Foi por um impulso de curiosidade que tudo começou, logo em meados de março. Habituada a fazer modelos estatísticos e a transformar dados e números em mapas coloridos que mostram distribuições espaciais e dispersões geográficas, Maria João Pereira lembrou-se de olhar para os dados da pandemia em Portugal através dos seus modelos. "Naquela altura o país parou e fomos todos para casa", lembra a investigadora do Centro de Recursos Naturais e Ambiente (Cerena) do Instituto Superior Técnico, onde é também professora. "Mas nós somos investigadores, estamos sempre a questionar-nos e não conseguimos estar parados", ri-se..A ideia era evidente para quem, como Maria João Pereira, trabalha em estatística espacial e gosta de ver números traduzidos em mapas de várias cores. Tratava-se então de pegar nos dados divulgados diariamente pela Direção-Geral da Saúde (DGS) sobre os casos de covid-19 no país e tratá-los de forma a obter mapas da sua distribuição geográfica. Mas a investigadora, que é também a atual coordenadora do Cerena, não se ficou por aí..Conjugando o número de casos diários com o de habitantes em cada concelho conseguiu criar um modelo para produzir mapas coloridos de risco de contágio pelo SARS-CoV-2 para cada concelho, contemplando a incerteza associada a esse risco. Para além disso, o modelo dava ainda a dimensão do fenómeno como um contínuo no espaço, reproduzindo de forma gráfica a natureza do próprio fenómeno de contágio, que não conhece fronteiras - neste caso, as dos concelhos..O que tinha começado quase como uma brincadeira acabou por se tornar rapidamente num trabalho de todos os dias, que produziu e publicou, no site do Cerena, mapas de risco para a covid-19 em Portugal continental entre 1 de abril e 1 de junho..A experiência acabou também por dar origem a um artigo científico, que foi publicado em julho na International Journal of Health Geographics, e que mostrou a validade, e utilidade, dos modelos usados na estatística espacial na produção de mapas atualizados do risco geográfico da pandemia que se apoderou do mundo..Depois disso, e com base no modelo criado pelos investigadores do Cerena, houve grupos da Bélgica, do Brasil e da Austrália que também produziram mapas semelhantes para os respetivos países..Era preciso, então, ir mais além. E foi exatamente isso que aconteceu..Aproveitando o segundo concurso lançado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) para financiamento de projetos em covid-19, a coordenadora do Cerena propôs-se produzir com a sua equipa um modelo da dispersão geográfica da covid-19 em Portugal mais fino, capaz de permitir uma avaliação de risco mais detalhada em tempo real, e de funcionar como apoio à decisão dos profissionais e decisores na área da saúde. Em junho foram conhecidos os resultados do concurso, e Maria João Pereira ganhou um financiamento de 38 mil euros para avançar..O projeto SMOCK, de Spatial Modelling for Mapping Covid-19 Risk, está agora a decorrer em boa velocidade: "Estamos a trabalhar num ritmo acelerado", garante a investigadora. "O objetivo é termos os mapas de risco operacionais em janeiro, mas se o trabalho estiver concluído antes, será ainda mais cedo", estima..Na prática, o projeto dará origem a "um conjunto de produtos que vão permitir fazer um retrato diário da pandemia e quantificar os riscos em termos geográficos para apoio à decisão dos epidemiologistas, profissionais e decisores na área da saúde", explica Maria João Pereira. "O que tínhamos com o nosso trabalho anterior, que fizemos por nossa iniciativa, eram dados acumulados, um historial da pandemia sob a forma de mapas. Agora queremos transformar isso numa ferramenta de apoio à decisão, consoante os níveis de risco em cada dia", sublinha..Se essas novas ferramentas já estivessem disponíveis agora, num momento em que a segunda vaga de covid parece estar já a rolar a bom ritmo em Portugal, com o número de novos casos diários acima de um milhar, como poderiam ser usadas essas novas ferramentas de trabalho?."A nossa ambição é que, no final, o produto do nosso trabalho ajude a tomar decisões sobre o que deve ser feito num determinado momento e em cada local, visto que os mapas vão permitir compreender mais rapidamente e com muito detalhe a dinâmica territorial da pandemia ", responde Maria João Pereira. Sobre medidas concretas, porém, a investigadora prefere não se pronunciar. "Quais as medidas a aplicar, por exemplo, num local onde haja um maior número de contágios, não sei, não sou epidemiologista, essa não é a minha área", sublinha..É justamente por isso, aliás, que este é um projeto a várias mãos, em estreito diálogo com os profissionais de saúde. "Já estamos a fazê-lo, neste momento. Já estamos a explorar os mapas em conjunto, para percebermos qual é a melhor forma de os profissionais de saúde e os decisores poderem utilizá-los no futuro"..No SMOCK estão envolvidos, além de quatro investigadores do Cerena, também uma equipa do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), que é ali coordenada por Carlos Dias, e mais dois grupos do Instituto Superior Técnico: um do Centro de Estudos de Gestão (CEG-IST), sob coordenação de Mónica Oliveira, que tem a seu cargo a gestão da comunicação com os técnicos da saúde, e um do Instituto de Tecnologias Interativas (ITI), coordenado por Nuno Jardim Nunes, que desenvolverá a parte da visualização interativa..Paralelamente, e interligado com o SMOCK, está igualmente em curso no IST um outro projeto que também ganhou financiamento no mesmo concurso da FCT para investigação em covid-19, em junho..O projeto INTAKE, de INtegrating mobility daTa into spAtial risK modEls, liderado por Arlindo Oliveira, propõe-se exatamente o que diz o seu título: integrar os dados da mobilidade em modelos espaciais de risco, neste caso relacionados com a covid-19.."Nós estamos a desenvolver os mapas e a equipa do professor Arlindo Oliveira está a usar as tecnologias da inteligência artificial para procurar prever o risco a partir dos dados da mobilidade das pessoas, que é um fator muito importante neste contexto", explica Maria João Pereira. "O objetivo final é criar em conjunto a tal ferramenta para apoio à decisão na pandemia", resume a investigadora..Tudo o que foi feito pela equipa até junho é agora uma preciosa base de trabalho para a nova etapa já em curso. A começar pelo próprio repositório dos mapas diários que foram produzidos e publicados ininterruptamente ao longo de dois meses - os investigadores continuaram a fazer os mapas mas deixaram de os publicar. Na prática, eles constituem no seu conjunto a "história espacial da pandemia em Portugal", como lhes chama Maria João Pereira.."A partir de junho deixou de fazer sentido continuar a publicá-los", sublinha a investigadora. Por um lado, o número de casos tinha diminuído, mas sobretudo o trabalho entrou numa nova fase, que pretende a criação de uma ferramenta mais informativa, mais detalhada e mais eficaz para o objetivo que se propõe..Mas a chamada história espacial da covid-19 para Portugal também é muito mais do que isso, porque constitui uma importante fonte de informação para o que agora é preciso fazer: a construção do novo modelo para a produção dos futuros mapas de risco. E para isso é necessário fazer cálculos, por exemplo, sobre as taxas de incidência da doença nos diferentes períodos e para cada concelho, um trabalho que está também em curso.."Estamos a tentar compreender o que aconteceu nestes seis meses de pandemia, do ponto de vista da sua expansão espacial, relacionando essa informação com as medidas que foram aplicadas", explica Maria João Pereira..Isso ajudará ao desenvolvimento dos modelos para gerar os futuros mapas de risco, aos quais os investigadores querem ainda juntar uma outra variável: a da mobilidade das pessoas.."A mobilidade é um importante indicador de risco, e por isso vamos incluí-la no modelo, para podermos reduzir a incerteza dos dados. Temos uma parceria com a NOS justamente para podermos integrar essa informação", adianta Maria João Pereira..Esta não é a primeira vez que os investigadores do Cerena trabalham dados de saúde. Como conta a coordenadora do centro, já se fizeram ali "projetos de investigação em saúde ambiental, nomeadamente na qualidade do ar". Mas esta é a primeira vez que trabalham sobre uma pandemia, e Maria João Pereira não tem dúvidas de que este é "um problema que se adequa muito a este tipo de estudos, porque os dados, pela sua natureza, são muito estruturados no espaço"..Observá-los assim, na forma de mapas, dá uma visão muito imediata do que está a acontecer no terreno. O passo seguinte é criar com isso uma ferramenta de apoio à decisão - o que está agora em curso..O trabalho começou quase como uma curiosidade científica, mas acabou por evoluir para um projeto, cujos resultados poderão em breve fazer a diferença no combate à pandemia. Maria João Pereira não podia estar mais satisfeita. "Para além do entusiasmo em fazer investigação, será muito gratificante se os resultados tiverem impacto na sociedade", conclui. Já não falta muito.