A paixão não é loucura
A 13 de novembro de 1918, Maria Adelaide Coelho da Cunha, uma senhora de 48 anos, da alta sociedade lisboeta, saiu de sua casa, levando pouco mais do que a roupa que tinha no corpo, "para não mais voltar". Não se despediu do marido nem do filho, não deu qualquer explicação. Apanhou o comboio e partiu em direção a uma vida nova, que queria partilhar com Manuel Claro, um homem de 26 anos que tinha sido seu motorista.
Maria Adelaide era uma mulher rica, educada, viajada. Filha de Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, tinha-se casado com Alfredo da Cunha, poeta e ensaísta que, por dote, herdara a administração e a direção do jornal. Tinham um filho, José, que nesta altura tinha 26 anos e trabalhava como secretário no DN. Viviam no Palácio de São Vicente, na Graça, palco de saraus e festas, lugar frequentado pela elite intelectual e política da época. Maria Adelaide organizava pequenos espetáculos, dirigia peças de teatro, dizia poesia. Tinha uma vida social agitada. Eram, aos olhos de todos, uma família feliz.
No entanto, como conta Manuela Gonzaga na obra Doida não e não, a partir de 1917 Maria Adelaide passou a desenvolver uma "aversão" a festas e eventos sociais, desinteressou-se dos assuntos da casa, mudou até a sua forma de vestir, deixando de parte o luxo que lhe era habitual. "Estou completamente afastada de tudo e só assim me sinto bem", escreveu numa carta à prima. Emagreceu, estava pálida. Andava "doente dos nervos" ou, como lhe diziam os médicos, padecia de "neurastenia", aquilo a que hoje chamaríamos depressão.
Por esse motivo, quando Maria Adelaide não voltou a casa naquele dia, o marido e o filho colocaram a hipótese de ela se ter suicidado. Durante alguns dias, a família viveu a aflição de não saber se Maria Adelaide estaria viva ou morta. A 16 de novembro saiu o primeiro anúncio no Diário de Notícias a pedir informação sobre uma senhora que não voltara para casa "em virtude da exacerbação da doença de que sofre". Oferecia-se uma generosa recompensa. Ao saber disso, Maria Adelaide escreveu uma carta à família na qual não dava grande explicações mas pedia para ser deixada em paz: "Estou viva mas em condições que me considero morta para todos os efeitos e como tal preferível é que me considerem também."
Alfredo da Cunha leu estas palavras a 22 de novembro e imediatamente começaram as buscas - partindo do selo do correio com carimbo de Aveiro. Dois dias depois, Maria Adelaide foi encontrada. O marido fica estupefacto. A sua mulher tinha-o trocado por "um serviçal" e deixara o fabuloso palácio da família para morar numa casa "modestíssima" em Santa Comba Dão, rodeada de gente ordinária, vestindo uma saia de chita, avental à cintura e lenço na cabeça. A quem lhe perguntasse, declarava que o seu nome era Maria Romano Claro. Só podia haver uma explicação para tal: Maria Adelaide enlouquecera.
A loucura, porém, tinha sido preparada. A casa tinha sido alugada meses antes, ela dera a morada a uma livraria da capital, para que lhe enviassem as novidades, e até tinha mandado fazer cartões-de-visita com o novo nome. Não tinha sido uma decisão intempestiva.
Manuel Lopes Cardoso Claro tinha sido contratado como chauffer para a família em finais de 1916. A sua missão principal era transportar o diretor do DN entre casa e o jornal, onde permanecia até altas horas da noite. De dia ficava normalmente ao serviço de Maria Adelaide, que tinha uma vida social ativa. Cantava fado e era um rapaz de "aspeto agradável". Gostou da patroa: "Uma alma e uma inteligência como a desta senhora nunca o destino me deparara", dirá mais tarde. E reparou também que "esta senhora não era tratada como merecia" pelo marido ríspido, que a fazia sofrer. Algo aconteceu entre eles - uns olhares, uma atenção, uma proximidade - que levou Alfredo a despedir o motorista.
Encontraram-se semanas depois, por mero acaso, na rua. E desde então passaram a encontrar-se, "fortemente amorosos um do outro", em quartos alugados. Entretanto, Manuel ficou doente com a pneumónica que na altura devastava Lisboa, e Maria Adelaide cuidou dele. Salvou-o. Entre eles nasceu "uma paixão furiosa". Mas, apesar de feliz, a situação afetava-a muito. Repugnava-a mentir à família, odiava viver em fingimento. A tristeza que a invadiu naqueles últimos meses era, afinal, a consciência de uma mulher que se via perante a urgência de escolher entre o dever familiar e o amor verdadeiro.
Isto foi o que nunca lhe perdoaram. Se ela tivesse tido um amante, às escondidas, talvez o caso fosse falado e pouco mais. Mas prescindir da vida social, elegante e distinta para se entregar a uma paixão, longe da família e sem qualquer conforto material, só poderia ser sinal inequívoco de "doença do espírito".
Durante 11 dias ela foi feliz. Até que o marido e o filho apareceram, acompanhados por polícias e médicos. Maria Adelaide só queria pedir o divórcio. Alfredo da Cunha recusou-se sequer a dirigir-lhe palavra e levou-a imediatamente para o Porto, onde, contra a sua vontade, foi internada na ala das criminosas do Conde de Ferreira, o principal hospital psiquiátrico da cidade, então dirigido por Magalhães Lemos. Passou a primeira semana em total isolamento, sem que lhe administrassem qualquer terapia ou medicação.
Quando conseguiu ter acesso a papel e caneta, começou a escrever um diário e cartas que enviava ao amante através de uma empregada que se tornara sua cúmplice. A 2 de fevereiro de 1919, depois do jantar, Maria Adelaide aproveitou o momento em que a sua criada lavava a loiça para fugir pelo pátio. Junto ao muro estava Manuel, que tinha mandado construir uma enorme escada de madeira para resgatar a amada. Mas, rapidamente, foram encontrados e no final do mês Maria Adelaide estava novamente internada no Hospital Conde de Ferreira e Manuel foi preso com a acusação de rapto e violação.
A intenção da família era interná-la numa casa de saúde mental no estrangeiro, provavelmente em Paris. Ela recusou. Sabia que assim que saísse de Portugal não tornaria a ver Manuel. A família decidiu então iniciar um processo judicial que a considerasse louca, incapaz de julgamento próprio e por isso sujeita às vontades do seu tutor, o marido.
Foi então que o diretor do hospital convocou pela primeira vez uma junta médica para avaliar o caso: Júlio de Matos, António Egas Moniz e José Sobral Cid, os mais famosos alienistas portugueses. Os peritos salientam o papel da ovarite, a importante carga genética - para o qual vão desenterrar patologia psiquiátrica eventualmente presente em diferentes familiares mortos - e atribuem um relevo especial às alterações hormonais associadas à menopausa, que terão provocado um recrudescimento sexual que impulsionou a doente a quebrar todas as barreiras inibitórias. Falam em "graves perturbações dos afetos e dos instintos que a privam de capacidade civil para reger a sua pessoa e administrar os seus bens". Aquela mulher, que tudo abandonara para fugir com um criado, não poderia estar na posse das suas faculdades. Isso não era comportamento digno de "uma senhora".
"Como é possível que figuras de capacidade reconhecida e tão importantes para a história da psiquiatria portuguesa aceitassem participar num procedimento que tinha por objetivo o internamento permanente e a interdição de uma mulher que não apresentava qualquer patologia psiquiátrica?", pergunta Adrian Gramary, atual psiquiatra do Hospital Conde de Ferreira, no artigo "A crónica de um erro médico". Há várias explicações possíveis: "Por dinheiro, por erro de diagnóstico, porque o estado do saber psiquiátrico na época deixava espaço teórico para que tais "processos morais" acontecessem, talvez por eles se terem erigido em representantes e defensores dos bons costumes ou do poder patriarcal masculino." A verdade é que, fosse qual fosse o motivo, o diagnóstico de "loucura lúcida" servia perfeitamente as intenções do marido. Interditando a mulher, Alfredo da Cunha poderia continuar a administrar à sua vontade os bens da família, incluindo o DN, que acabaria por vender, apesar da oposição da mulher.
Enquanto isso, a partir da sua prisão no Aljube, Manuel Claro tinha contratado um advogado, Bernardo Lucas, que percebeu toda a ilegalidade que envolvia o internamento compulsivo de Maria Adelaide. No dia 9 de agosto de 1919, dirigiu-se ao hospital acompanhado pelo governador civil do Porto com ordens do Ministério do Interior para que libertassem Maria Adelaide, após noves meses de clausura.
Nos quatro anos seguintes, Maria Adelaide viveu escondida em casa de uma família amiga do Porto, enquanto tentava libertar Manuel Claro. Para se proteger da fúria de Alfredo da Cunha, e para defender a honra de Manuel, decidiu, em 1920, publicar partes do diário do seu internamento num livro, intitulado Doida não!. A obra expunha toda a humilhação a que fora sujeita "pelo simples crime de amar". O marido respondeu com outro livro, Infelizmente Louca!. Dissecado pelos jornais, o caso apaixonou os portugueses, a sociedade da época dividiu-se. Em agosto de 1920, o jornal A Capital começa a publicar na primeira página crónicas assinadas por Maria Adelaide, em que ela conta pormenores do seu internamento e toda a ilegalidade que rodeou o processo. Alfredo da Cunha vai respondendo com algumas aclarações no DN, mas a sua voz é cada vez menos ouvida. O jornal faz também uma investigação e descobre várias mulheres que foram internadas não por estarem loucas mas por castigo das famílias. "O caso de Maria Adelaide não foi um caso isolado, já que nessa época era relativamente frequente o internamento psiquiátrico das filhas descarriladas da burguesia e da aristocracia. Este procedimento constituía uma forma de punição que era vista como adequada perante comportamentos considerados desviantes entre os quais se incluíam os relacionamentos com indivíduos pouco recomendáveis ou de classe inferior", explica Adrian Gramary.
A 28 de janeiro de 1922 Manuel Claro é finalmente libertado. E eles podem, então, ficar juntos. Ele como taxista, ela fazendo trabalhos de costura em casa. Mas só em 1944, após a morte de Alfredo da Cunha, Maria Adelaide Coelho da Cunha foi declarada lúcida e sã.