Sociedade
01 novembro 2021 às 00h11

"Com escassez de professores não é possível recuperar aprendizagens"

Pais, diretores e sindicato afirmam que o Plano de Recuperação de Aprendizagens está em causa por falta de recursos humanos. E também apontam necessidade de "rever programas"

Cynthia Valente

O ano letivo 2021-2022 é o primeiro de três anos da implementação do Plano de Recuperação de Aprendizagens "21-23 Escola+", aprovado pelo Governo em junho. Representa um investimento superior a 900 milhões de euros na escola pública para reforço dos recursos humanos nas escolas, formação e capacitação do pessoal docente e não docente, incremento dos recursos digitais e apetrechamento das escolas em equipamentos e infraestruturas. Contudo, um mês e meio após o arranque do ano letivo, pais e diretores receiam que o cumprimento do plano possa estar em causa, apontando como principal fator a escassez de professores.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) pede, por isso, um "concurso extraordinário para efetivar professores docentes contratados ainda este ano". "O Governo não deve continuar a tratar mal os nossos professores. Coloca-os no desemprego em agosto e vai buscá-los logo a seguir para estar ao serviço da escola. Usa os professores como se fossem material descartável. Que promovam a locação destes profissionais e que os efetivem nas escolas, com um concurso extraordinário já este ano. Não nos esqueçamos que 58 por cento dos docentes agora no ativo se vão reformar até 2030 [ver números nesta página] e os jovens não querem ser professores. Não há condições, nem valorização da carreira. Há que pegar em professores contratados com muita experiência, que já deram muito de si ao ensino, e dar-lhes algum conforto para bem da educação nacional", pede.

Apontando as regiões de Lisboa e Algarve como as que estão a passar por maiores dificuldades, Filinto Lima afirma que "em algumas disciplinas não existem ainda titulares de turma". Uma realidade que se irá "alastrar em breve ao Norte do país" "É uma grande preocupação e se não houver por parte do Governo um indício de querer resolver este problema, a próxima pandemia será na Educação. É um mal previsível e há uma vacina que se pode aplicar já. A vacina seria, como referi, abrir um concurso extraordinário para professores contratados".

O dirigente teme "o regresso ao século passado, em que professores lecionavam sem habilitações". "É um problema das escolas públicas, mas também dos privados, e há como resolver. Haja vontade, desde logo, do ministro das Finanças. Neste Orçamento de Estado nem se ouve falar na Educação. É um problema comparado a um vírus que se vai estender como a Covid para o resto do país. Isto exige investimento, com certeza, mas os nossos sucessivos governos do PS e PSD não fizeram sempre da Educação a sua bandeira? E no entanto nada fizeram". O presidente da ANDAEP acredita que, "em breve, ainda teremos de ir buscar professores oriundos de outros países". Filinto Lima alerta para os muitos pedidos de licença sem vencimento na classe docente. Profissionais que, diz, acabam por não regressar ao ensino.

Rui Martins, presidente da Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação (CNIPE ), afirma não terem chegado preocupações no que se refere à recuperação de aprendizagens, "nas escolas onde não faltam professores". "O grande problema é que não há professores suficientes. Não faz sentido um plano se não há docentes para o pôr em prática. Não há milagres", explica. O responsável do CNIPE pede "melhores condições para os professores", de forma a "atrair docentes para os grandes centros urbanos". Rui Martins lamenta ainda a falta de soluções para o problema. "Não vimos nada no Orçamento de Estado que desse resposta a este problema", conclui.

Já o presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), Jorge Ascenção, afirma não ser fácil fazer um balanço do Plano de Recuperação de Aprendizagens porque "é um trabalho a fazer ao longo do tempo e até 2023". "O ano está a decorrer com alguns percalços, mas está a ser um ano dentro daquilo que é expectável. Temos de voltar a entrar no ritmo normal e tentar recuperar, evitando novas interrupções", adianta. Jorge Ascenção também considera a falta de professores "preocupante". "É uma situação que todos os anos se repete. É preciso uma solução mais estruturada e duradoura. Temos de analisar tudo e ver que soluções se podem implementar. A situação tem vindo a piorar".

Está em causa o cumprimento da Constituição da República Portuguesa. Quem o diz é André Pestana, coordenador do Sindicato de Todos os Professores (S.T.O.P). "Em outubro continuamos com várias dezenas de milhares de alunos sem professor a uma ou mais disciplinas. Toda esta situação, em particular a desigualdade que afeta muitos milhares de alunos com falta de professores (a uma ou mais disciplinas), manifestamente questiona o artigo 74º da Constituição da República Portuguesa ("todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar")", afirma.

Por isso, o responsável solicitou ao Presidente da República "uma reunião urgente", pedindo que "atue rapidamente". Segundo André Pestana, outros problemas estão a impedir recuperar aprendizagens afetadas pela pandemia: "excessivo número de alunos por turma, aumento do número de horas da componente letiva dos professores para colmatar esse atraso nas aprendizagens (de referir que essas horas são atribuídas na CNL do Professor), falta de equipamento didático prometido (computadores e materiais) falta de condições em algumas escolas, etc".

André Pestana sustenta, por isso, que "apesar do enorme esforço e dedicação, mais uma vez demonstrada pela classe docente, a recuperação das aprendizagens tem estado limitada por questões alheias à responsabilidade docente". Professores que, afirma, estão "desgastados", o que acarreta, também, "consequências para os alunos".

"As crianças e jovens sofreram impactos, sim. Tentou passar-se a ideia (por vezes), de que são resilientes. E, em certa medida, até são. Mas isso não pode fazer com que se deixe de olhar com atenção para os impactos da COVID-19 na saúde mental. O suicídio é a principal causa de morte em crianças e jovens adultos em Portugal". A reflexão é de Alfredo Leite, licenciado em Psicologia Educacional e diretor pedagógico do Mundo Brilhante, que pede um reforço na "recuperação da saúde mental".

Para o especialista, "precisamos de estar atentos à importância das emoções na aprendizagem". "A psicologia positiva pode dar um contributo muito grande, nomeadamente na promoção das forças e das virtudes de cada um. Para a psicologia positiva, as relações sociais (as que ficaram prejudicadas), são um dos pilares da felicidade", sublinha. O psicólogo lamenta o "pouco investimento na recuperação e promoção da saúde mental" e acredita ser necessário que os alunos "reflitam sobre as perdas, sobre as mudanças de rotina". "Deveriam ser dadas mais oportunidades de convívio, de partilha, de troca de ideias e até de debate, às crianças e jovens. Mais "tempestades de ideias", mais momentos de escuta, mais "círculos", mais debate...não podemos deixar o assunto passar sem reflexão, sem conversar. Não se trata (pelo contrário) de dramatizar, mas de ajudar os jovens a focar mais no desenvolvimento de competências", explica.

Alfredo Leite aponta ainda "problemas gravíssimos" que impedem uma recuperação efetiva de aprendizagens. "Há 19 anos que faço formações com docentes, alunos e diretores de escolas. O dilema que existe neste momento nas escolas não é novo. A pandemia e o confinamento só vieram exacerbar o que já existia. Falar em recuperação é uma boa intenção, mas não traz nada de novo. Há três problemas que não estão a ser resolvidos: as indisciplinas, a formação pouco adequada às circunstâncias e o excesso de burocracia que os docentes enfrentam".

E para resolver estas problemáticas "essenciais para recuperar aprendizagens", o psicólogo defende a redução de alunos por turma, pois "permite, entre outras coisas, diminuir a indisciplina", o acesso a formações "de qualidade, flexíveis e dinâmicas" e "acabar com os papéis". "Para recuperar aprendizagens era necessário um pacto nacional em que os professores seriam libertados de papelada durante algum tempo. Fica difícil combater desigualdades sociais com tanta burocracia", conclui. Alfredo Leite afirma também que muitos professores "não estão bem". Para o psicólogo, "uma escola forte acarinha os docentes, que acarinham os alunos" e todos se "recuperam".

Quem também pede "mais e melhor formação" é José Carlos Pires de Lima, diretor do Agrupamento de Escolas da Abelheira, Viana do Castelo. "Há que recuperar os alunos e os professores. Enquanto não deixarmos a poeira baixar, não vamos conseguir. Muitas vezes, o que o Ministério da Educação (ME) pede não é concretizável. Precisamos de ter formação de professores modernizada", afirma. O responsável aponta como um dos problemas crónicos, que impedem o cumprimento do Plano de Recuperação de Aprendizagens, a falta de professores. "Em Portugal, há cerca de 800 agrupamentos, mesmo que houvesse reforço de 2400 professores como o ME afirmou, seriam três por agrupamento. Não dá para cada turma ter um tempo de apoio. Não temos recursos humanos para pôr em prática o plano de recuperação. Não podemos fazer omeletes sem ovos. Os professores estão a fazer o que podem e a dar o corpo ao manifesto, mas o ME está a brincar às escolinhas", refere José Carlos Pires de Lima.

E para recuperar aprendizagens, diz, "é preciso rever programas". "Estamos há dois anos com esta pandemia e o governo já teve tempo para ver o que é acessório e o que é essencial. Estamos a martirizar os alunos... Devíamos apostar mais em planos de recuperação com oficinas, tutorias, entre outras estratégias, e não olhar apenas para conteúdos programáticos. Os conteúdos repetem-se ano após ano em algumas disciplinas. De aprendizagens essenciais têm muito pouco. E é preciso ver que com a falta de professores, o plano que vai por água abaixo. Acresce ainda a dificuldade para alcançar o plano de capacitação digital. Como o podemos fazer se temos computadores do tempo do primeiro-ministro José Sócrates, ou se temos salas onde não há tomadas?", questiona.

Para o diretor do Agrupamento de Escolas da Abelheira, "há milhares de problemas nas escolas que podiam ser evitados". "O que está a acontecer agora é o descalabro da Educação. Estamos sempre a discutir o acessório e não o essencial. Andamos à deriva e a correr atrás do prejuízo", conclui.

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