"Quando em Timor viram um avião português foi um alívio, um aconchego"
Acaba de regressar de Timor, onde foi buscar mais de 200 portugueses que pediram repatriamento por caudas do covid-19. Ir de Lisboa até Díli são quantas horas de voo?
Se o avião fizesse direto, davam cerca de 20 horas de voo, mas o avião em que fomos não tem autonomia para isso. E aquele que nós temos e tem essa autonomia, é o Boeing 777, não aterra em Díli. Por isso o avião que temos ideal para essa operação é o Boeing 767, que vazio tem uma autonomia de cerca de 14 horas e com passageiros a bordo tem cerca de dez. Neste caso tivemos de arranjar, dada a distância tão grande, um aeroporto que ficasse perto de Díli para servir de plataforma de apoio e para podermos descansar e começar a operação de repatriamento. Inicialmente pensámos em Singapura, como da outra vez, em 2012, em que fomos levar tropas da GNR a Timor, mas houve um problema com as autorizações, não nos deixavam dormir, só estacionar, e não deixavam ter passageiros a bordo, o que aconteceria no regresso, claro. Fomos à procura de alternativa num raio até quatro horas. Procurámos ir a um sítio onde fosse possível abastecer e continuar a viagem. Com a ação do Ministério dos Negócios Estrangeiros tentámos a Tailândia, Banguecoque, mas deram-nos um aeroporto ao lado da capital, um aeroporto militar-civil, que serviu de plataforma.
Como disse, a EuroAtlantic já tinha ido a Timor levar a GNR em situações complicadas. Não era, portanto, a sua primeira vez a aterrar em Díli?
Não. A minha experiência em Timor-Leste é de 2008, na altura fizemos quatro voos. Baseámos uma tripulação em Singapura, o avião levou tropa, e fez Lisboa-Dubai, Dubai-Singapura... Era um avião maior do que o 767, um Lockheed L-1001, tivemos de ir para o aeroporto de Baucau e fizemos quatro voos a Baucau. Em 2012 fizemos um voo para ir buscar as tropas da GNR a Timor e aí é que operámos no aeroporto de Díli. Nessa altura, tivemos de mandar uma equipa de segurança de voo, devido a alterações no aeroporto, que esteve no terreno a medir tudo. O grande problema do aeroporto de Díli, além da pista curta e com 30 metros de largura, é a placa giratória na ponta das pistas, que permite virar o avião e não sair fora dessa placa, e também a placa onde o avião para...
Esse 767 que usaram agora da EuroAtlantic é um avião mais pequeno mas que não é sequer habitual em Díli. Acabou por impressionar os timorenses pelo tamanho...
O único 767 que foi lá foi o nosso, um avião que já vendemos, e agora foi este 767 mais novo. É o mesmo modelo. É um avião que tem uma envergadura de 60 metros, com 185 toneladas de peso máximo, e claro que não podemos ter esse peso devido ao pavimento da pista, mas permite o peso suficiente, limitando o combustível a cerca de metade nos tanques, para ir até ao alcance de um aeroporto dentro de um raio de quatro horas.
Nesta operação de ir buscar portugueses a Timor, quantas tripulações é que foram?
Fomos no total 27 tripulantes. O voo foi vazio, com uma tripulação de dois comandantes, dois copilotos e dez elementos de cabine, com um mecânico. Fizemos o voo direto de Lisboa à Tailândia, até U-Tapao Rayong Pattaya, nesse aeroporto ficamos lá 12 horas. Três pilotos, nove elementos de cabine e um mecânico, fomos extratripulação do avião. Quando chegámos à Tailândia fomos descansar. A minha tripulação fez o descanso mínimo, que são as 12 horas, para poder fazer a operação de resgate, isto é, ir a Díli e voltar a Díli. A outra tripulação, que tinha vindo de Lisboa e que estava lá, fez o voo de regresso a Lisboa. A tripulação que tinha ido a Timor continuou a bordo do avião até Lisboa, fazendo cerca de 30 horas. Partimos de Lisboa na quinta-feira às 16, aterrámos na Tailândia às cinco da manhã hora de Lisboa (mais sete), descolámos para Díli às 18.30, novamente hora de Lisboa, e chegámos a Díli às 23.30 de Lisboa (mais oito em Timor). Estivemos uma hora e meia de rotação em Díli, chegando à Tailândia às 5.40 de sábado, hora de Lisboa. Mudança de tripulação e saída da Tailândia às 7.15 de Lisboa e, contando a paragem em Tiblissi de uma hora, chegámos a Portugal às 23.05. Portanto, a missão decorreu durante mais de 48 horas no total.
Portanto, pilotou da Tailândia até Díli e de Díli de volta para a Tailândia?
Exato. Saímos de madrugada porque a temperatura em Díli é alta, e quanto mais alta menos performance do avião, e fizemos a operação para chegar ao nascer do Sol e com a temperatura mais baixa por causa do aquecimento de travões e depois para termos melhor performance para a descolagem, quanto menos calor melhor.
Foram 200 passageiros?
Tínhamos o preload de 246, mas havia a questão da performance e da temperatura... na altura eram 222 e acabaram por ser 211.
Eram todos portugueses ou havia outras nacionalidades?
Havia pelo menos dois ingleses, de resto eram quase todos portugueses.
A maioria eram professores?
Pelos menos, 40 ou 50 eram professores. Havia muitas famílias, um bebé e dez crianças.
Estamos a falar de portugueses que vivem habitualmente em Díli mas que nesta altura da pandemia acharam melhor voltar para Portugal?
O que senti é que estavam com bastante ansiedade, com um ar pesado e preocupado e até com uma certa tristeza porque são decisões difíceis... as pessoas vieram embora porque há um risco que não querem correr se houver uma situação de pandemia como aqui ou em Espanha... Timor não tem capacidade para o tratamento das pessoas. Daí a preocupação e a razão que os levou a vir embora. Foi disso que me apercebi.
Percebeu que as pessoas quando viram o avião português a chegar foi uma sensação de alívio?
Quando em Timor viram um avião português foi um alívio, um aconchego. Principalmente quando descolámos e fechámos as portas foi um alívio e conforme nos fomos aproximando do destino, melhor ainda. Já na última perna, entre Tiblissi e Lisboa, o alívio era grande e a satisfação de chegar enorme. Ser uma tripulação dá uma sensação de aconchego.
Fizeram uma escala na Geórgia?
Depois de chegar à Tailândia, tentámos fazer um plano de voo direto, mas quando se voa de este para oeste o vento é de frente e forte e não permitiu o voo direto. Já tínhamos no nosso planeamento uma paragem a meio caminho, então foi a Geórgia, onde muitas vezes paramos para o abastecimento de combustível. Parámos em Tiblissi para abastecimento e limpeza de casas de banho e depois retomámos para Lisboa.
Os passageiros nessa situação saíram na Tailândia e na Geórgia ou tiveram de ficar dentro do avião?
Tiveram de ficar dentro do avião. Era uma das condições por causa da situação do covid-19.
Não havia ninguém com nenhum sinal de doença a bordo?
Não. A pessoa que estava infetada em Timor e que deu positivo, a embaixada sabe quem é, está de quarentena, tentou viajar mas a embaixada portuguesa não permitiu.
Há quantos anos é piloto?
Há 35 anos.
Na EuroAtlantic está há quantos anos?
Desde 1993, operámos charters de outras empresas, em 1997 foi o ano em que adquirimos o Lockeed e é o início da companhia aérea EuroAtlantic. Uma empresa portuguesa fundada pelo Dr. Tomaz Metello.
A EuroAtlantic, que tem algumas linhas regulares, como por exemplo para a Guiné-Bissau, mas essencialmente é uma empresa que faz voos especiais, que podem ser turismo ou mais complicados, como este agora, até já transportaram tropas para o Afeganistão?
Exatamente. Desde o Lockeed em 1997 já operámos em todo o mundo. É um feito grandioso da nossa empresa, infelizmente não muito conhecido no mercado português, mas com reconhecimento internacional. Operamos para mais de 700 aeroportos no mundo inteiro e já estivemos com a nossa bandeira em 162 países. Isto é um feito grandioso, mas somos low profile. Já levámos desde presidentes da República, tropas da ONU a todos os continentes, tropas especiais da NATO, primeiros-ministros, inclusive de outros países, também equipas de futebol, incluindo a seleção, fazemos voos charters de turismo, e temos dois voos regulares: São Tomé e Bissau. Operamos normalmente com uma empresa em ACMI. Isto é, qualquer empresa que tenha aviões do nosso porte ou parecidos, que avariem ou que vão para manutenção, nós vamos substituí-los. Somos uma espécie de INEM.
Neste caso foi o Ministério dos Negócios Estrangeiros a solicitar o vosso trabalho?
Exatamente. O governo português perguntou-nos se podíamos ir a Díli e nós confirmamos que já lá tínhamos estado e que não havia problema, a grande dificuldade, que já sabíamos à partida, era a autorização para as escalas técnicas.
Falou de 27 pessoas na tripulação. São essencialmente portugueses?
Todos portugueses.
Quando fala de todas essas missões, estando na companhia desde o início, se lhe perguntasse se já aterrou em Bagdad ou em Cabul, vai dizer-me que sim?
Tenho uma história engraçada: num jantar com colegas jornalistas, e não só, em que fizemos uma aposta que se eles dissessem dez países e houvesse algum em que não tivesse estado, eu pagava o jantar. Claro que eles pagaram o jantar porque todos o que disseram já lá tinha estado. Aliás, não eu, mas a EuroAtlantic. Não terei ido a todos dos 162, mas fui de certeza a mais de cem, e nas operações mais complicadas, prefiro ser eu a liderar esses grupos. Também já fizemos 11 voltas ao mundo, são normalmente 21 dias. Saímos de Lisboa em direção a Paris e damos a volta ao mundo.
São voos turísticos?
Sim. Por charter com cerca de 200 passageiros, serviço executivo para toda a gente. Como disse, das operações também já transportamos falcões, alugaram-nos um dia um Boeing 767 com 300 lugares para levar 20 falcões.
Estamos a falar de príncipes das Arábias?
Exatamente. Há um leque de experiência bastante grande.
Vocês também levam peregrinos a Meca, não é? Dê-me um exemplo de uma operação dessas.
Por cada avião levamos cinco ou seis tripulações, normalmente baseamo-nos na Arábia Saudita, em Jidá ou em Medina para peregrinação a Meca. Esta operação depende de ano para ano. A partir da Arábia Saudita vamos buscar peregrinos a África e praticamente ficamos lá 45 dias, depois há um intervalo e outra vez 45 dias. Vamos buscá-los aos países, vamos para Medina e depois eles regressam de Jidá para os seus destinos.
A partir dessa base na Arábia Saudita vão buscá-los à Nigéria...
Sim, seja à Nigéria ou ao Sudão, mas também ao Cazaquistão, à Índia, e depois trazemos nesta primeira fase, depois há um break de dez dias e levamo-los de regresso. Também fazemos voos a Israel, com turistas cristãos, mas num número mais pequeno de voos.
Este voo até Díli, nestas circunstâncias, para si fisicamente foi duro?
Como todo o voo, tem de ser seguro, com um risco calculado. No caso do aeroporto de Díli, que tem uma pista estreita (30 metros) e curta (1850 metros), mais o problema da volta do avião no fim da pista, e essa é a parte de maior risco... mas pronto, isto é matemático, faz-se os cálculos e os números não mentem. Com os cuidados todos, com o acesso de segurança que fizemos antes... a partir daí é um voo normal, apenas a fadiga. A minha tripulação veio no avião a descansar e os outros colegas fizeram o voo de regresso a partir da Tailândia. Desde que saí de Díli até chegar a Lisboa foram 30 horas.
Está preocupado com o futuro da aviação com esta pandemia? Acha que é uma crise temporária?
Penso que vamos ter, não digo algo como a II Guerra Mundial, mas depois do que está a acontecer vai ser preciso um novo Plano Marshall. O mundo tem de acordar e esquecer os défices, os governos têm de injetar dinheiro, senão é uma desgraça. Não só a aviação, mas tudo o que está ligado ao mundo do turismo está tudo parado. Se não houver transporte de pessoas e se não houver comércio, vai ser muito grave. Vai ter de se fazer qualquer coisa. Os EUA já prometeram muitos milhares de milhões de dólares para a aviação, que é a única maneira de reanimar. O mundo vai ser diferente, a atitude das pessoas vai ser diferente e nós vamos ter aqui uma caminhada no deserto. Vamos ter desemprego na aviação, quase de certeza... ou não. Depende da confiança. Se as pessoas não tiverem medo de voar, se não perderem os empregos, voltam a voar. E, voltando a voar, os hotéis enchem e gera-se riqueza. O que vai decidir o rumo é como é que isto vai acabar depois da quarentena.