Primeiro foram as salas de cinema que fecharam. Depois os festivais de cinema anunciaram adiamentos e cancelamentos. Finalmente, os estúdios. A produção está parada e ninguém sabe quando voltará a ouvir-se a palavra "ação!" gritada por um qualquer realizador entusiasmado..Os primeiros afetados pela paralisação do setor são, como é óbvio, os muitos trabalhadores - e são mesmo muitos, desde o argumentista que tem a ideia para um filme até à senhora que varre as pipocas do chão depois de sairmos da sala de cinema, passando por toda a gente envolvida na criação, na produção, na pós-produção, na distribuição, na promoção e na exibição..Entretanto, as estreias em sala foram apanhadas no meio da pandemia. James Bond já só vai salvar o mundo em novembro, o novo Top Gun , com Tom Cruise, só chegará em dezembro e irá cruzar-se nos cinemas com a Viúva Negra de Scarlett Johansson. Filmes que deveriam estrear-se na primavera foram agendados para o verão ou para dezembro ou até para o próximo ano, à medida que se vai percebendo que a normalidade não vai voltar tão cedo. Até lá, os espectadores ficam em casa a ver televisão e a pagar serviços de streaming enquanto comem pipocas feitas no micro-ondas..Isto levanta outra questão: como reagirá o público quando a quarentena terminar? Será que os espectadores que se acostumaram a ver os filmes em casa vão voltar às salas de cinema? As notícias que nos chegam da Ásia não são animadoras. Nos últimos anos, a China registou números enormes de bilheteira. Em fevereiro de 2019, o público chinês gastou 1,63 mil milhões de dólares em bilhetes de cinema, um recorde para um único mês em qualquer lugar do mundo. O contraste com fevereiro de 2020 não poderia ser maior. As salas de cinema fecharam mais cedo, logo em janeiro. Em meados de março, os exibidores fizeram uma tentativa de começar a reabrir os cinemas - mas, temendo um fracasso financeiro, os distribuidores recusaram-se a lançar novos filmes e o público também preferiu ficar em casa. Os quase 500 cinemas que tentaram abrir já fecharam novamente. Ainda há muito medo e, na dúvida, os espectadores continuam a ver filmes em casa..Será assim também no resto do mundo: como os grandes sucessos de bilheteira geralmente são filmes muito caros e dependem de grandes campanhas de marketing, é improvável que os estúdios desejem correr um risco imediato quando os cinemas finalmente reabrirem, antes de terem a certeza de que o público está pronto para regressar ao cinema..Antes da pandemia, já havia sinais de que a indústria do cinema estava sob enorme pressão. Embora o número total de bilhetes vendidos tenha subido em 2019, quando as receitas globais de bilheteira do cinema foram maiores do que nunca, isso acontecia devido a um número cada vez menor de filmes, principalmente envolvendo super-heróis e pertencentes a um grupo mais reduzido de estúdios. A Disney faturou mais de 11 mil milhões de dólares em 2019, mas muitos pequenos distribuidores já estavam a lutar pela sua sobrevivência..O futuro está no pequeno ecrã?.O nível de incerteza que toda a indústria está a enfrentar impede quaisquer previsões. Ainda é cedo. Porém, algumas coisas já estão a acontecer. Se para um filme de grande orçamento como F9, o mais recente episódio da saga Velocidade Furiosa, que estava a contar com centenas de milhões de dólares em receita de bilheteira, não se põe sequer a opção de não estrear em sala e a Universal Pictures adiou o lançamento quase um ano, até abril de 2021, outros filmes estão a ter estreia diretamente em homevideo. Ou estão a chegar às outras plataformas muito mais cedo do que estava previsto..Em vez de encararem estes serviços como rivais, os estúdios começam a vê-los como aliados. Na semana passada, a Disney disponibilizou a animação da Pixar Onward nos serviços de homevideo, apenas pouco mais de um mês depois da estreia nos EUA. A Universal fez o mesmo com O Homem Invisível (estreou-se a 5 de março em Portugal) e A Caçada. E o mesmo está a acontecer com os principais filmes independentes, como o recente vencedor do Festival de Berlim, Never Rarely Sometimes Always..Até em Portugal, os distribuidores que recebem apoio financeiro do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) poderão, excecionalmente, exibir filmes nacionais em plataformas pagas e nos canais de televisão por subscrição enquanto as salas de cinema estiverem fechadas..Esta solução permite não só satisfazer em parte os produtores de cinema como também responder às necessidades das plataformas de streaming para terem novos conteúdos. A paralisação de Hollywood acontece num momento de grandes apostas neste setor. Além de Netflix, HBO, Amazon e Hulu, todas em crescimento, a Disney + e a Apple TV + foram lançadas em novembro, a NBCUniversal, da Comcast, e a Quibi estão a lançar neste mês os seus serviços. Isto, além de todos os canais de televisão e outros serviços streaming mais pequenos..Os cinemas estão fechados e não há competições desportivas a decorrer. Há uma plateia composta por milhões de pessoas em vários países, entediada com o isolamento, não só a fazer zapping, constantemente, à procura de novos programas para ver, como também à espera de ver novos episódios das suas séries favoritas. Mas sabemos que isso não irá acontecer, não é?.É que a produção de ficção está congelada. Stranger Things, Sucession, Anatomia de Grey, The Walking Dead, Handmaid's Tale e The Morning Show estão entre as séries que deveriam estar a gravar novas (e muito esperadas) temporadas mas que neste momento estão paradas. Também parece improvável que o especial da reunião de Friends ainda possa ser filmado a tempo da chegada da HBO Max, um novo serviço de streaming de TV a ser lançado em maio pela WarnerMedia, da AT&T Inc., que pagou 425 milhões de dólares no ano passado para tirar à Netflix os direitos de transmissão da popular série dos anos 1990..Vendo bem, a situação na televisão é bem capaz de ser um bocadinho mais complicada do que a do cinema, porque não haverá muita coisa em carteira para ser lançada quando isto tudo passar. Sem novos produtos conseguirão estes serviços conquistar novos assinantes? Quanto tempo vai passar até nos fartarmos de ver e rever todas as séries de que gostávamos?.O que aprendemos com a gripe espanhola.Numa entrevista à Deadline, o historiador William Mann recordou como a gripe espanhola, que matou 675 mil americanos (e dez milhões de pessoas em todo o mundo) foi determinante para a criação de Hollywood e da indústria cinematográfica tal como a conhecemos hoje. Durante a epidemia, em 1918, 80% a 90% dos cinemas e dos teatros dos EUA estiveram fechados por um período de dois a seis meses - o que causou uma enorme disrupção não só na receção dos filmes mas também na sua distribuição e até na sua produção. Entre outubro e novembro, praticamente todos os estúdios cancelaram toda a sua produção. As atrizes Mary Pickford e Lillian Gish estiveram doentes e recuperaram. O ator Harold Lockwood, que era uma das estrelas da Metro, adoeceu e morreu em poucos dias..As perdas financeiras sentiram-se em todas as etapas do processo, mas sobretudo entre os exibidores - muitos foram à falência. Foi nessa altura que Adolph Zukor, fundador da Paramount, teve a ideia de comprar salas de cinema. Aproveitou a epidemia para implementar um sistema vertical, que é o que vigora até à atualidade, em que os produtores dominam todo o circuito até o filme chegar ao consumidor final..Como também observou o crítico Richard Brody, num artigo na The New Yorker : "Muitas empresas pequenas faliram, e o abalo levou à consolidação das grandes empresas, criando os estúdios que se tornaram os detentores da produção, da distribuição e da exibição; a gripe, juntamente com o fim da guerra, deu origem à mega-Hollywood.".William Mann acredita que o covid-19, tal como a gripe espanhola, pode mudar a indústria de Hollywood. O que mais está em causa, tal como em 1918, é o futuro das salas de cinema: será que as pessoas vão voltar ao cinema? "Essa já é uma preocupação das últimas duas décadas, as pessoas vão cada vez menos ao cinema e os filmes mais pequenos já foram transferidos para as plataformas como a Netflix ou a Amazon." O que vai acontecer? "Os serviços de streaming agora usam basicamente o modelo de Zukor. Controlam a produção, a distribuição e a exibição. E, sim, isso deixa algumas entidades mais pequenas fora do negócio, mas também é um modelo muito eficiente.".Porém, o que a história nos diz é que depois da epidemia as pessoas voltaram ao cinema, e fizeram-no ainda com mais entusiasmo e em maior quantidade. E isso faz que alguns especialistas estejam otimistas, apesar de tudo. Philip Knatchbull, CEO da Curzon, um dos principais exibidores no Reino Unido, dizia há dias à BBC: "O cinema sobreviveu a guerras, a pandemias e a uma série de mudanças tecnológicas. Há algo único em reunirmo-nos numa sala escura para assistir a um ótimo filme. Tenho a certeza de que a reabertura dos cinemas será motivo de uma grande celebração e veremos o público desesperado para sair de casa, a querer assistir a filmes em conjunto no grande ecrã."