O homem que falhou a Casa Branca mas ganhou um Óscar e o Nobel da Paz

Nos tempos que correm é impossível não recordar a forma notável como aceitou os resultados das eleições presidenciais de 2000, após a sua derrota por pouco mais de 500 votos, evocando a esse respeito a unidade do povo americano e a força da democracia americana e das suas instituições", comenta sobre Al Gore o historiador Luís Nuno Rodrigues, referindo-se à forma como o vice-presidente, e candidato democrata, acatou a decisão do Supremo Tribunal (por 5-4) que deu a vitória a George W. Bush, pondo fim à recontagem na Florida. Implícita na observação está, pelo contrário, a teimosia do presidente Donald Trump em aceitar a derrota perante Joe Biden.

Acrescenta o diretor do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE que Gore "soube depois descobrir um novo rumo para a sua intervenção enquanto cidadão, tornando-se uma das mais reconhecidas vozes em defesa de causas ambientais. Na verdade, tratava-se de um interesse que nutria desde o início da sua carreira política no Congresso, em meados dos anos de 1970. Mas foi após o seu afastamento da vida política que abraçou com vigor e com entusiasmo a causa do ambientalismo. Em 2006, foi lançado o documentário An Inconvenient Truth, que destaca bem aquelas que foram as suas prioridades e as suas chamadas de atenção, que, nos dias que correm, estão cada vez mais na ordem do dia". O documentário valeu um Óscar; o ativismo pelo planeta, o Nobel da Paz de 2007.

Estive nos Estados Unidos a fazer reportagem para o DN sobre as eleições de 2000 e, antes de ir para West Palm Beach testemunhar a recontagem, assisti em Nashville ao momento na noite da votação em que Gore decidiu manter-se na luta, e isso durou mais um mês. Faltou-lhe no final mesmo a Florida para ser eleito, mas tivesse ganho no Tennessee, o seu estado, e teria sido mesmo o sucessor de Bill Clinton. A América teria então possivelmente estado no Protocolo de Quioto e o Acordo de Paris de 2015, assinado por Obama e rasgado por Trump, seria um corolário de uns Estados Unidos empenhados no combate ao aquecimento global ao mais alto nível.

Embora nascido em Washington, em março de 1948, Gore é de facto um filho do Tennessee, que o seu pai representava no Senado, e antes na Câmara dos Representantes. Oriundo de uma família progressista do Sul, cujos antepassados cobram com quatro séculos de América, Gore estudou nas melhores universidades (Harvard e Vanderbilt) e mostrou coragem ao não tentar escapar ao recrutamento para o Vietname em 1971, apesar de ser contra a guerra, tal como o pai. Foi repórter para um jornal do exército.

De volta aos Estados Unidos, fez do Tennessee a base para uma carreira política idêntica à do pai. Foi congressista e depois senador. Casou-se com Tipper pelo meio e tiveram três filhas e um filho. O divórcio ocorreu em 2010, uma década depois da polémica eleição perdida (teve mais votos populares do que Bush filho, mas perdeu no Colégio Eleitoral).

Ambicionava ser presidente, mas aceitou ser número dois de Bill Clinton em 1992. Uma dupla de sucesso, apesar de as idades semelhantes (casa dos 40) e de virem dos vizinhos Arkansas e Tennessee contrariarem a lógica habitual dos candidatos a presidente e vice, a complementaridade. Clinton era, porém, de origens bem mais humildes, criado por avós com uma mercearia num fim do mundo chamado Hope.

A década de 1990 foi de crescimento económico para os Estados Unidos e de liderança mundial sem rival (a União Soviética desintegrara-se um ano antes da eleição de Clinton-Gore). Nada indicava que o filho do antigo presidente George Bush poderia impedir Gore de suceder a Clinton.

O fim foi afinal um novo início, como o historiador Luís Nuno Rodrigues tão bem destacou. Viriato Soromenho-Marques, professor de Filosofia na Universidade de Lisboa e respeitada voz da causa ambientalista, recorda exatamente essa reconversão (coerente) do governante em ativista: "Depois da derrota presidencial em 2000, decidida por um polémico acórdão do Supremo Tribunal dos EUA que aceitou a duvidosa vitória de George Bush, Jr. na Florida, por uma mão-cheia de votos, o percurso de Al Gore não deixou de o destacar como figura pública na área do combate à crise ambiental e climática. Penso que podemos falar em duas fases: uma primeira de ascensão e apogeu e uma segunda de relativa estagnação. Na primeira fase, Al Gore foi um verdadeiro motor individual na resistência da consciência ambiental, nos EUA e no mundo, contra todas as forças que querem lançar um véu de esquecimento sobre a crise existencial que nos está a conduzir como civilização a um beco sem saída. O seu documento e livro de 2006, Uma Verdade Inconveniente, tive um impacto planetário, levando-o em 2007 a ganhar o Óscar para o melhor documentário, e a partilhar o Prémio Nobel da Paz desse ano com Rajendra Pachauri, em representação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas. Depois disso, a estrela de Gore, embora sem se apagar, nunca mais brilhou com tanta intensidade. O conflito de interesses, entre as suas duas facetas, de ambientalista e empresário, não tem sido poupado pelos seus numerosos inimigos. A verdade, contudo, é que desde o seu sucesso editorial de 1992, A Terra à Procura de Equilíbrio, ninguém pode acusar Gore de falta de coerência na sua ação em prol da prioridade absoluta das políticas de ambiente e clima."

Em 2018, Gore ainda se reuniu duas vezes com Trump em Nova Iorque, na Trump Tower, para tentar convencer o presidente republicano a não desistir do Acordo de Paris, esperança para a humanidade. Mas falhou. Agora é em Biden que Gore aposta para fazer a América se juntar de vez aos países que procuram salvar o planeta. Certamente o novo presidente saberá ouvi-lo.

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