estudar as suas mutações, o desenvolvimento de um teste serológico no âmbito de um consórcio que inclui outras quatro instituições de investigação da região de Lisboa, entre as quais o IMM ou o ITQB-Nova, da Universidade Nova de Lisboa, ou ainda o estudo das vulnerabilidades genéticas dos doentes face ao coronavírus, que podem fazer a diferença entre uma infeção benigna ou fatal.

O teste serológico para avaliação da imunidade da população já está, entretanto, a ser utilizado, e os restantes projetos estão a decorrer.

"Quando a pandemia começou, o IGC avaliou a necessidade de ajudar nos testes de diagnóstico e no final de março formou-se um grupo de cerca de 80 investigadores voluntários. Eu decidi ir para o laboratório no Hospital Egas Moniz ", resume Sílvia Costa.

Bioquímica de formação - fez a licenciatura na Universidade do Porto - e doutorada em parasitologia, também pela Universidade do Porto, a investigadora sentiu que a sua colaboração podia ser uma mais-valia no laboratório hospitalar.

"Tinha o conhecimento da técnica e estava familiarizada com o trabalho num laboratório com biossegurança de nível 3, porque durante o doutoramento trabalhei com agentes patogénicos que exigiam esses procedimentos", lembra. "Na última semana de março tive uma fase de treino, porque as rotinas de trabalho são diferentes das que usamos num laboratório para a investigação, mas não foi difícil a adaptação".

Iniciou o trabalho a 1 de abril e o seu dia-a-dia mudou por completo.

Integrada numa das equipas, "num dia fazia o turno de dia, das 8.00 às 20.00, no dia seguinte o da noite, entre as 20.00 e as 8.00, a que se seguiam três dias de descanso, e depois voltava ao princípio. O turno da noite é mais difícil, porque exige mais esforço de concentração", conta a investigadora.

Em cada turno de 12 horas, a equipa processava diariamente entre 120 e 150 amostras, o que, feitas as contas, dá uma média de 300 diárias para um laboratório que labora em contínuo, e que recebe amostras do próprio Hospital Egas Moniz, mas também de Santa Maria e de São Francisco Xavier.

"Chegava, equipava-me e começava o trabalho. Fazíamos a triagem consoante a urgência e depois processávamos as amostras", conta Sílvia Costa.

A sua vida pessoal também sofreu uma alteração nas rotinas, desde logo por causa dos horários. "Mas como vivo sozinha não tive outros constrangimentos", diz.

O balanço, terminado o voluntariado, não podia ser mais positivo. "Penso que dei um bom contributo nestes quase dois meses e meio naquele laboratório, e também tive oportunidade de aprender. Este é um conhecimento que fica para o futuro", afirma a investigadora. E sublinha: "Foi muito gratificante ter ajudado numa fase tão crítica, e os técnicos de lá também gostaram da minha participação."

De regresso à bancada do seu próprio laboratório, agora para estudar o coronavírus que tão abruptamente mudou as nossas vidas, Sílvia Costa observa como a pandemia também acabou por pôr em evidência o papel fundamental dos cientistas: a solução para esta crise terá de vir do conhecimento que os cientistas conseguirem produzir sobre o vírus, a doença e as formas de os combater, com medicamentos e uma possível vacina.

"Com esta pandemia, fica também patente que os investigadores e o seu trabalho têm um valor que a sociedade em geral não vê, nem compreende, porque muitas vezes o que fazemos só tem resultados a longo prazo", nota a investigadora. "Nenhuma sociedade estava preparada para uma situação destas, mas a investigação básica sobre o vírus e a doença vai ajudar a encontrar soluções, e pode até dar indicações para futuras pandemias", conclui.

Este artigo faz parte de uma série dedicada aos investigadores portugueses e apoiada por abbvie.pt

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