A gala de abertura deste Festival de Ópera de Óbidos é dedicada a Georges Bizet.Sim. Em 2025 são os 150 anos da morte de Bizet. E aproveitamos também para assinalar duas outras efemérides, os 500 anos do nascimento de Camões e os 500 anos da morte de Vasco da Gama.E havendo aqui Bizet e havendo os 500 anos da morte de Vasco da Gama, que foi em 1524 e continua a ser assinalado, nesta gala está Carmen, está Os Pescadores de Pérolas, mas está igualmente a Ode Sinfónica Vasco da Gama...Sim, e também La Jolie Fille de Perth, que é uma ópera desconhecida de Bizet, mas injustamente, porque é belíssima. E, claro, vamos ter em Óbidos a Ode Sinfónica Vasco da Gama, de Bizet.Que não é uma ópera porque ele nunca a desenvolveu para chegar a ser uma ópera?Neste momento ela é o que é, é uma Ode Sinfónica e é assim que está editada. Mas nós sabemos que é a primeira parte de um trabalho ao qual Bizet - ela foi editada postumamente - intitulou Vasco da Gama. E sabemos que é a primeira parte de uma obra. Portanto, tudo leva a crer que poderia ter vindo a ser uma ópera. O Palazzetto Bru Zane, de Veneza, este ano editou esta obra, uma edição cuidadíssima. E teve o cuidado de encomendar uma revisão da partitura, que nós vamos utilizar no festival. E de fazer uma gravação belíssima. E explica isso também, de facto. É interessante a obra estar a suscitar tanto interesse neste momento.Não é uma Ode que haja muitas possibilidades de ouvir em Portugal e mesmo fora de Portugal?Ela já foi ouvida em Portugal, em alguns contextos, mas não é de facto uma obra muito feita. E injustamente, porque é de facto muito bonita. É injusto não ser mais conhecida e mais feita em contexto de concerto. E tem um material dramático que se percebe que iria ser desenvolvido. É interessante. Na edição crítica, esta primeira e única parte da Ode Vasco de Gama está mesmo intitulada como “La Traversée”. Leva-nos a sonhar sobre o que poderiam ter sido as outras partes nunca escritas….Quem está a ouvir a Ode Sinfónica Vasco da Gama e conheça, por exemplo, a ópera Carmen, vai identificar de alguma forma que se trata de uma criação de Bizet?Vai identificar a linguagem do Bizet, claro, certamente.Ou seja, as árias são identificáveis pelo estilo do compositor?Tem muitos pontos em comum que são característicos da escrita de Bizet.Houve outros compositores de ópera a interessarem-se por Vasco da Gama, descobridor do caminho marítimo para a Índia?Sim. O caso mais notável é Meyerbeer com a sua ópera Vasco de Gama, a famosa L’Africaine. Recentemente, a edição crítica da Ricordi fez justiça ao título original com o nome do navegador.Além desta gala dedicada a Bizet, que outras obras é que se vão poder ouvir neste festival?Nós vamos apresentar ópera em formato Double Bill em dois fins de semana seguidos, ou seja, duas obras curtas apresentadas num mesmo espetáculo, embora com um intervalo entre as duas obras, mas com uma conceção que une as duas obras num mesmo espetáculo. No primeiro fim de semana temos duas óperas que distam entre si praticamente 100 anos, A Menina, o Caçador e o Lobo, de Vasco Mendonça, que é um dos nossos compositores contemporâneos de facto mais proativos no momento. E que vai ser apresentada em Double Bill com a famosíssima L’Enfant et les Sortilèges de Ravel. Este ano são os 100 anos de estreia da obra. E também os 150 anos do nascimento de Ravel. Então temos aqui efemérides interessantes. Dá-se uma certa curiosidade de termos uma obra dos nossos tempos que dista praticamente 100 anos da segunda obra a apresentar, que celebra o seu centenário este ano. E as duas, apesar de linguagens muito diferentes, têm um cariz infantil, embora, ambas com uma mensagem tão profunda, precisamente sobre tolerância, respeito pelo próximo, há toda uma reflexão sobre os Direitos Humanos e sobre o respeito que devemos ter uns pelos outros, pela diversidade, pelos comportamentos uns dos outros, pela compreensão do outro em si, que achei que era muito pertinente oferecer a oportunidade - por que não? - a famílias, de virem, num contexto em que as obras têm um caráter um pouco mais infantil, ter uma experiência operática pela primeira vez, e por outro lado, passar esta mensagem de muita tolerância, que precisamos hoje em dia.Portanto, depois da gala inaugural, há um fim de semana de Double Bill com A Menina, o Caçador e o Lobo, de Vasco Mendonça, e L’enfant et les Sortilèges, de Maurice Ravel. E no segundo fim de semana?No segundo fim de semana temos novamente um Double Bill, mas entre uma ópera e um bailado. Temos O Segredo de Susanna, de Wolf-Ferrari, que nos remete para uma temática já relacionada com o nosso tema mais abrangente, que é a mulher, e que toca igualmente este tema que eu escolhi para esta edição, tolerância e irreverência, e que tem a ver com os direitos adquiridos pela mulher, sobretudo no início do século XX. Grande parte da música das obras que vamos apresentar, com exceção da ópera de Vasco Mendonça, remete para o início do século XX. E irreverência porquê? Porque irreverência ou ousadia é tudo o que está ligado à luta pelos Direitos Humanos, à luta pelos direitos das mulheres no início do século XX. O Segredo de Susanna está em Double Bill com o bailado El Amor Brujo, de Manuel de Falla. Dá-se a coincidência também de ser os 100 anos de estreia deste bailado, na sua edição de 1925, e que é um bailado dramático, porque tem Candela, que é uma cigana, e que vai ser interpretada pela nossa mezzo-soprano Maria Luísa de Freitas, em contraponto com os bailarinos. Tanto Candela como Susanna, que será interpretada pela Ana Vieira Leite, contam histórias de irreverência e de liberdade.Este bailado é a obra que fecha...Sim, um bailado com cariz operático, embora pelo meio do festival ainda tenhamos um recital de jovens intérpretes e a ópera Café Europa, com música de Christoph Renhart e libreto de Miguel Honrado, numa única apresentação para escolas.É curioso que este festival abra com a Carmen de Bizet e feche com a Candela de Manuel de Falla. Não é coincidência, pois não?Nós começamos com uma cigana e terminamos com uma cigana. Começamos com uma mulher rebelde e terminamos com uma mulher rebelde. Aqui está, no signo da irreverência, mas ao mesmo tempo no signo também da tolerância.Nesta área da ópera, e posso estar a ser injusto com muitos tenores, com muitos homens sinónimos de ópera, mas é só o mito da Callas que se impõe esmagador ou os grandes nomes da ópera são mesmo sobretudo mulheres?Há um fascínio à volta da figura da mulher na ópera, pelas divas da ópera. Primeiro há um fascínio por estas vozes, mesmo que sejam as vozes mais médias de mezzo-soprano ou as vozes mais agudas de soprano, há sempre um fascínio pela flexibilidade da voz feminina. E depois porque em ópera, obviamente que os figurinos mais vistosos, tudo o que tem a ver com a caracterização das personagens, nas personagens femininas é sempre muito mais rico, muito mais vistoso do que com as personagens masculinas. Mas se falarmos em termos históricos, há uma equidade entre grandes nomes femininos e grandes nomes masculinos, não nos podemos esquecer do grande Alfredo Kraus, de Pavarotti. Aliás, Alfredo Kraus estreou a Traviata aqui no São Carlos, foi o début dele aqui em Lisboa com a Callas, em 1958.Este Festival de Ópera de Óbidos (FOO) também passou a fazer parte da organização de Ópera Latino-Americana (OLA). Sei que a Carla tem cantado muito no Brasil. Também fora do Brasil, noutros países da América Latina, sobretudo América do Sul.Sim, Argentina, Uruguai, também.A América Latina em geral gosta de ópera, ou seja, é algo da cultura europeia que passou muito para esse continente culturalmente também muito europeu?Passou e o povo latino-americano é extremamente apaixonado por ópera. Há uma indústria muito importante de ópera a desenvolver-se na América Latina e sinto isso pela experiência que tenho nesses países. Aliás, nós temos um encenador brasileiro conosco neste primeiro Double Bill, o André Heller-Lopes, que está a fazer a ligação conceptual entre esta ópera de Vasco Mendonça e L’enfant et les Sortiléges de Ravel. Achei que era importante este festival aproximar-se da ópera latino-americana exatamente para nós percebermos até que ponto podemos aprender com eles, até que ponto podemos desenvolver parcerias, coproduções, intercâmbio entre artistas, entre produções. Foi uma decisão importante e apoiada pelo meu diretor- geral. Estamos expectantes em relação ao futuro desta nossa associação à OLA.Da sua experiência, como alguém que tem cantado muito no Brasil, o que destacaria da cena lírica e musical brasileira?Heitor Villa-Lobos é conhecido mundialmente. Assim como Carlos Gomes, cuja ópera Il Guarany tive o prazer de interpretar em concerto ainda este ano em Milão. A cena lírica brasileira sempre foi muito criativa e, atualmente, encontra-se em interessante desenvolvimento. Destaco as temporadas do Municipal de São Paulo, Theatro S. Pedro e do exótico Festival de Manaus. A criação contemporânea é fomentada e existe já uma tradição em explorar novos títulos. Relembro a fantástica produção de Orphée, de Philip Glass, que cantei no Municipal do Rio de Janeiro, ou a extraordinária Raposinha Astuta, de Janacek, que cantei no Theatro S. Pedro. E é nessa onda de interesse pelo novo e sofisticado que o Festival de Ópera de Óbidos realizou a sua primeira coprodução internacional, precisamente no Brasil, com A Menina, o Caçador e o Lobo, recentemente apresentada no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro.Que públicos espera receber neste festival?Queremos receber o público de todas as idades. As crianças e famílias. Os melómanos e o curioso que vem pela primeira vez assistir a uma ópera. São todos muito bem-vindos no Festival de Ópera de Óbidos.Quais os espaços de Óbidos que vão ser palco tanto da gala de abertura como das obras em Double Bill?Os espaços de apresentação do Festival refletem a modernidade e o património histórico da Vila de Óbidos. A Gala Bizet será apresentada no parque tecnológico, as óperas em Double Bill no Convento de S. Miguel, Café Europa na Praça da Criatividade e o recital de jovens cantores será apresentado no Museu Abílio de Mattos e Silva..Mariagrazia Russo: “O mito de Vasco da Gama deve-se muito a Luís de Camões”."Bizet tem uma ópera Vasco de Gama, mas a Carmen ofusca tudo"